Por Magali Cabral
Para o rabino e escritor Nilton Bonder, é preciso tirar 3.000 anos de poeira das escrituras sagradas antes de interpretá-las. Só assim suas mensagens farão sentido nos dias de hoje.
A seguir, os principais trechos da entrevista concedida em junho para a reportagem Encontros e Desencontros – como a sustentabilidade contribuiu para reaproximar ciência e espiritualidade após séculos de separação, publicada na edição 97 de Página22.
Cientistas convidaram monges budistas do Nepal para visitar o Instituto Tecnológico de Massachussets MIT e, depois, retribuíram a visita. O papa Francisco está lançando a encíclica Louvado Sejas, sobre mudança climática. Além dessas, várias outras manifestações apontam para uma reaproximação entre ciência e espiritualidade. Depois de séculos de separação, essa postura recíproca é um gesto de humildade?
Acho que nem é humildade. Nos últimos anos, as empresas, que são um lugar interessante de se observar os limites ambientais, vêm buscando enxergar as coisas de fora da caixinha. Não tem a ver com aceitação, tolerância. Acho que isso que você fala de reaproximação se refere mais às entidades – o Vaticano, o rabinato, a academia científica – do que com o ser humano tentando se entender, se conhecer. Sábias são as pessoas que conseguem explorar áreas em que não se consegue ter uma certeza. Em que você depende de uma mistura de sensibilidade, intuição e experiência para promover algum tipo de luminosidade. Em que para a inteligência é tudo muito escuro, oculto. Essa sabedoria pode estar no Budismo, no Islamismo, no Induísmo. Pode estar também com os índios das Américas, com grupos étnicos na África. Em todos esses lugares há uma produção impressionante de sabedoria.
No caso dos limites ambientais, o tempo para transformar os alertas da ciência em ação está praticamente esgotado. O senhor, que tem um forte trabalho inter-religioso, crê que as religiões podem participar dessa virada para um mundo mais sustentável? Como?
As religiões têm um papel importante. Mesmo as divisões dentro das religiões vêm pensando sobre isso. Posso falar mais do Judaísmo que eu acompanho. Há mais de 30 anos temos refletido sobre a conduta ética associada a questão da sustentabilidade. Os judeus, por exemplo, tem um regime dietético próprio com uma série de restrições. No final dos anos 1970 houve uma tentativa de expandir essa restrição alimentar. A comida não seria apropriada se tivesse, por exemplo, origem espiritual incorreta, como mão de obra escrava, contaminação por agrotóxicos etc. A ideia era gerar um hábito alimentar que fosse além da lei bíblica, mas que determinasse o que fosse espiritualmente mais apropriado também. Esse tipo de esforço é a tradição tentando abarcar razões como fizeram no passado. Talvez fosse importante naquela época proibir certo alimentos por questões de higiene ou qualquer outro motivo. Era uma tentativa de criar uma consciência de que deveria haver um engajamento diário nessa questão alimentar.
Na virada de 2000 para 2001, houve uma conferência das Nações Unidas que reuniu de todas as religiões do planeta – todas as lideranças religiosas estiveram presentes, com exceção do Dalai Lama, impedido por razões políticas da época. Até os esquimós estavam ali presentes. Me chamou atenção uma palestra do Ted Turner [empresário das comunicações, fundador do canal de notícias americano CNN]. Aquela figura com jeito texano me surpreendeu muito. Na época havia um submarino russo encalhado na região nórdica [no mar de Barent no Círculo Polar Ártico] e muitos esforços internacionais para salvar os marinheiros. Eles estavam a menos de cem metros de profundidade, e ninguém conseguiu salvar os caras. O Ted Turner usou esse caso e falou que a gente sempre acha que o mundo tem uma liderança e que tem alguém no controle. Mas na realidade não tem ninguém no timão. Nem o [Barack] Obama, nem a [Angela] Merkel, nem a Dilma. Eles se elegem assumindo para si responsabilidades. Você os considera líderes, mas eles não tem esse poder todo. É como a metáfora do transatlântico que vai indo, levado pelo seu peso. O planeta tem um peso, constituído por zilhões de interações e interesses que caminham numa certa direção. A gente tem que buscar impactos positivos mas o papa, o bispo, a presidenta, o imperador são apenas partes do movimento de todas essas interações. Em dado instante ganham valor, em outros perdem valor. O discurso do papa coaduna com esse momento, em parte liderando mas também buscando um empuxo do mundo para as instituições irem na direção que precisam ir. Mas ninguém tem controle sobre isso. A gente fica chocado que a inteligência humana não consiga tomar o timão para desviar do enorme iceberg que está bem a frente. Eu não tenho dúvida de que vamos bater. O que vai determinar a intensidade da batida vai ser o grau de mobilização dessa gigantesca malha de interações e interesses. A questão é que o mundo só consegue fazer essas guinadas de massa na hora que o navio raspa no iceberg.
