O governo planeja investir R$ 200 bilhões em obras até 2010. É uma rica oportunidade para adotar critérios sustentáveis em vez de considerá-los como entrave
“Estou determinado a fazer com que este País saia desses 25 anos de crescimento medíocre. (…) O meu desafio, dos meus ministros, dos nossos governadores e do povo brasileiro é crescer, crescer e crescer. (…) Estamos dedicando toda a nossa energia para destravar os gargalos institucionais e econômicos que ainda retardam o passo seguinte da nossa história. (…) Temos os instrumentos para continuar investindo pesado em infra-estrutura. Podemos ajustar esses instrumentos, podemos dotá-los de maior agilidade, podemos complementá-los. (…) Faremos o que for preciso e o que for necessário.”
(Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro encontro com os dirigentes da Confederação Nacional da Indústria (CNI) após sua reeleição)
O caminho que o presidente reeleito Luiz Inácio Lula da Silva pretende trilhar está repleto de canteiros de obras. Nos próximos quatro anos, ele planeja construir rodovias, ampliar as vias navegáveis, a malha ferroviária, a capacidade dos portos e a integração física com os demais países da América do Sul para “destravar os gargalos” que, segundo ele, impedem o crescimento da economia. Se for bem-sucedido, talvez entre para a história como uma espécie de Juscelino Kubitschek do século XXI.
A história também dirá se Lula será lembrado como o presidente que conseguiu equilibrar a ânsia de crescimento e as reais necessidades do desenvolvimento, que incluem não só as questões sociais, como as ambientais.
O empenho desenvolvimentista é aplaudido pelas lideranças empresariais, que há anos reclamam do custo Brasil, constituído por problemas como burocracia, alta carga tributária, corrupção, e infra-estrutura precária. O governo decidiu ouvir as críticas, e tenta reduzir esse custo, pelo menos no que tange à infra-estrutura.
Mas, se megaprojetos forem executados sem respeito a critérios socioambientais, a história novamente dirá qual é o custo, por exemplo, da destruição da Amazônia em função de uma rodovia aberta à revelia da lei.
Se as obras forem bem planejadas, sem fraudes e superficialidades nos estudos de impacto ambiental, o Brasil terá a oportunidade de implementar um modelo contemporâneo de desenvolvimento ambientalmente correto e socialmente justo.
Um ensaio desse novo “jeito de caminhar”, como costuma dizer a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, foi testado, aparentemente com sucesso, durante a negociação do Plano de Desenvolvimento Sustentável da BR-163 – que liga Cuiabá, capital de Mato Grosso, a Santarém, no Pará -, elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) com ampla participação da sociedade e de diversas áreas do governo federal. Trata-se do primeiro projeto de pavimentação de uma estrada na Amazônia feito com base em critérios socioambientais.
No entanto, após diversas audiências públicas e adequações no projeto da estrada, aberta nos anos 1970, ela ainda pode causar danos ambientais de longo prazo. Mesmo se o governo federal levar em consideração todos os cuidados discutidos e acordados, não há garantias de que, nos próximos anos, a pavimentação da rodovia não ocasionará mais desmatamento.
Em boas condições, a BR-163 vai reduzir o frete dos exportadores de commodities agrícolas do Centro-Oeste, o que tende a incentivar a abertura de novas áreas de floresta para criar gado e plantar soja. O exemplo da BR-163 mostra que o tema do desenvolvimento é complexo demais para ser resumido em meras projeções de taxas de crescimento.
Oportunidades não devem faltar nos próximos quatro anos para inserir elementos de sustentabilidade nas obras de infra-estrutura. Os investimentos previstos para o período de 2007 a 2010, apenas nos setores de energia elétrica, comunicações, ferrovias, portos e saneamento, podem chegar a quase R$ 200 bilhões, de acordo com levantamento divulgado em 17 de novembro pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Se confirmados, significariam um aumento de 65% em relação ao período de 2002 a 2005. Contudo, o mesmo documento, de autoria de Ernani Torres Filho e Fernando Puga, aponta problemas relacionados ao marco regulatório e à incerteza do ponto de vista ambiental como os mais importantes fatores de atraso das obras.
