Pesquisadores derrubam mitos e buscam caminhos para viabilizar a restauração do Cerrado, processo que requer técnicas próprias
Esta é a quarta de uma série de reportagens sobre restauração florestal, em parceria de Página22 com o projeto MapBiomas. Leia aqui a primeira, a segunda, a terceira e a quinta.
A luz do inverno tipicamente seco amplia o contraste dos tons de verde e diferencia com nitidez as fisionomias da vegetação que restou no entorno de Brasília. Da capital federal, são 60 quilômetros na rodovia DF- 120 rumo a Leste até a Fazenda Entre Rios, na região de Planaltina. Com 1,1 mil hectares, a propriedade poderia ser como outra qualquer em meio àquele platô, onde tradicionalmente predomina a preocupação com os números da produtividade e do faturamento. Lá, porém, a visão é mais ampla. Um pedaço de terra de ótima aptidão produtiva, equivalente a 70 campos de futebol, encontra-se livre do gado e do cultivo de grãos. Abriga experimentos de campo que estão na ponta da corrida científica para entender a intrincada dinâmica da natureza e viabilizar a recuperação florestal no bioma brasileiro líder do agronegócio: o Cerrado.
Da gabiroba ao baru, “trazer árvores nativas de volta às propriedades rurais é o tema do momento, na esteira do Código Florestal, mas devemos oferecer um portfólio de soluções baseadas na peculiar biologia da região e no grau de impacto das atividades econômicas no solo”, ressalva José Felipe Ribeiro, pesquisador da Embrapa Cerrados e integrante do Projeto Biomas [1], desenvolvido em parceria com produtores.
[1] Conduzido em parceria com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), objetiva apresentar aos produtores rurais modelos de uso da árvore com fins econômicos e ambientais
A reconstrução exige colocar as espécies certas nos lugares adequados, e nem sempre o caminho é cultivar árvores, como a maioria das pessoas imagina. O Cerrado derruba o mito: muitas vezes o esforço está em repor gramíneas ou arbustos. “Não podemos plantar floresta onde originalmente havia campo”, ilustra o cientista, ao defender o conceito de “ecologia da restauração”, que considera a biologia das espécies – e não o de “restauração ecológica”, voltado para o marketing e a “aplicações imediatas de interesse das empresas”.
Deixar a vegetação regenerar naturalmente, sem intervenção, ou fazer plantios de espécies nativas? E esses devem ocorrer por meio de mudas ou de sementes? Qual método tem menor custo e risco, a partir das condições locais, sendo mais viável para o cumprimento da lei? É possível a restauração gerar receita? Na busca por respostas, estudos coordenados por Ribeiro abrangem diferentes modelos de repor a cobertura original do bioma – e, dentro deles, inúmeras técnicas. Um objetivo é achar o melhor arranjo com árvores de maior porte e vegetação rasteira para mais aproveitamento da luz e nutrientes, com maior diversidade de espécies. “Queremos saber agora quanto de água é retida no solo e quanto de biomassa é mobilizada pelos diversos métodos”, conta o biólogo.
O maior desafio científico, porém, é outro: “A luta contra um poderoso invasor, o capim das pastagens”, ressalta Daniel Vieira, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, também no Distrito Federal. Na Fazenda Entre Rios, onde são conduzidos 17 experimentos de restauração, chama atenção uma área onde no passado havia pasto e agora está densamente coberta por uma gramínea nativa dourada, a arístida, também conhecida como capim-rabo-de-raposa. Sob aquele manto, escondem-se centenas de “filhotes” de árvores em crescimento – cinco plantas por metro quadrado, totalizando 30 espécies entre cagaita, tamboril e outras que brotaram após o plantio das sementes. O plano é preencher o solo na tentativa de vencer a voraz braquiária [2] cultivada para alimentar o gado. Solos mais pobres, como o daquela área, podem favorecer as espécies nativas na competição com a forasteira. “Só o tempo dirá se o sistema oferece resistência à invasão ou se teremos que conviver sempre com a luta”, afirma Vieira.