É o que vemos em São Paulo. Enquanto a água não acaba, ninguém quer economizar. Talvez seja o caso de olhar o mundo por um prisma estatístico, como fez [o vigário inglês Thomas R.] Malthus. Quando há uma ignição desse processo coletivo, ele move montanhas. Mas o momento é extremamente inquietante porque estamos rumando ao iceberg e o desvio está sendo muito pequeno. Isso mostra como o ser humano não é regido por sua inteligência. Como o ser humano é uma conjugação de vetores de forças em que a inteligência tem o seu lugar mas existem outros componentes que o levam a um curso de colisão com a realidade.
Em entrevista reproduzida em seu site [niltonbonder.com.br] o senhor diz que na fala de megacientistas em geral há um certo teor religioso – religioso não no sentido dogmático, mas no sentido de tentar religar. Religar o quê? O mundo material ao mundo espiritual? A ida dos monges budistas ao MIT e vice-versa tem esse caráter de religação?
Esse religar é entender o valor de toda essa produção de conhecimento e em que ponto isso se vincula com a vida, com o universo. A física se tornou tão abstrata que não dá mais para criar modelos. Não é possível entender o que eles estão falando. Não dá para desenhar. O cientista fala de um lugar que é maior do que a nossa compreensão. Que exige um esforço de abstração que são quase crenças. Se chega a elas por deduções matemáticas, mas fica difícil de religar o que eles estão falando com o mundo que está aí fora, com a planta, com o ar, com a vida. Como essas coisas se encostam? Você vai ver na fala desses cientistas de ponta a presença da dúvida, do paradoxo. A presença de uma forma de inteligência que não é mais preto no branco, e que possibilita as coisas estarem em 2 lugares. Tudo isso rompe com a capacidade nossa de entender essa realidade. E para juntar tudo isso existe um processo de religar que eu acho que é o sonho de Einstein. Como tudo isso que ele vê conceitualmente se vincula com a realidade.
Sem querer colocar as coisas num mesmo lugar, muitas vezes a tradição religiosa usa de conhecimentos antigos e este espaço da sabedoria guarda muita proximidade com esses lugares extremamente abstratos e contemplativos da vida. Se você olhar um cientista de ponta verá que em algum lugar, além do laboratório, todos eles tem essa capacidade de ocupar um espaço de sabedoria. É um lugar onde estão intuindo e percebendo alguma coisa. É um lugar importante e que não é pequeno. Na tradição judaica, se você olhar o Zohar, que é a base da tradição cabalística, verá que os sábios já entendiam os conceitos holográficos. Conseguiam perceber que duas verdades não necessariamente se anulam. Que é possível ter uma multiplicidade de corretos atuando no mesmo lugar sem que nenhum deles esteja incorreto. Que gera paradoxos. Que gera olhares para o mundo contraditório. Onde há uma compreensão contemplativa da vida.