A posição do BNDES quanto à “incerteza do ponto de vista ambiental” é um sinal explícito de que sobrevive, também no principal banco de desenvolvimento do País, a visão de que a preservação do meio ambiente é mais um entrave do que um ativo e uma vantagem competitiva sobre outros países.
“Ainda falta ao banco essa sensibilidade. Tanto que sua área ambiental não tem poder para vetar projetos, apenas faz sugestões aos demais setores”, constata Luciana Badin, pesquisadora do projeto de acompanhamento social do BNDES desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). “O enfoque ainda é o de analisar os impactos localizados de cada obra, sem olhar os possíveis problemas de uma maneira ampla e sistêmica.”
Do outro lado do balcão, as entidades empresariais reclamam de que são “vítimas” do Sistema Nacional de Meio Ambiente. Semanas antes das eleições, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) entregou ao presidente um documento de 173 páginas com sugestões para o Brasil voltar a crescer e prioridades em dez áreas, entre elas infra-estrutura e meio ambiente.
O relatório, intitulado Crescimento, A Visão da Indústria, destaca que por 19 vezes nos últimos 25 anos a economia brasileira cresceu menos que a mundial. Na última década, o PIB teve taxas médias anuais de expansão de apenas 2,2%. Nos anos 80, o produto brasileiro representava 3,15% do PIB mundial. Nos cinco anos passados, a participação caiu para 2,65%.
O relatório da CNI apresenta a situação da infra-estrutura como crítica. Com exceção do setor do petróleo, “a área vive um período de incertezas, progressiva deterioração e insuficiente expansão”, diz o documento. Entre as medidas sugeridas, a entidade defende a simplificação das regras de licenciamento ambiental, “especialmente no que tange às exigências adicionais impostas pelos órgãos ambientais e à demora na análise dos processos”.
Desculpa do governo
Apesar da grita dos industriais, não há estudos econômicos que evidenciem a questão ambiental como causa do baixo crescimento que se instalou no Brasil. “O meio ambiente não tem nada a ver com isso”, afirma Carlos Eduardo Young, do Grupo de Economia do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Acho que estão querendo usar a questão ambiental para mascarar o fracasso da política econômica.”
Segundo ele, não é a legislação que atrasa a emissão das licenças, e sim a má qualidade dos estudos de impacto ambiental. “Os projetos de infra-estrutura não podem ser feitos como antigamente, quando não havia controle dos mecanismos de licenciamento ambiental e qualquer empreendimento era aprovado sem restrição”, diz.
Por outro lado, Young classifica como um equívoco a visão de que há uma relação direta entre crescimento econômico e degradação dos recursos naturais. Na década de 80, lembra, o Brasil apresentou crescimento baixo com degradação. “É possível crescer 5% ao ano com melhoria da qualidade ambiental”, opina. “Se o crescimento ocorre de um modo equilibrado, há um círculo virtuoso, pois acaba gerando os recursos necessários para a preservação, despoluição dos rios, proteção dos parques, inclusive para a recuperação florestal.”
Agenda de desenvolvimento
O equilíbrio citado por Young, entretanto, não aparece no discurso e nos planos desenvolvimentistas recém-adotados pelo presidente. No primeiro de uma série de encontros ministeriais para definir uma agenda de desenvolvimento para o Brasil, Lula reuniu representantes dos ministérios de Minas e Energia, dos Transportes, da Justiça, da Casa Civil e do Meio Ambiente para discutir 120 obras e as medidas necessárias para viabilizá-las.
