Um nome está por trás da técnica da Integração Lavoura Pecuária Floresta (ILPF): João Kluthcouski, ou para simplificar, João K, engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Arroz e Feijão. Nesta entrevista concedida à Página22, na véspera de uma visita à fazenda-modelo Santa Brígida, em Ipameri (GO), em início de abril, João K contou como esse sistema foi implantado para elevar a fertilidade do solo do Cerrado e como está avançando agora para áreas arenosas no Oeste paulista, no Paraná e no Oeste baiano. Leia mais sobre ILPF aqui e conheça também o próximo passo, que é ampliar a técnica para os pequenos produtores.
Quando e como toda essa história de ILPF começou?
Vamos voltar lá atrás. As nossas áreas de baixa produtividade de pastagens vêm de 40, 50 anos atrás, mais precisamente da década de 60 quando foi introduzida a tal braquiária aqui na região do Cerrado. Ela foi implantada sem tecnologia em um solo extremamente fraco e logo perdeu o vigor.
O que é um solo fraco?
É um solo que não tem nutrientes, que não dá condição para você produzir. É ácido, sem nutrientes para a planta crescer. Ainda no final da década de 70, essa questão nos comoveu. Nós queríamos queria ajudar os produtores a recuperar esses lugares e a reduzir riscos. Naquela época se perdia muita lavoura. O gado, na entressafra, perdia muito peso, 270 gramas por dia. Enquanto no verão ganhava alguma coisa, no inverno ele perdia. Virava uma sanfona.
Já era o Nelore?
Já. Não a raça tão apurada como nós temos hoje, mas era o Nelore e o Gir. E hoje, nem um país de 800 milhões de hectares, temos 300 a 350 milhões desmatados, sendo que em 50 milhões estão os grandes exportadores de soja. Da área desmatada [e/ou degradada], 200 milhões são ocupados por pastos, com um rebanho de 200 milhões de cabeças. A rotação equivale a 1/4, 1/5 do seu potencial, considerando a tecnologia que está aí no mercado. Então veja o quanto é importante nós trabalharmos toda essa área de degradação. Trabalhar o solo e criar um ambiente em que a gente possa produzir soja, produzir milho ou outras espécies de altíssima produtividade. Já estamos chegando [no sistema ILPF] a uma produtividade de 6 toneladas de soja por hectare em alguns campos. Já tem muitos produtores com 15 mil quilos de milho, o que dá 250 sacas por hectare. Isso é incrível: estamos chegando ao patamar dos americanos! Então você perguntou quando nos começamos? Começamos na década de 60 e 70, quando já visualizamos que um dia precisaríamos dessa área degradada. E então começamos a trabalhar para recuperá-la.
Como recuperar uma área exaurida?
Começamos a trabalhar introduzindo grãos. Porque a gente sempre entendeu que a pecuária tem de ser subsidiada, então eu faço a estrutura de soja e de milho, pago as contas e tenho um pasto literalmente de graça. A minha arroba produzida é barata. O meu litro de leite produzido sai barato. É assim que tinha de ser e é assim que foi feito dentro do processo de integração. Só que chegamos a um limite que nós mesmos não acreditamos. Estamos fazendo quatro colheitas tanto aqui no solo de Goiás, como no solo do Mato Grosso, como na areia [terras arenosas] de São Paulo lá em Presidente Venceslau e Presidente Prudente. Quatro safras só com chuva. Sem irrigação.
Nós entramos com a soja em uma parte da fazenda – porque a fazenda faz rotação de culturas –, e em seguida, na safrinha, nós colocamos o milho depois da colheita da soja. Colocamos e colhemos o milho. Poucos dias depois que colheu o milho, vem o boi. Ele entra “pastejando” na época mais crítica que não tem pasto para ninguém. Tiramos o boi e formamos a palha e a matéria orgânica para dar sustentabilidade ao solo . Eu estou chamando de quarta safra esta safra de palha, tá? Essa é a maior virtude que eu considero nesse processo de integração. É um processo que te permite até quatro safras. O próximo ano vai ser mais produtivo ainda do que este, porque a tendência é sempre de melhoramento do solo.
Melhora porque vai retendo matéria orgânica?
Ele vai acumulando matéria orgânica. Sem matéria orgânica em solo tropical, esquece. Não tem jeito de produzir. O nosso negócio é gerar matéria orgânica. Mas antes eu não tinha uma fórmula.
O próprio sistema gera essa matéria, sem introduzir de fora como se faz na Europa com o composto orgânico?
Sem introduzir. Na Europa o clima é temperado. Aqui a nossa geração de matéria orgânica é muito alta com o clima quente. Então, estamos produzindo e gerando matéria orgânica sem sentir.
E qual a finalidade da floresta, que na verdade são fileiras de eucalipto?
