Em um tempo no qual o público enxerga mais valor no enredo do que no roteiro, as ilusões simplistas e fantásticas confortam aqueles que não conseguem (ou não querem) lidar com a realidade complexa e frustrante. Mas fato é que a natureza não se importa com a nossa opinião
Quarta-feira, 21 de agosto de 2019. Na portaria do Palácio na Alvorada, antes de sair em direção ao escritório no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro fez uma coletiva de imprensa improvisada – algo que vem se repetindo já há algum tempo, talvez para compensar a falta de coletivas propriamente ditas. Para os jornalistas, essas ocasiões informais são um prato cheio para as frases de efeito tão características deste presidente e, naquele dia, não seria diferente.
Questionado sobre a intensificação dos incêndios florestais no Brasil, particularmente na Amazônia, Bolsonaro nem pensou na hora de disparar contra um de seus alvos preferidos: as “onguês”, essa categoria monolítica que só existe na cabeça do presidente e de seus apoiadores mais apaixonados. Para ele, se de fato as queimadas estavam aumentando, a responsabilidade maior não estava nos suspeitos de sempre – grileiros limpando terra ilegalmente desmatada – mas sim nas organizações não governamentais que ali atuam.
“O crime existe, e isso aí nós temos que fazer o possível para que esse crime não aumente, mas nós tiramos dinheiro de ONGs. Dos repasses de fora, 40% ia para ONGs. Não tem mais. Acabamos também com o repasse de dinheiro público. De forma que esse pessoal está sentindo a falta do dinheiro”, enrolou o presidente, antes de arrematar com a frase de efeito do dia. “Então, pode estar havendo, sim, pode, não estou afirmando, ação criminosa desses “ongueiros” para chamar a atenção contra a minha pessoa, contra o governo do Brasil. Essa é a guerra que nós enfrentamos”.
Bolsonaro ressaltou que não tinha provas do que estava falando, mas que era o seu “sentimento”. No dia seguinte, ele voltou à carga, novamente insinuando o envolvimento de ONGs nas queimadas na Amazônia, acusando-as de servir a interesses internacionais. Ele reconheceu que fazendeiros poderiam estar envolvidos, mas, de novo, jogou o maior peso sobre as “onguês”.
A guerra particular do presidente com as ONGs é antiga e nada tem a ver com o que elas efetivamente fazem – vide a simplificação que ele faz do universo das organizações da sociedade civil em um termo simples e de efeito, como os “políticos” e as “elites”, para ficar em termos famosos na seara política brasileira nas últimas décadas. Bolsonaro não sabe o que é uma organização não-governamental (ONG) e muito menos o que as ONGs que atuam na Amazônia desenvolvem por lá. Para ele, essa ignorância é até desejável, pois permite a ele inventar as acusações mais absurdas contra essas organizações sem saber o peso real da mentira. Se ele realmente conhecesse o trabalho dessas entidades, o fardo da farsa certamente seria mais pesado.
No entanto, não quero me ater aqui às acusações de Bolsonaro nem fazer uma defesa das ONGs. Creio que as próprias organizações já o fizeram com mais propriedade e justiça do que eu poderia fazer. Quero me ater aqui exatamente a esse artifício que parece ser central para o raciocínio do presidente, de seus seguidores dentro e fora das redes sociais e, a bem da verdade, de muita gente ao longo do espectro político partidário no Brasil: a auto ilusão.
Radicalização
Discordo da demonização da palavra “polarização”, que tornou-se maldita na cabeça de muita gente. Entendo que ela é uma situação comum em um sistema político complexo, composto por múltiplos atores e interesses difusos. Na organização desses atores e interesses no tabuleiro político, a composição de visões polares, por assim dizer, é natural.
Entretanto, reconhecer a polarização não significa ignorar que existe uma vastidão de posições possíveis entre os polos e que elas são tão naturais quanto eles. Aí entra o que eu realmente acho que seja nosso problema aqui: a radicalização.