Nós todos temos instrumentos de pensamento. As parafernálias com que nos comunicamos só nos instrumentalizam em relação aos sábios do passado. Eu tenho a crença de que a sensibilidade do ser humano nos últimos 3.000 anos não é muito diferente. Nós evoluímos muito, mas um ser humano, que tenha vivido uma boa quantidade de vida nesse mundo antigo e que tenha sido uma pessoa contemplativa e cuidadosa, pode ter entendido tanto do universo quanto um cientista do século 21 pode entendê-lo. Claro que o cientista de hoje vê mais longe, vê micro e vê macro, tem instrumentos, tem metáforas para usar e linguagens que as pessoas não tinham. Mas quando chega na fronteira, onde você religa essa realidade, eles estão no mesmo lugar. Coisas que foram vistas no passado continuam tendo o mesmo potencial de serem vistas hoje. Podem ser traduzidas em matemática, em equações ou em efeitos totalmente novos que não eram conhecidos, mas do ponto de vista do ser, na sua existência com um projeto maior no qual nós estamos inseridos, eu acho que é igual.
Há textos judaico-cristãos com recomendações para que o homem explore e exerça domínio sobre a natureza. Teria sido essa a fundação do desenvolvimento científico e tecnológico que nos guiou até os limites ambientais dos dias de hoje?
Acho muito interessante a gente entender que esses valores não são absolutos. A vida pressupõe o valor de abrir espaço. Essa conquista, que não precisa necessariamente ser predadora, é parte da vida. A vida é uma constante batalha em busca de uma conquista. Todas as espécies animais e vegetais vivenciam isso. O texto bíblico dá voz a um valor da vida animal a qual pertencemos. Ele diz, vai a luta, briga pelos teus espaços, conquista a ciência. É o caminho pelo qual nós fomos e que teve uma série de efeitos colaterais. Se você olhar o texto bíblico vai ver coisas interessantes que remetem a sustentabilidade. A sustentabilidade aparece no texto da arca de Noé – aquele mesmo ser humano que estava ali conquistando a Terra. O texto bíblico é extremamente crítico desse ser humano egoísta. E Deus se arrepende da criação. Outras partes bíblicas traduzem uma relação econômica – o meio de produção era a terra e eles estabelecem uma reforma agrária impressionante. Algo de que nós nos afastamos totalmente, que era a ideia dos ciclos de 50 anos. Ao término de cada ciclo toda a terra era redistribuída. Havia os anos sabáticos. Havia a noção de parar para a terra descansar, de restabelecimento de um certo equilíbrio. É um tempo bíblico – aplicado aos judeus de 3.000 a 2.000 anos atrás. Mas esse conceito do que era a relação com o trabalho e a produção aparece de forma bem equilibrada. Há um conceito de reverência à terra. Em lugar nenhum está refletida essa conquista do mundo industrial que elimina espécies e que tem como o objetivo maior a produção pela produção, o crescimento pelo crescimento. Nunca vi um país que projetasse um ano sabático. Seis anos de crescimento para um ano de nenhum crescimento.
Mas o senhor não vê no texto bíblico nenhuma fala de dominação?
Acho que tem um antropocentrismo típico de quem está se valorizando e não tinha como ser diferente. Uma criança quando cresce se ela não se valorizar, não desenvolver autoestima para brigar e sobreviver… Acho que quando é dito para Adão e Eva “crescei e multiplicai-vos” é uma fala do passado, quando de cada três filhos dois morriam. Se o homem quisesse se dar bem como espécie, com tantos desafios, tinha que ter um monte de filhos mesmo. Hoje essa fala não tem mais o mesmo sentido. Talvez para sobreviver tenha que se dizer: Não se multipliquem. Aliás como já é feito na China.
A religião tem que estar em um lugar de sabedoria para ler o que está nas escrituras. A análise tem que ser construída com um olhar de interpretação. Não dá para fazer uma aplicação do que valia para 3.000 anos atrás. Se fosse assim não faria sentido olhar para nada do que foi escrito no passado. Um tratado sobre psicologia escrito há 100 anos eu posso, ou jogar no lixo, ou ter um interesse enorme. Ali tem um pensamento obsoleto e incorreções grosseiras, mas eu posso olhar e ver naquilo indicações preciosas do pensamento humano de observações e outras coisas que interessam. O texto bíblico é, nesse sentido, extremamente útil. Tirando essa poeira do envelhecimento de 3.000 anos, dá para reconhecer que os valores que predominam ali são de sobrevivência, mas dentro de marcos de sustentabilidade.[:en]Para o rabino e escritor Nilton Bonder, é preciso tirar 3.000 anos de poeira das escrituras sagradas antes de interpretá-las. Só assim suas mensagens farão sentido nos dias de hoje.