É uma floresta de eucalipto, mas pode ser de mogno, por exemplo. Nós difundimos a forma de renques. Você planta duas, três fileiras de eucalipto, deixa um espaço de 50 metros, planta mais duas ou três e o boi vai dentro. Vai a soja primeiro, vai o milho e depois vai o boi. O boi fica lá de 3 a 4 anos. Enquanto isso, essa floresta cresce, e no sexto ano a gente começa a reduzi-la, vendendo a madeira.
E o eucalipto vai rebrotando?
Ele rebrota duas vezes. Mas já estamos chegando à conclusão que a rebrota não é tão econômica quanto plantar de novo. A finalidade da floresta é gerar bem estar animal. O animal que tem uma sombra durante o dia, principalmente nas áreas quentes, rende 20% a mais em ganho de peso. Isso é incrível! Ele rumina melhor, tem mais tempo de ócio, o batimento cardíaco é normal, a respiração é normal. Só pelo fato de ter sombra pro animal. Dizem que o Nelore não sofre por ser branco. Negativo. Todo animal sofre. O europeu, então, o gado leiteiro, sente muito. Então para que a floresta é muito importante? Para a pequena propriedade. Para quem tem pecuária leiteira e principalmente para quebra vento. O que mais seca pasto em São Paulo e no Mato Grosso é o vento. Por isso estamos cercando os corredores e as divisas das fazendas com quebra vento de eucalipto e com outras espécies. Isso vai resultar em um pasto mais verde durante o ano. Só que no sexto ano você corta e ganha dinheiro [com a venda da madeira]. Então você vê o tanto de lucro?
A floresta é importante como quebra vento para pequena propriedade. Evidentemente que para a grande também. Só que a grande que usa um avião agrícola não vai botar um eucalipto para atrapalhar o voo. Vai colocar em pontos estratégicos da fazenda.
Avião agrícola é para despejar agrotóxico?
Ou para semear. Hoje em dia usamos avião para semear braquiária, por exemplo. E ai você me pergunta sobre as máquinas: como fica o pequeno e médio produtor? Tem pra todo mundo. Nós criamos uma “motosemeadora”. Uma motocicleta que semeia. Acabamos de lançar um equipamento que joga calcário lá embaixo no solo para a raiz crescer mais. Você tem máquina de plantio pro pequeníssimo, pro médio, pro gigante e pro super gigante. Temos programas federais como o ABC [Agricultura de Baixo Carbono] que dá R$ 2 milhões por CPF e tem sistema de financiamento com até oito anos de carência para começar a pagar. Então temos máquina, dinheiro, terra e clima. E temos um produtor rural que precisa ser bem estimulado porque o pecuarista nosso é resistente à inovação. Só que eles vão quebrar economicamente. Então, antes de quebrarem temos de alertar para o ricos de quebrarem. Porque o “lavoureiro” agora esta entrando em negocio de boi. Aquele sojicultor, o milhocultor, o sorgocultor está produzindo boi e o boi dele é baratinho.
Daria para fazer aqui no Cerrado algo como o Leontino fez em Sertãozinho? [Leontino Balbo Jr, maior exportador de açúcar orgânico do mundo; leia entrevista aqui)
Depois de você trabalhar 10 anos adubando bem você começa a ter um solo como o de Ribeirão Preto. O eucalipto lá cresce por segundo. Você vê ele crescer. Da terra tão boa que é.
Nós pegamos uma tarefa agora que é a mais nobre da nossa vida. Mexer com arenitos. O Brasil dispõe de 200 milhões de hectares de solos arenosos. Com menos de 20% de argila. Isto é péssimo porque estes solos eram considerados inaptos para a pecuária e agricultura. Não fixa nada, não tinha financiamento bancário, Embrapa não fez pesquisa porque era proibido, pois o risco era muito grande. Qualquer seca que você tenha, você perde a lavoura. Mas graças a um belo produtor que nos achamos em Rancharia, começamos em 2011 a criar um sistema. Criamos em dois anos e estamos fazendo já três a quatro safras também com risco zero, em Presidente Venceslau, Presidente Prudente e Rancharia e também no arenito Caiuá, no Paraná. E estamos fazendo isto na Bahia, no Oeste baiano, que é pura areia também. Sabe qual o sistema que funciona lá? Só um: Integração Lavoura Pecuária. E você sabe qual o segredo? Braquiária, matéria orgânica e palha. A areia esquenta muito e não segura nada. Não é uma esponja. A água cai aqui em cima e já está lá embaixo, então precisa de matéria orgânica para mudar esse comportamento. E a braquiária consegue. Eu não posso falar muito alto que a braquiária faz tudo se não a gente perde o emprego [risos].
Planta-se a braquiária e deixa a palha dela lá?