Quando os polos se tornam tão inversos, incapazes de enxergar elementos básicos mútuos, a diversidade entre eles fica pressionada. A discussão política se torna angustiante a tal ponto que, para muitas pessoas, os polos se tornam opções mais confortáveis, pois eles simplificam a complexidade do problema político em proposições simples e abstratas – o suficiente para abraçar desde o mais fanático, que sempre esteve em uma dada ponta, até aquele menos seguro, que se encontrava em outra posição na gradação político-ideológica.
O resultado disso é o enxugamento das posições políticas vistas como legítimas pelo público. O centro se torna menor, perdendo espaço para os polos, que se tornam mais dominantes na discussão política. O preço desse movimento é a simplificação da realidade por parte dos polos, já que isso facilita o engajamento do público e barateia os custos retóricos e ideológicos tanto para quem conduz a polarização como para quem é conduzido por ela. Nessa linha, a simplificação mais fácil é aquela feita em contraposição à outra coisa – assim, temos uma radicalização do contraste entre os polos.
A radicalização resultante impede o diálogo, pois interdita o reconhecimento da legitimidade do outro. Não há sequer o interesse em se engajar com o outro, em trocar impressão para tentar, por exemplo, mudar a opinião alheia. Se o outro não é legítimo, por que dar-se ao trabalho de dialogar com ele?
Para o público, a radicalização política traz um conforto em termos de posicionamento político. Você apoia A ou B, simples e direto. Aliás, não é apenas isso: a opção que você apoia é a única certa, e o outro lado está grosseiramente equivocado. Ou pior: o outro lado sabe que está equivocado, mas insiste em tal posição apenas para te destruir.
A simplificação promovida pela radicalização torna a realidade uma luta entre o bem e o mal, algo mais fácil de entender do que a complexidade que realmente nos cerca: o “lado certo da História” (que é, geralmente, o meu) versus o “lado errado” (geralmente, o do outro). Isso é fácil de se vender em um cenário no qual a frustração com o estado das coisas se acumula, já que oferece um escape – ainda que em termos vagos – para culpar os outros por aquilo que você entende que está errado.
Escape
Muitas vezes, esse escape se dá a partir de uma percepção “fantástica” da realidade. Por exemplo, voltando ao caso das queimadas na Amazônia: de acordo com o “argumento” do presidente, se de fato existe uma intensificação na ocorrência de incêndios florestais no Brasil, a culpa não é do afrouxamento dos mecanismos de fiscalização, do discurso agressivo contra a conservação ambiental por parte de autoridades em diferentes esferas ou mesmo das condições secas deste período do ano, mas sim de “onguês” ambientalistas que ficaram desesperadas com a perda de dinheiro decorrente da paralisação do Fundo Amazônia e que quiseram revidar destruindo aquilo que elas teoricamente defendem para chamar a atenção e prejudicar Bolsonaro e o Brasil.
Não há nomes, identidades, datas ou maiores informações rastreáveis e comprováveis sobre a “suspeita”: temos apenas a palavra do presidente. Só isso já bastou para que seus apoiadores (reais e artificiais) encampassem a acusação integralmente. Mesmo aliados políticos no Congresso, pessoas que teoricamente deveriam ter alguma noção de responsabilidade para saber o quão surreal era essa acusação, resolveram entrar no jogo e começaram a pressionar por investigações sobre a responsabilidade das ONGs.
Para Bolsonaro e seus seguidores, a “ilusão auto imposta” faz mais sentido do que a realidade e mantém o grupo articulado contra o outro – no caso, as “onguês”, entendidas por eles como uma subcategoria da “esquerda”, que quer impor o autoritarismo a la Cuba ou Venezuela, mesclada com os “globalistas”, que desejam roubar nossas riquezas, apagar nossas fronteiras e roubar nossa identidade nacional. Não questiono aqui o quanto essa ilusão é fruto de raciocínio objetivo por parte de quem a promove – ou seja, se quem a conta para o público sabe que ela é mentirosa. O que é pertinente para mim aqui é sua eficiência junto às pessoas
Mesmo grosseira, a ilusão encontra eco no público. Não me limito aqui ao universo das redes sociais, suscetível ao trabalho dos “bots” empurrando hashtags nos tópicos mais quentes do dia, mas englobo as pessoas de carne e osso com quem cruzamos diariamente nas ruas, trens, ônibus, mercados, parques e shoppings Brasil afora.