A seguir, os principais trechos da entrevista concedida em junho para a reportagem Encontros e Desencontros – como a sustentabilidade contribuiu para reaproximar ciência e espiritualidade após séculos de separação, publicada na edição 97 de Página22.
Cientistas convidaram monges budistas do Nepal para visitar o Instituto Tecnológico de Massachussets MIT e, depois, retribuíram a visita. O papa Francisco está lançando a encíclica Louvado Sejas, sobre mudança climática. Além dessas, várias outras manifestações apontam para uma reaproximação entre ciência e espiritualidade. Depois de séculos de separação, essa postura recíproca é um gesto de humildade?
Acho que nem é humildade. Nos últimos anos, as empresas, que são um lugar interessante de se observar os limites ambientais, vêm buscando enxergar as coisas de fora da caixinha. Não tem a ver com aceitação, tolerância. Acho que isso que você fala de reaproximação se refere mais às entidades – o Vaticano, o rabinato, a academia científica – do que com o ser humano tentando se entender, se conhecer. Sábias são as pessoas que conseguem explorar áreas em que não se consegue ter uma certeza. Em que você depende de uma mistura de sensibilidade, intuição e experiência para promover algum tipo de luminosidade. Em que para a inteligência é tudo muito escuro, oculto. Essa sabedoria pode estar no Budismo, no Islamismo, no Induísmo. Pode estar também com os índios das Américas, com grupos étnicos na África. Em todos esses lugares há uma produção impressionante de sabedoria.
No caso dos limites ambientais, o tempo para transformar os alertas da ciência em ação está praticamente esgotado. O senhor, que tem um forte trabalho inter-religioso, crê que as religiões podem participar dessa virada para um mundo mais sustentável? Como?
As religiões têm um papel importante. Mesmo as divisões dentro das religiões vêm pensando sobre isso. Posso falar mais do Judaísmo que eu acompanho. Há mais de 30 anos temos refletido sobre a conduta ética associada a questão da sustentabilidade. Os judeus, por exemplo, tem um regime dietético próprio com uma série de restrições. No final dos anos 1970 houve uma tentativa de expandir essa restrição alimentar. A comida não seria apropriada se tivesse, por exemplo, origem espiritual incorreta, como mão de obra escrava, contaminação por agrotóxicos etc. A ideia era gerar um hábito alimentar que fosse além da lei bíblica, mas que determinasse o que fosse espiritualmente mais apropriado também. Esse tipo de esforço é a tradição tentando abarcar razões como fizeram no passado. Talvez fosse importante naquela época proibir certo alimentos por questões de higiene ou qualquer outro motivo. Era uma tentativa de criar uma consciência de que deveria haver um engajamento diário nessa questão alimentar.
Na virada de 2000 para 2001, houve uma conferência das Nações Unidas que reuniu de todas as religiões do planeta – todas as lideranças religiosas estiveram presentes, com exceção do Dalai Lama, impedido por razões políticas da época. Até os esquimós estavam ali presentes. Me chamou atenção uma palestra do Ted Turner [empresário das comunicações, fundador do canal de notícias americano CNN]. Aquela figura com jeito texano me surpreendeu muito. Na época havia um submarino russo encalhado na região nórdica [no mar de Barent no Círculo Polar Ártico] e muitos esforços internacionais para salvar os marinheiros. Eles estavam a menos de cem metros de profundidade, e ninguém conseguiu salvar os caras. O Ted Turner usou esse caso e falou que a gente sempre acha que o mundo tem uma liderança e que tem alguém no controle. Mas na realidade não tem ninguém no timão. Nem o [Barack] Obama, nem a [Angela] Merkel, nem a Dilma. Eles se elegem assumindo para si responsabilidades. Você os considera líderes, mas eles não tem esse poder todo. É como a metáfora do transatlântico que vai indo, levado pelo seu peso. O planeta tem um peso, constituído por zilhões de interações e interesses que caminham numa certa direção. A gente tem que buscar impactos positivos mas o papa, o bispo, a presidenta, o imperador são apenas partes do movimento de todas essas interações. Em dado instante ganham valor, em outros perdem valor. O discurso do papa coaduna com esse momento, em parte liderando mas também buscando um empuxo do mundo para as instituições irem na direção que precisam ir. Mas ninguém tem controle sobre isso. A gente fica chocado que a inteligência humana não consiga tomar o timão para desviar do enorme iceberg que está bem a frente. Eu não tenho dúvida de que vamos bater. O que vai determinar a intensidade da batida vai ser o grau de mobilização dessa gigantesca malha de interações e interesses. A questão é que o mundo só consegue fazer essas guinadas de massa na hora que o navio raspa no iceberg.
