Entrevista concedida pelo professor titular em Psicanálise e Psicopatologia do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Christian Dunker, para a reportagem “Que lugar é este?“, publicada na edição 100 de Página22.
Qual a origem desse mal-estar entre brasileiros nos últimos tempos? Onde o “homem cordial”, descrito pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1930, entra nessa história?
No livro Mal estar, Sofrimento e Sintoma, da Editora Boitempo, eu analiso um sintoma social brasileiro, que é a vida em forma de condomínio. E a razão de ser dessa forma de vida é a segregação, a exclusão. [A vida em forma de condomínio é] a produção artificial de um grupo de pessoas que vai dividir a vida com baixos teores de diversidade. A ideia é que isso tem uma datação. Foi um grande ideal de consumo para as classes ascendentes de consumo dos anos 70 e 80 e que implicava toda uma outra maneira de lidar com funcionários, não mais membros da família, mas pessoas de uniforme, profissionalizadas, impessoalizadas e invisibilizadas. Essa forma de viver surge como empreendimento imobiliário mas vai se desdobrando para a nossa sociedade em geral. Nas corporações, na política, na escola têm versões dessa vida em forma de condomínio, com um outro padrão de autoridade, que não é mais o coronel, mas o síndico. O condomínio é uma máquina de produção de intolerância no longo prazo.
Essas pessoas passam a não mais aceitar a diversidade?
Chega um momento em que descobrem que aquele pequeno cosmo é artificial e falso e começa a ter de lidar com a problemática do retorno ao espaço público, a uma diversidade para a qual elas não estão habituadas. Isso vai aparecer nas manifestações de agressividade, no trânsito, na linha de metrô que vai passar, na paisagem que vai se estragar. Uma absoluta falta de negociação com o espaço da diversidade. Porque foi criada numa espécie de curva de redução de diversidade social, estética, de valores, de gênero. O custo que você tem para criar essa vida controlada, como se viu nos filmes Alphaville, Admirável Mundo Novo, Blade Runner, é a redução, o extermínio do outro que seria diferente.
Um outro trabalho, que concorreu ao [prêmio] Jabuti [de literatura] e ficou entre os 10 primeiros colocados, é o Raízes da Intolerância no Brasil [organizado pelo professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos João Ângelo Fantini]. É uma discussão com os nossos sociólogos clássicos – Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre – em torno de que fim levou o homem cordial. Se hoje a gente tivesse de refazer essa problemática que o Sérgio Buarque de Holanda descreve no Raízes do Brasil, em que patamar estaríamos?
Nesse trabalho eu mostro como no fundo o homem cordial era uma hipótese que foi alocada para entender dois problemas. Um, o da educação laica. Como, naquele momento, as famílias que podiam oferecer educação formal para seus filhos se viam com o problema de transferir essa tarefa para o Estado? Havia uma tensão de autoridades – a da família e a da sua genealogia herdeira do latifundiários das Sesmarias e a do Estado. Nos anos 1920 ou 1930, esse conflito se manifestava em se essas famílias deviam ou não enviar seus filhos para o ensino do Estado. O que o Estado vai ensinar? Que o mundo é maior do que a sua família, que existem outras famílias e que no fundo o conflito é a regra e não um sinal de que o sistema está sendo perturbado. Que o conflito se dá entre os diversos interesses, que é marcado pela diversidade de distinções. Um tem mais dotes, um trabalha menos, um faz valer as suas habilidades. É isso que a educação feita pelo Estado vai propiciar.
No fundo, o homem cordial é aquele cara que aceita a educação pelo Estado mas não aceita os seus fundamentos. Mas ele sabe que ele é aquele Estado das grandes famílias, dos donos do poder.
Então, é uma espécie de sistema em que a gente tolera a diversidade, cuida dos mais fracos, protege aqueles que não tem, mas, indiretamente, isso é uma espécie de concentração e amealhamento de mais poder. O famoso paternalismo tem uma ligação umbilical com o homem cordial.
E a segunda hipótese sobre o homem cordial?
A segunda questão diz respeito ao homem cordial do ponto de vista daquele que é o mais fraco na história, é o escravo. Para estabelecer o homem cordial, Sérgio Buarque de Holanda vai retomar uma tragédia grega, a tragédia de Antígona. Aliás, [Jacques] Lacan também faz isso em suas teses de renovação da psicanálise. A leitura clássica da Antígona – filha de Édipo que não obedece a Creonte, ou não obedece ao Estado, e acaba assassinada. Mas ela não obedece por achar que estava com a razão justa, por entender que pode enterrar o irmão. O chefe de Tebas deixara o irmão de Antígona ser comido pelos abutres por ter agido contra o Estado, mas para ela todo mundo tem direito a um funeral justo e a ser lembrado. Então, ela, uma mulher, decidiu enfrentar o poder do Estado em nome da autonomia e da justiça. Sérgio Buarque pega essa tragédia para falar do homem cordial do ponto de vista do escravo. Como ele pode fazer valer, dentro desse princípio de cordialidade, uma lei que é contra o Estado e, mesmo assim, justa.
