Antes, bastava ao governo priorizar os interesses da nação. Mas as questões globais, que incluem o bem comum a todos os povos, tornaram a equação multilateral muito mais complexa
Por princípio, governos tradicionalmente determinam prioridades e defendem os interesses da nação. Pelo menos era assim antes da globalização da economia, no tempo em que ainda se ignorava que os recursos naturais se aproximariam tão rapidamente do fim e que o aumento das temperaturas poria em risco a vida no planeta. Hoje, além das novas agendas decorrentes dos processos da globalização, a inclusão do tema sustentabilidade nas políticas de governo tornou as relações multilaterais ainda mais complexas. O que é bom para um não é necessariamente bom para o conjunto da humanidade.
Esse novo ingrediente nas políticas de governo gerou um acúmulo de agendas nos países em desenvolvimento, como observou de Tóquio o diplomata brasileiro André Corrêa do Lago, estudioso no tema e, atualmente, embaixador do Brasil no Japão, em entrevista concedida por Skype à Página22.
Autor do livro Estocolmo, Rio, Joanesburgo: O Brasil e as três conferências ambientais das Nações Unidas (2006), Corrêa do Lago explica que, sem terem ainda resolvido questões essenciais já superadas pelos países ricos, os emergentes precisam agora pensar também em como transitar seus sistemas produtivos para uma economia mais eficiente e limpa.
Uma característica dos temas que compõem a agenda da sustentabilidade, como o da mudança climática, é não terem entrado na pauta oficial por reação a uma demanda pública, diferentemente das demais políticas de governo. Aliás, na interpretação de Corrêa do Lago, muito antes de o público aceitar a mudança climática, a Organização das Nações Unidas já transformara o fenômeno em assunto prioritário. “O tema surgiu inicialmente de uma etapa científica, evoluiu para uma etapa política – sobre a qual as ONGs tiveram um papel fundamental (ver reportagem Altos voos) –, e estagnou-se quando entrou em sua terceira e última etapa, a econômica.”
Essa é a grande falha de todo o processo de governança da sustentabilidade, na opinião de Corrêa do Lago. Por mais que um governo possa considerar importante trabalhar a sustentabilidade em sintonia com outros países, segundo Corrêa do Lago, antes terá de conseguir traduzi-la em uma prioridade para o setor produtivo local, o que pode ser dificílimo em países em desenvolvimento”.
“Não é uma governança simples de se gerir”, atesta o secretário de Mudanças Climáticas e Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, Carlos Klink. Além das dificuldades internas para se estabelecerem as agendas ambientais, quando o País chega às convenções-quadro da ONU encontra uma enorme diversidade de visões, muitas delas contraditórias às suas.
Para tentar fortalecer uma posição em relação aos temas mais importantes, principalmente à frente dos países do Anexo 1 [1], cujos interesses nem sempre convergem com o dos países em desenvolvimento, Klink explica que o Brasil começou a operar em bloco no ano passado na Conferência das Partes de Lima (COP 20) [2]. Uniu-se com os também emergentes China, Índia e África do Sul. “Isso não significa que concordamos em tudo. A formação desse bloco é mais um ato político que mexe com as plenárias e nos dá mais visibilidade”, explica.
[1] Composto por países desenvolvidos ou em transição econômica (caso do antigo bloco soviético) com metas de redução de emissões no Protocolo de Kyoto
[2] Convenção preparatória para a COP 21, sobre mudança do clima, que ocorrerá no fim do ano em Paris
BÔNUS E ÔNUS
Instituições multilaterais como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma, ou Unep, em inglês) funcionam como uma espécie de apoio aos membros da ONU para dar sustentação à governança global da sustentabilidade. “Somos um meio que disponibiliza instrumentos para que se possa socializar entre os países-membros tanto os bônus como os ônus da sustentabilidade”, explica a coordenadora do Pnuma no Brasil, Denise Hamú.