É o que vemos em São Paulo. Enquanto a água não acaba, ninguém quer economizar. Talvez seja o caso de olhar o mundo por um prisma estatístico, como fez [o vigário inglês Thomas R.] Malthus. Quando há uma ignição desse processo coletivo, ele move montanhas. Mas o momento é extremamente inquietante porque estamos rumando ao iceberg e o desvio está sendo muito pequeno. Isso mostra como o ser humano não é regido por sua inteligência. Como o ser humano é uma conjugação de vetores de forças em que a inteligência tem o seu lugar mas existem outros componentes que o levam a um curso de colisão com a realidade.
Em entrevista reproduzida em seu site [niltonbonder.com.br] o senhor diz que na fala de megacientistas em geral há um certo teor religioso – religioso não no sentido dogmático, mas no sentido de tentar religar. Religar o quê? O mundo material ao mundo espiritual? A ida dos monges budistas ao MIT e vice-versa tem esse caráter de religação?
Esse religar é entender o valor de toda essa produção de conhecimento e em que ponto isso se vincula com a vida, com o universo. A física se tornou tão abstrata que não dá mais para criar modelos. Não é possível entender o que eles estão falando. Não dá para desenhar. O cientista fala de um lugar que é maior do que a nossa compreensão. Que exige um esforço de abstração que são quase crenças. Se chega a elas por deduções matemáticas, mas fica difícil de religar o que eles estão falando com o mundo que está aí fora, com a planta, com o ar, com a vida. Como essas coisas se encostam? Você vai ver na fala desses cientistas de ponta a presença da dúvida, do paradoxo. A presença de uma forma de inteligência que não é mais preto no branco, e que possibilita as coisas estarem em 2 lugares. Tudo isso rompe com a capacidade nossa de entender essa realidade. E para juntar tudo isso existe um processo de religar que eu acho que é o sonho de Einstein. Como tudo isso que ele vê conceitualmente se vincula com a realidade.
Sem querer colocar as coisas num mesmo lugar, muitas vezes a tradição religiosa usa de conhecimentos antigos e este espaço da sabedoria guarda muita proximidade com esses lugares extremamente abstratos e contemplativos da vida. Se você olhar um cientista de ponta verá que em algum lugar, além do laboratório, todos eles tem essa capacidade de ocupar um espaço de sabedoria. É um lugar onde estão intuindo e percebendo alguma coisa. É um lugar importante e que não é pequeno. Na tradição judaica, se você olhar o Zohar, que é a base da tradição cabalística, verá que os sábios já entendiam os conceitos holográficos. Conseguiam perceber que duas verdades não necessariamente se anulam. Que é possível ter uma multiplicidade de corretos atuando no mesmo lugar sem que nenhum deles esteja incorreto. Que gera paradoxos. Que gera olhares para o mundo contraditório. Onde há uma compreensão contemplativa da vida.