O governo anunciou o envio de um projeto de lei complementar ao Congresso Nacional para regulamentar o artigo 23 da Constituição Federal, que determina como competência comum do governo em todas as esferas a proteção das paisagens naturais renováveis e do meio ambiente, o combate à poluição em qualquer de suas formas, além da preservação das florestas, da fauna e da flora. O artigo estabelece que “uma lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os estados, o Distrito Federal e os municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”.
As competências de cada esfera de governo foram estabelecidas em dezembro de 1997 pela Resolução no 237 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A resolução, porém, não tem o mesmo efeito jurídico de uma lei, o que abre uma lacuna. Por conseqüência, muitos processos de licenciamento caem em impasses judiciais quando, por exemplo, o Ministério Público entende que a competência para avaliar determinado empreendimento seria da União, e não de um órgão estadual ou municipal de meio ambiente.
A intenção do governo ao enviar o projeto de lei para apreciação do Congresso Nacional é evitar que os funcionários do Ibama percam tempo analisando obras que poderiam ser licenciadas nas esferas estadual ou municipal e, assim, agilizar o processo de licenciamento.
O Instituto Socioambiental (ISA), uma das ONGs que acompanham de perto as grandes obras de infra-estrutura, considera acertada a decisão de regulamentar por lei o artigo 23. “É importante que tenhamos definições muito claras sobre a questão das competências para que esse não seja um impeditivo do processo de licenciamento”, diz o advogado Raul Silva Telles do Valle, do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA. Ele adverte, entretanto, que a organização é contrária “a qualquer modificação nas normas que vise reduzir o papel do licenciamento ambiental apenas para facilitar a tramitação dos projetos”.
A advertência não é feita por acaso. Uma semana antes do encontro com a diretoria da CNI, Lula discursou ao lado do governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, sobre os “entraves com o meio ambiente” e pôs em alerta as principais entidades ambientalistas, que temem um afrouxamento da legislação com o objetivo de destravar a realização das grandes obras de infra-estrutura necessárias para que o PIB cresça no ritmo estabelecido pelo governo federal.
A ministra Marina Silva, em entrevista nesta edição, garante que Lula não quer mudar, mas adequar a legislação ambiental. “Nos últimos três anos, tivemos avanços no sentido de aperfeiçoá-la, não no rebaixamento ou simplificação, mas para a correta aplicação da lei. Precisamos cada vez mais aperfeiçoar o processo”, explica.
Ela afirma que o seu ministério, por decisão do presidente, tem sido ouvido pelas demais áreas do governo federal que tratam dos projetos de infra-estrutura.
Um dos desafios que o MMA terá nos próximos quatro anos será lidar com os projetos de construção de novas rodovias e de melhoria na condição das estradas existentes. Segundo a Pesquisa Rodoviária 2006, da Confederação Nacional do Transporte (CNT), 75% das rodovias analisadas – o equivalente a 63.294 quilômetros – apresentaram algum tipo de problema. O estudo foi feito em 100% da malha rodoviária federal pavimentada e nos mais importantes trechos sob gestão estadual e sob concessão. Na opinião da CNT, é inimaginável um crescimento anual do PIB de 5% sem uma malha rodoviária com boa trafegabilidade e segurança.
As rodovias são o principal sistema de transporte do País e, por conseqüência, grandes indutoras de ocupação, de mortes no trânsito e de emissão veicular de gases de efeito estufa na atmosfera. Por elas circulam 62% das cargas transportadas.
De acordo com a Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib), há 56 mil quilômetros de rodovias federais pavimentadas e 14,5 mil sem pavimento. Sob jurisdição estadual, são 92 mil quilômetros com asfalto, e outros 116 mil não asfaltados. Para recuperar e ampliar a malha rodoviária, o governo federal vai precisar, além de recursos orçamentários, manter e ampliar o diálogo com as entidades ambientalistas e os movimentos sociais.