Atualizando esse debate, a gente vai ver que os dois polos chegaram numa espécie de ponto de esgotamento. Os menos privilegiados desistiram da ideia de jogar o jogo para ser reconhecidos e partiram para a violência, para fazer os seus direitos pela força direta, pela insubmissão. Vimos nas passeatas, ocupação de escolas. Do outro lado, o esgotamento desse processo dos donos do poder em função da impossibilidade de gerir, de formar um grupo coeso que tenha acordos mínimos para distribuição e partilha do poder.
E como o senhor entende esse período de intolerância no nosso país do ponto de vista da psicanálise?
Nós não educamos gerações para olhar para o conflito como uma situação interessante, como uma situação que é um motor do processo transformativo, um motor da invenção de outros mundos, o princípio pelo qual a gente, junto, mesmo não sendo igual, pode ir a frente.
Quando a gente não tem o equipamento simbólico – do ponto de vista da psicanálise – quando a gente não entende que o conflito é produtivo, a diversidade vai aparecer como ameaça. A diversidade vai aparecer como a suspensão desse acordo provisório e isso é um convite à violência, que em parte é sentida sempre como violência do outro. Na lógica da segregação e da intolerância, nunca sou eu que sou violento porque estou lutando pelos meus interesses com os meios que eu tenho. É sempre uma reação ao outro que está pisando fora do território dele, que está dizendo coisas que ele não pode, que está levando uma vida que ele não deve, que está gozando de uma forma que não é comensurável com a minha.
Por que uma pessoa que tem uma orientação de gênero, uma fantasia sexual diferente da minha, vai me perturbar? Em princípio não haveria qualquer motivo para que uma pessoa se indignasse com outra que está andando de mãos dadas na paulista com outra do mesmo sexo. Ou casando, ou querendo direitos que ajudem a vida em comum. No fundo, tem uma suposição que aquele grupo, pessoa, tipo social está furtando um fragmento do meu gozo. Os sacrifícios que eu fiz para ser o que eu sou não foram sacrificados pelo outro. Então imaginariamente – uma leitura relativa a um mal tratamento do próprio desejo – eu vou localizar no outro ameaça, ciúmes, inveja. O outro está trapaceando o jogo.
Se esse sujeito está na posição periférica em relação ao poder, excluída em relação às leis, vamos dizer, nas cercanias da cidadania, ele não pode ter mais do que eu. Isso é de um atraso, de um anacronismo impressionante do Brasil. É do Brasil. Não é nem da América Latina e não tem nada a ver com subdesenvolvimento econômico.
É um modo de ser intolerante genuinamente brasileiro?
Há um equivoco herdado da nossa crença no desenvolvimentismo, dos nossos problemas crônicos com a economia. Acho que é uma espécie de ocupação da diferença econômica por outras diferenças mais propensas à segregação, à intolerância e ao preconceito. Porque essa ligação do econômico com outros sistemas simbólicos faz parte do nosso atraso, da nossa crença de que a pobreza induz ao crime. Isso é falso. Em locais muito mais pobres que o Brasil, na África, tem muito menos tensão social e crimes. A gente acha que a violência vem do fato de que os mais pobres não se conformam em ser mais pobres. E é verdade, só que não se pode tratar essa diferença com interpretações tão simplistas.
Isso tudo não faz parte da velha luta de classes?
Isso tem uma relação paralela com a luta de classes. Não é o conflito de classe mas o ressentimento de classe. Diferenças de classes há em todos os lugares, mas não é em todo lugar que essa diferença gera um ressentimento. Nos Estados Unidos é muito mais ressentimento de raça, de gênero ou contra estrangeiros do que o ressentimento de classe, mesmo tendo diferenças de classe muito importantes. No Brasil, não. É como se essa diferença de classe evoluísse para um ressentimento de classe e as outras formas de ressentimento vão sendo catalisadas – a de gênero, de raça, de cultura, de região, a etária.
E no campo filosófico, quais são as teorias para a intolerância?
[Theodor] Adorno tinha a seguinte pergunta: o que faz de alguém autoritário? Como as pessoas entram em sistemas fascistas que são, no fundo, sistemas de recusa radical de diferenças? A diferença é tomada como o principal diagnóstico de porque a gente não avança e não progride. Então a diferença tem de ser eliminada. A partir disso tem alguns processos clássicos. Um deles é a concentração da diferença num personagem. No caso da Alemanha nazista, os judeus. De Stalin, os capitalistas. Do Duce [Benito Mussolini], os traidores do fascismo. Mas Adorno encontrou uma espécie de constância na atitude do sujeito em relação à diferença. O sujeito que tem a personalidade autoritária se dá mal com diferença de gênero, de classe, de raça. Ele se dá mal com diferenças. E o que se tem é uma explicação de correlação. A personalidade autoritária não consegue usufruir dos benefícios de uma experiência social orientada para o diverso.