[2] Nativa da África, foi introduzida no Brasil como planta forrageira e tornou-se invasora de diversos ecossistemas brasileiros. Além dela, o capim-gordura apresenta a mesma ameaça
Na área vizinha, o biólogo mostra os testes com a lobeira, árvore de fruto grande apreciado pelos lobos-guarás, boa no controle do capim daninho. Não longe, a estratégia é entremear árvores não nativas de interesse econômico, como eucalipto e seringueira, com fileiras de ipê-roxo, jatobás e outros representantes tipicamente do Cerrado. O propósito é fazer sombra para impedir o crescimento das plantas indesejáveis e gerar receita com a restauração de Reserva Legal, obrigatória para as propriedades. “Faltam dados de longo prazo para saber se de fato é possível devolver as condições originais ao Cerrado, mas estamos no caminho”, diz Vieira, com um lembrete: “Até outro dia estávamos aprendendo a desmatar”. Para o biólogo, é necessário empoderar e engajar o produtor rural e testar métodos que ele próprio possa aplicar. Além disso, como há incertezas sobre o que funciona ou não, o monitoramento das áreas restauradas é indispensável para evitar a mortalidade [3] de plantas.
[3] Estudo da Universidade de Brasília e da Embrapa mostrou que apenas 7 de 54 plantios de floresta – como compensação ambiental de obras no Distrito Federal –tinham mudas vivas
No Cerrado [4], há peculiaridades a considerar. Devido aos solos ácidos, à baixa fertilidade e ao clima seco em seis meses do ano, as plantas crescem mais lentamente. Elas investem mais energia para desenvolver as raízes do que para o crescimento dos troncos com os galhos e as folhas, produzindo menos sementes. Assim, para a reprodução, as espécies do bioma em geral têm alta capacidade de rebrotar. São resistentes. No entanto, quando se revolve o solo e o destrói junto com o banco genético, a regeneração natural se torna difícil – em alguns casos, impossível. A presença de reservas naturais nas propriedades ou no entorno ameniza o problema, ao permitir a disseminação de sementes pelos animais e até pelo vento, o que é pouco valorizado pelos produtores.
[4] Com 240 milhões de hectares, o bioma tem hoje 51,1% da cobertura original
Em resumo: essas e outras condições impõem estratégias diferentes de restauração florestal em comparação às aplicadas na Mata Atlântica, onde as técnicas são mais estudadas e conhecidas. Há também que levar em conta as diversas fisionomias de paisagem, desde os campos rupestres aos cerradões e florestas, totalizando 15 tipologias diferenciadas conforme o solo, o relevo e a presença de água, por exemplo. “Reconhecer a complexidade é importante para aliar produção e conservação”, analisa Ane Alencar, pesquisadora do Ipam que coordena o mapeamento [5] das várias tipologias do Cerrado, com uma preocupação: “O regime de fogo nos limites naturais do bioma promove a renovação de sementes, mas está sendo perigosamente alterado por atividades produtivas”.
[5] A iniciativa integra o MapBiomas, projeto que mapeia as mudanças da cobertura do solo nas regiões brasileiras com a finalidade de entender a relação entre uso da terra e emissões de carbono
A falta de controle dos incêndios dificulta a regeneração do que foi desmatado. O problema vai além das fazendas e ameaça áreas protegidas. Devido a esse e outros impactos, as unidades de conservação federais do Cerrado têm hoje um passivo de 70 mil hectares para restauração, inclusive em veredas. E isso não será resolvido plantando somente árvore. “É essencial repor as plantas rasteiras [6], porque o desafio nessas áreas de proteção é ter de volta a diversidade e o equilíbrio ecológico”, afirma Alexandre Sampaio, pesquisador do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
[6] Das 12 mil espécies vegetais do Cerrado, um sexto é de árvores. A maioria é de gramíneas e arbustos, mas, destes, apenas 20 a 30 são plantados para restauração
“O trabalho exige comparar técnicas de restauração, medindo o crescimento das plantas, e achar a melhor alternativa”, ressalta Alba de Oliveira, bióloga do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade do Cerrado e Caatinga, pertencente ao ICMBio, em Brasília. O plantio com sementes persevera mais do que com mudas, nas condições do bioma. A constatação tem motivado cientistas a aprofundar estudos sobre a germinação das espécies e impulsionado soluções contra a deficiência da coleta, armazenamento e beneficiamento do insumo.