Por exemplo, eu planto a braquiária junto com o milho. Eu colho o milho e deixo a braquiária crescer; eu ponho o boi e o boi come. Quando chega por volta de setembro, outubro, começa um novo ciclo de chuva. Eu vedo a área, deixo a braquiária encorpar, decepo e formo aquela cama [de palha]. Deixo o boi comer até outubro, depois tiro para ela crescer, decepo novamente e aí começo todo o novo ciclo. Isso Vai formando uma camada de palha e material orgânico. O grande negócio nosso é a atividade biológica. O que é a atividade biológica? Carbono. O microorganismo é carbono. O que é carbono? É palha. Aí eu tenho a condição de colocar a “gasolina”, que é o nitrogênio.
Mas o agrotóxico que é jogado na lavoura não mata esses microorganismos?
Não! Mata em parte. Veja bem, os inseticidas, via de regra, não matam os microorganismos, só matam insetos. Não matam bactéria e não matam fungos. Mas se você joga um bactericida, aí você destrói. Tem alguns produtos usados na cana que, se a pessoa ingerir meio mililitro, morre.
Existe algum controle do uso disso?
Nenhum. O Brasil é líder mundial em uso de veneno. Aumentando 10% a cada ano. Importando milhares de venenos do Paraguai. Produtos chineses que matam tudo, inclusive o operador da máquina.
Como a ILPF pode ajudar a diminuir isso?
A palhada de braquiária e os produtos oriundos da decomposição atuam como fungicida natural. Matam os fungos. O nosso papel na agricultura é povoar o solo com microorganismo bom. Agora nós estamos transformando esta fixação biológica na soja também nas gramíneas.
Ate então não tinha?
Não tinha, isso é uma novidade da Embrapa Cerrados. Estamos levando pro Brasil todo. Você vai gastar menos insumos, ter menos doença de solo e mais produção.
Então o futuro está na biologia?
A biologia é fundamental para tudo. Nos perdemos o freio da biologia quando nos trabalhamos agressivamente como os agrotóxicos. Só que o custo de produção tá tão alto que estamos tendo de voltar. Quando jogava veneno você não respeitava os inimigos naturais. Você lembra da joaninha que é capa de muita revista? Acabou. A tesourinha do milho? Acabou. Só que a população dela volta na medida em que começarmos a ser menos agressivos jogando produtos. Você pode jogar produto químico – mas o correto, e não essas porcarias que vêm da China. O Brasil é líder mundial em numero de venenos É a mesma coisa que o 7 a 1 da Alemanha. O Brasil deveria ser o líder mundial em produção orgânica.
Por que o Brasil entrou nessa onda tão agressiva dos venenos?
Em primeiro lugar, por pressão da indústria das multinacionais. Em segundo lugar, pelo desequilíbrio ambiental. Nos desequilibramos de tal forma o ambiente, que não tinha outra forma. Então hoje alguém diz assim: “Se você quiser morrer de fome, passe a não usar agrotóxico, você vai morrer em um mês. Se você quiser permanecer mais dez anos vivo, coma os produtos de agrotóxico”. Claro que isso é uma brincadeira, porque temos chance de voltar à nossa agricultura, não para zerar o uso de veneno, mas para reduzir em ate 60%, 70%. E um maior controle porque o Brasil é um pais típico que fiscaliza a embalagem e não o produto. Essa associação ANVISA vai fiscalizar a embalagem se o cara lavou direitinho ta devolvendo mas não fiscaliza na hora da aplicação. Fiscaliza a embalagem do agrotóxico não o agrotóxico. É uma pais …
Na Universidade Mato Grosso, uma estudante de pegou em Lucas do Rio Verde 64 nutrizes, mulheres amamentando. Mulheres urbanas, só 3 da área rural. Essas 64 nutrizes estavam com pelo menos uma molécula de veneno no leite. E as que tinham 3 ou mais abortaram [acesse o estudo aqui]. As multinacionais não deixam divulgar isso aí, não.
E o transgênico nessa história? Se a ILPF já aumenta produtividade, é preciso ter transgênico?
Eu sou literalmente contra. Sempre fui contra por duas razoes: o transgênico está levando todo o dinheiro para duas empresas no mundo só. E o transgênico é desnecessário porque nos já estávamos produzindo muito bem sem ele. Ele entrou caiu a produção.
Por que caiu?
Caiu porque as cultivares que aceitavam a transgenia eram menos produtivas. Assim foi com a soja RR. Agora quero te dar uma ótima notícia: o milho BT transgênico se lascou, acabou, as pragas estão atacando até mais do que o normal. Não evolui. Deus fez a natureza pra gente cumprir os passos dela. O inseto não é mais burro que nós, não. Ele é muito mais inteligente que a gente. Ele está aí há muito mais tempo que a gente.