E como surge essa personalidade?
Essa relação teria a ver com escala cognitiva ou com a escala de educação formal. O que se encontra é que isso não bate, não é bem verdade. Você pode ter um manejo equivocado da diferença em situação de escassez econômica e de fartura econômica. A lógica desse negócio depende de um processo que é estudado pela psicanálise, pela psicologia, sociologia, filosofia que chamamos de lógica do reconhecimento. A escassez ou a fartura não são dados com valores objetivos. Dependem de uma interpretação de como essa distinção se produziu. Por exemplo, se você interpreta que isso é uma missão divina: de um lado Deus escolheu um para cá e um para lá, você vai lidar com essa diferença numa razão teológica. Se você interpreta essa divisão a partir de valores éticos: nós somos trabalhadores e aqueles lá não são trabalhadores, levamos o conflito para o plano ético. Tudo começa em como você reconhece e interpreta a existência da diferença, da desigualdade e da distribuição da riqueza.
O segundo capitulo dessa história diz respeito ao seguinte. Você possui determinados bens simbólicos ou materiais. Como o seu desejo se liga com isso? Como você faz reconhecer o seu desejo nessa situação? A estrutura dessa coisa é de luta, mas luta não quer dizer violência ou uso da força. A pergunta é em torno do por que se dá essa luta. E a resposta que parece mais interessante, porque subordina as outras, é que essa é uma luta pelo reconhecimento. Mas o que se quer ver reconhecido é o desejo e não as posses – as posses são parte do desejo. Quando eu estou numa posição de fartura, como eu quero que o outro me veja com esses atributos? Eu quero que ele me identifique com atributos que tem história? Ou com atributos que são uma pura imagem? Posso escolher praticar um tipo de consumo que vou ser reconhecido pela minha Ferrari vermelha que custa um milhão de reais e não pela história que me levou a comprar essa Ferrari. Isso é uma escolha. Posso ser reconhecido por alguém que tem ego divino e foi eleito por Deus para ter uma Ferrari, ou por alguém que estudou e trabalhou a vida inteira, construiu uma relação de poupança e que chegou nesse objeto que é um símbolo da sua história. Você escolhe e propõe para o outro como quer ser reconhecido.
Outro ponto crucial é que na hora em que você exibe a sua Ferrari tem que ter alguém do outro lado que entenda a diferença entre uma Ferrari e um Jaguar. Se não houver, se trata de uma espécie de sonho hiperindividualista, de um sonho alienado em que você está se exibindo para um outro que não sabe entender o que você esta propondo. Aí se cria um tipo de tensão. Mas ele vai ler que você está propondo uma mensagem, um apelo de reconhecimento que é sentido como intrinsecamente violento e intrinsecamente excludente. Vamos dizer que eu começo a falar com você em finlandês. Como você vai se sentir? Poxa, o Chris está querendo se exibir e está me excluindo. A fartura e o excesso não foi signo de uma história que precisa ser contada. Foi apenas signo de uma marca que precisa ser exibida. Isso é péssimo porque é incitação à violência. Incitação à intolerância. É exclusão simbólica. Cedo ou tarde, o que está do outro lado vai reclamar. E vai mostrar que não está reclamando porque o outro tem e ele não. Vai reclamar da gramática, da regra do jogo.
A internet e suas redes sociais simplificam ou agudizam esses conflitos?
Ela tenta levar a lógica para o dois, para a dualidade. Se você não está comigo está contra mim. Mas eu acho que a internet no Brasil é um fator de democratização. Não é à toa que a gente é consumidor top 10 de comunicação em rede. Isso chega a espantar os anglo-saxões. A nossa cultura valoriza o contato, a presença do outro. Nós temos apreço pela conversa longa. Populações inteiras se reconectaram. As pessoas vinham do Nordeste para o Sul e Sudeste e suas famílias permaneciam num isolamento que gradativamente aumentava as diferenças de cultura, os ressentimentos familiares. De repente, isso foi suprimido. A gente não tem ideia do que foi esse recontato do Brasil com ele mesmo. Produziu uma circulação de valores, de interesses e afeto, sobretudo, essa leitura que a gente faz do outro e do nosso lugar no mundo.
Acho que muito do que está havendo em termos de intolerância e violência é que têm atores políticos e populações inteiras que jamais opinaram, que não tinham discurso político. O nível de conversa sobre a politica se expandiu brutalmente no País e isso tem consequências. São gerações novas que não tiveram uma formação no sentido mais tradicional e estão aprendendo. É claro que vai aparecer o malandro que vai falar três oitavas acima que não queremos voltar para os comunistas e vai amealhar um grupo de pessoas incautas, ingênuas. Eu não criticaria esse movimento em si. Ele torna a sociedade mais tensa, mas é um avanço. Pois pela primeira vez no Brasil a gente tem uma conversa que inclui todo mundo.