Nós todos temos instrumentos de pensamento. As parafernálias com que nos comunicamos só nos instrumentalizam em relação aos sábios do passado. Eu tenho a crença de que a sensibilidade do ser humano nos últimos 3.000 anos não é muito diferente. Nós evoluímos muito, mas um ser humano, que tenha vivido uma boa quantidade de vida nesse mundo antigo e que tenha sido uma pessoa contemplativa e cuidadosa, pode ter entendido tanto do universo quanto um cientista do século 21 pode entendê-lo. Claro que o cientista de hoje vê mais longe, vê micro e vê macro, tem instrumentos, tem metáforas para usar e linguagens que as pessoas não tinham. Mas quando chega na fronteira, onde você religa essa realidade, eles estão no mesmo lugar. Coisas que foram vistas no passado continuam tendo o mesmo potencial de serem vistas hoje. Podem ser traduzidas em matemática, em equações ou em efeitos totalmente novos que não eram conhecidos, mas do ponto de vista do ser, na sua existência com um projeto maior no qual nós estamos inseridos, eu acho que é igual.
Há textos judaico-cristãos com recomendações para que o homem explore e exerça domínio sobre a natureza. Teria sido essa a fundação do desenvolvimento científico e tecnológico que nos guiou até os limites ambientais dos dias de hoje?
Acho muito interessante a gente entender que esses valores não são absolutos. A vida pressupõe o valor de abrir espaço. Essa conquista, que não precisa necessariamente ser predadora, é parte da vida. A vida é uma constante batalha em busca de uma conquista. Todas as espécies animais e vegetais vivenciam isso. O texto bíblico dá voz a um valor da vida animal a qual pertencemos. Ele diz, vai a luta, briga pelos teus espaços, conquista a ciência. É o caminho pelo qual nós fomos e que teve uma série de efeitos colaterais. Se você olhar o texto bíblico vai ver coisas interessantes que remetem a sustentabilidade. A sustentabilidade aparece no texto da arca de Noé – aquele mesmo ser humano que estava ali conquistando a Terra. O texto bíblico é extremamente crítico desse ser humano egoísta. E Deus se arrepende da criação. Outras partes bíblicas traduzem uma relação econômica – o meio de produção era a terra e eles estabelecem uma reforma agrária impressionante. Algo de que nós nos afastamos totalmente, que era a ideia dos ciclos de 50 anos. Ao término de cada ciclo toda a terra era redistribuída. Havia os anos sabáticos. Havia a noção de parar para a terra descansar, de restabelecimento de um certo equilíbrio. É um tempo bíblico – aplicado aos judeus de 3.000 a 2.000 anos atrás. Mas esse conceito do que era a relação com o trabalho e a produção aparece de forma bem equilibrada. Há um conceito de reverência à terra. Em lugar nenhum está refletida essa conquista do mundo industrial que elimina espécies e que tem como o objetivo maior a produção pela produção, o crescimento pelo crescimento. Nunca vi um país que projetasse um ano sabático. Seis anos de crescimento para um ano de nenhum crescimento.
Mas o senhor não vê no texto bíblico nenhuma fala de dominação?
Acho que tem um antropocentrismo típico de quem está se valorizando e não tinha como ser diferente. Uma criança quando cresce se ela não se valorizar, não desenvolver autoestima para brigar e sobreviver… Acho que quando é dito para Adão e Eva “crescei e multiplicai-vos” é uma fala do passado, quando de cada três filhos dois morriam. Se o homem quisesse se dar bem como espécie, com tantos desafios, tinha que ter um monte de filhos mesmo. Hoje essa fala não tem mais o mesmo sentido. Talvez para sobreviver tenha que se dizer: Não se multipliquem. Aliás como já é feito na China.
A religião tem que estar em um lugar de sabedoria para ler o que está nas escrituras. A análise tem que ser construída com um olhar de interpretação. Não dá para fazer uma aplicação do que valia para 3.000 anos atrás. Se fosse assim não faria sentido olhar para nada do que foi escrito no passado. Um tratado sobre psicologia escrito há 100 anos eu posso, ou jogar no lixo, ou ter um interesse enorme. Ali tem um pensamento obsoleto e incorreções grosseiras, mas eu posso olhar e ver naquilo indicações preciosas do pensamento humano de observações e outras coisas que interessam. O texto bíblico é, nesse sentido, extremamente útil. Tirando essa poeira do envelhecimento de 3.000 anos, dá para reconhecer que os valores que predominam ali são de sobrevivência, mas dentro de marcos de sustentabilidade.