A falta de mão de obra é outro limitante. No cinturão da soja em Mato Grosso, maior produtor do País, o Plano Estratégico Florestal [7], lançado em julho, prioriza organizar a cadeia de fornecedores de mudas, levar informação aos agricultores e difundir métodos mais baratos e eficientes. “É forte a pressão das empresas de agronegócio junto aos produtores rurais”, revela Gina Timotheo, coordenadora da The Nature Conservancy (TNC) no estado. Tudo começou há dez anos, quando o então prefeito de Lucas do Rio Verde (MT) voltou da Alemanha bastante preocupado com a imagem negativa da cidade, devido ao desmatamento. No projeto Soja Mais Verde, criou-se um ambiente propício e seguro para o produtor se regularizar e consertar estragos. “A restauração não pode acontecer somente no Dia da Árvore ou do Meio Ambiente.”
[7] Abrange 8 mil propriedades, em nove municípios, com o objetivo de restaurar 10% do passivo de matas na beira de rios até o fim de 2017
Assentado sobre mananciais que nutrem algumas das principais bacias hidrográficas brasileiras, o Cerrado começou a ser intensamente ocupado e castigado na década de 1970, quando se tornou fronteira de expansão agropecuária. Restam hoje 45 milhões de hectares passíveis de desmatamento (área superior à do estado do Rio de Janeiro), dos quais 22 milhões estão em região de potencial agrícola. “Há bastante ativo que pode ser protegido por sistemas de compensação pela falta de reserva legal nas propriedades produtivas”, defende Arnaldo Carneiro, diretor da consultoria Agroicone. Dessa forma, ao protegerem áreas virgens em outro local, as fazendas que derrubaram árvores além do limite até 2009, estariam livres de repô-las, mas o modelo ainda depende de regulamentação pelos estados.
Para Carneiro, na necessidade de restauração, o olhar deveria se voltar ao potencial de regeneração natural, de custo [8] bem inferior em relação às mudas: “Não há como propor uma conta cara para o agronegócio, senão ficará mais barato judicializar o processo e não fazer a adequação ambiental”. A chave, em sua análise, é desenvolver o que chama de “inteligência de paisagem”, com o objetivo de unir esforços e viabilizar investimentos mediante a compensação consorciada de passivos.
[8] Em Mato Grosso do Sul, o custo da regeneração natural é 11 vezes menor que o do plantio de mudas, segundo a Agroicone
As geotecnologias, desenvolvidas a partir de imagens de satélite, têm permitido avanços no planejamento do uso da terra. “A varredura de cada pixel do Cerrado é importante para avaliar a real capacidade de regeneração natural”, reforça Aurélio Padovezi, pesquisador do World Resources Institute, no Brasil. A organização elabora mapeamento dessas áreas no País, como suporte para políticas públicas e decisões de investimentos. Têm sido avaliados parâmetros como proximidade de florestas capazes de dispersar sementes, tipo de atividade econômica, estágio de degradação e relevo.
Dados preliminares [9] indicam que a regeneração natural – ou restauração passiva, como chamam alguns – pode ser solução para 32% da área que precisa recuperar a vegetação nativa no Cerrado. Já as terras mais degradadas, que necessitam de plantio de mudas ou sementes, correspondem a 22%. Restam agora as ações práticas. A ciência, ao que tudo indica, está fazendo a sua parte
[9] a Amazônia, o potencial de regeneração natural dos passivos ambientais é de 75%. Na Mata Atlântica, bioma de ocupação mais antiga, o índice é de 6%