Impressionante a forma como algumas pessoas simplesmente aceitaram essa ilusão vendida por Bolsonaro e começaram a encampar as mesmas dúvidas. Neste final de semana, ouvi frases como “será que não é mesmo coisa dos estrangeiros, que querem tomar a Amazônia?”, “as queimadas são coisas normais, acontecem todo o ano, e neste ano nem está tão ruim”, “é tudo culpa da esquerda, que não deixa o Bolsonaro acabar com a corrupção e limpar Brasília”, “que exagero, na época do PT era pior e ninguém reclamava”, entre outras.
Solução mágica
Vivemos em um país tomado por crises. Na política, a montanha-russa que experimentamos desde 2013 nos deixou cansados e desiludidos. Na economia, ainda não nos recuperamos da crise de 2015-2016, a pior em nossa história recente. Na sociedade, as transformações comportamentais que vivemos nos últimos anos se chocaram com a reação de parcelas mais conservadoras, concentradas principalmente em grupos religiosos. Não precisamos nem mesmo olhar pela nossa janela (ou, menos poeticamente, para a tela de nossos smartphones) para ver a realidade dura e difícil que nos sufoca.
Tudo isso é extremamente frustrante, pois não há respostas fáceis e práticas para nenhum desses problemas. A solução passa por transformações complexas, que requerem atenção, esforço e recursos. Em uma situação como essa, é natural que aqueles que vendem fantasias e mágicas obtenham mais atenção pública e encontrem apoio para tomar o poder. Mas as ilusões que eles vendem nos proporcionam um conforto artificial e de curta duração, pois são incapazes de lidar com uma realidade que ganha complexidade na medida em que evitamos olhar para ela.
A crise ambiental na Amazônia é um exemplo notável disso. Desde o começo do ano, os dados do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) apontam para uma alta histórica no ritmo de desmatamento. No mês passado, contrariado com os números, Bolsonaro questionou a seriedade dos cientistas do próprio governo e fritou o diretor do Instituto até demiti-lo. Tudo isso fez algum barulho na imprensa, mas não causou comoção pública. Para muitos, especialmente aqueles que apoiam a agenda econômica do governo a despeito do resto do “pacote Bolsonaro”, isso era desagradável e lamentável, mas não era tão ruim assim. Negação é a palavra de ordem.
Tivemos que passar pela “tarde noturna” da segunda-feira 19 de agosto em São Paulo, quando a frente fria vinda do Sul se encontrou com a pluma de fumaça vinda do Norte e da fronteira com a Bolívia e Paraguai e escureceu o céu paulistano às 3h30 da tarde, para que muitos acordassem para a realidade que a Amazônia vive nos últimos tempos. Mas, ainda assim, alguns optaram por continuar vivendo na ilusão de que aquilo teria sido algo “natural”, que acontece “sempre”.
Se insistirmos com essas ilusões e ignorarmos os sinais da realidade, continuaremos sendo pegos de surpresa. Negar a realidade por conforto político-ideológico pode ser cômodo, mas não elimina os problemas reais, ao contrário – eles somente pioram. Por mais que neguemos a realidade, ela está aqui e jamais conseguiremos fugir dela. No final das contas, a natureza não se importa com a nossa opinião.
*Doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP), professor de política internacional no Centro Universitário Fieo (Unifieo) e colaborador no Instituto ClimaInfo. As opiniões aqui expostas são de responsabilidade do autor e não correspondem necessariamente às posições das instituições com as quais tem envolvimento profissional.