A “socialização dos ônus” é, a rigor, uma síntese da dificuldade em se obter consenso, sobretudo quando se trata de reduzir emissões de gases-estufa para conter os efeitos nefastos da mudança climática. Essa medida exige adaptações em praticamente todo o setor produtivo de uma economia, e pouco adianta um país fazer a sua “lição de casa” se os outros não a fizerem também. Tem a ver com a etapa econômica mencionada por Corrêa do Lago travando o desenrolar da governança.
Plataformas como a Unep Live, por exemplo, é um desses instrumentos citados por Denise Hamú. É um banco de dados em que os governos acessam todas as informações recolhidas sobre meio ambiente em todos os países. “Ali, os diferentes atores governamentais podem se encontrar e conhecer os problemas e soluções uns dos outros”, relata Denise.
O Pnuma vem passando por reformas desde a Rio+20, em 2012. De lá para cá, muitas das discussões que capitaneava hoje são feitas dentro das próprias convenções de diversidade biológica, desertificação, espécies ameaçadas, mudança climática ou de comércio. Segundo ela, a ideia é descentralizar os debates para que haja um maior engajamento da sociedade civil. “Todos já percebemos que não dá, por exemplo, para estimular padrões de consumo e produção sustentáveis por decreto”, diz. “Tem de haver participação e engajamento da sociedade.”
Sua expectativa em relação à COP de Paris é a de que vários acordos serão firmados na esteira do compromisso de redução de emissões firmado em novembro de 2014 por Estados Unidos e China. “Mas creio que ainda sentiremos um gosto de quero mais”, afirma.
Internamente, para avançar nas agendas mais importantes para os dois grandes acontecimentos de 2015 – a COP 21 e a apresentação pelas Nações Unidas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) [3], o diretor do departamento de meio ambiente e temas especiais do Itamaraty, Raphael Azeredo, destaca a estrutura de diálogo com a sociedade civil montada pelo governo brasileiro.
[3] Saiba mais sobre os ODS
PARTICIPAÇÃO
Dois mecanismos favorecem a participação direta: a iniciativa brasileira das consultas públicas que antecedem as reuniões multilaterais na área de sustentabilidade e o convite para que um número limitado de representantes da sociedade civil se juntem às delegações oficiais nos grandes eventos multilaterais – com a ressalva de que arquem com suas próprias despesas.
Apesar de alguns esforços pontuais do governo brasileiro para enriquecer a participação do País na COP 21, o cenário político segue produzindo contradições. Durante a produção desta edição, o setor ambiental foi surpreendido com a demissão dos dois principais responsáveis por estudos do impacto da mudança climática na economia brasileira da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República: Sérgio Margulis, que era o titular da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável, e Natalie Unterstell, diretora de Programa. O Observatório do Clima, uma rede que reúne entidades da sociedade civil com o objetivo de discutir a questão da mudança climática no contexto brasileiro, informou que os pesquisadores estavam promovendo um importante levantamento que serviria de base para as propostas que eventualmente o Brasil levará para a COP 21.
Quando se trata de analisar as ações de governos democráticos, o embaixador Corrêa do Lago crê que é fundamental entender a diferença entre as decisões top-down (tomadas de cima para baixo) e bottom-up (tomadas de baixo para cima). A primeira diz respeito ao governo, e a segunda à sociedade civil, representada, em geral, pelas ONGs. Em democracias, o efeito bottom-up é sempre mais legítimo. Ou seja, para um governo democrático decidir que tema é prioritário é preciso ter as bases parlamentares apoiando-o. “E que força têm hoje no Congresso Nacional os representantes da agricultura moderna ou do uso responsável da água?”, pergunta.
Sua crítica não se refere apenas à conjuntura brasileira. Afinal, que Parlamento no mundo reflete hoje os grandes debates contemporâneos? De fato, do ponto de vista político, não há interesse em se lutar por uma causa cujo resultado não aparecerá. Cabe aos governos serem proativos em relação a sustentabilidade, mesmo sem ter noção de quem estará no poder daqui a 20 anos. “Qual a legitimidade frente aos eleitores de se fazer uma alteração na economia do país por causa de um problema que afeta pessoas do outro lado do mundo? A mudança do clima é mesmo um terrível desafio para a democracia”, conclui.