“As áreas de influência das rodovias e hidrovias têm gerado um alto custo socioambiental, com especulação imobiliária, grilagem de terras, expulsão de comunidades locais e desmatamento”, diz o executivo do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (FBOMS), Temístocles Marcelos. Segundo ele, as obras no setor de transportes servem sobretudo para garantir o escoamento das commodities agrícolas e não levam em consideração um verdadeiro projeto de integração nacional ou mesmo da América Latina, como faz supor o discurso do governo.
Para Raul Valle, do ISA, “o planejamento viário no País obedece mais a interesses corporativos do que a uma estratégia mais ampla de desenvolvimento territorial”. Para mudar o patamar de discussão, de acordo com Valle, seria necessário implementar a avaliação ambiental estratégica para o setor de transportes de cada região. Isso significa, entre outras coisas, discutir – de forma transparente e inclusiva – qual o modo de transporte mais adequado ao País.
“O Brasil é grande e diverso, e certamente não há apenas um modelo a ser adotado. O melhor modal é aquele definido com base nas realidades locais que ele pretende atender, incluindo aí os interesses de toda a população e não apenas dos setores mais fortes da economia”, diz Valle. Marcelos, do FBOMS, também defende uma solução intermodal. E acredita que deveria haver mais investimentos em ferrovias, por conta da extensão territorial do País, inclusive para o transporte de passageiros, alternativa que ajudaria a desafogar as estradas brasileiras.
Mais ferrovias
Após 30 anos sem crescimento significativo, e com uma extensão de apenas 29 mil quilômetros, a rede ferroviária entrou em um ciclo de expansão: deve receber investimentos de R$ 11 bilhões nos próximos quatro anos, o que representaria um aumento de 7,4% em relação ao período de 2002 a 2005, conforme levantamento recém-divulgado pelo BNDES.
Os destaques são a construção da malha Norte-Sul e da Nova Transnordestina, cujo empreendedor, a Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN), foi autuado em outubro pelo Ibama por iniciar a construção no trecho de 100 quilômetros entre Missão Velha (CE) e Salgueiro (PE) sem atender as condicionantes ambientais. A empresa também foi multada por desmatar vegetação nativa. Segundo o MMA, a situação do empreendimento está sendo regularizada.
Dos R$ 11 bilhões em investimentos, a iniciativa privada deve aplicar cerca de R$ 7,1 bilhões na malha até 2008, enquanto a União deve entrar com R$ 4,2 bilhões para resolver problemas como invasões de faixa de domínio, passagens de nível irregulares, e gargalos físicos e operacionais. Se os recursos forem de fato investidos, a participação das ferrovias na matriz de transporte, estima a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), pode chegar a 30% em 2008, um pouco mais próximo do parâmetro internacional, que é de 42%.
As ferrovias são avaliadas pelos ambientalistas como menos impactantes que as rodovias. No entanto, a prioridade dada ao transporte de cargas – principalmente de produtos para exportação -, mais lucrativo que o de passageiros, revela como o potencial social dos trens ainda é pouco considerado no Brasil. Isso vai na contramão do que ocorre nos países europeus e mesmo na China, que acaba de inaugurar uma linha férrea de quase 5 mil quilômetros até o Tibete.
Do ponto de vista ambiental, o asfalto também perde para as hidrovias, apesar do impacto considerável da implantação de novas vias navegáveis. O Brasil tem 10 mil quilômetros de hidrovias em operação, por onde são transportados 45 milhões de toneladas de cargas ao ano, sobretudo minérios, grãos, fertilizantes e combustíveis. De acordo com relatório recente da Abdib, seria necessário R$ 1,8 bilhão em investimentos para tornar trafegáveis mais 18 mil quilômetros com potencial de navegação, o que elevaria a capacidade de transporte para 120
milhões de toneladas anuais.
Um dos projetos para ampliar as vias navegáveis é a Hidrovia Paraguai-Paraná, que prevê obras de dragagem e sinalização para a implantação de um canal de navegação entre Corumbá (Brasil) e Santa Fé (Argentina), passando pelo Canal Tamengo (Bolívia). As obras têm como objetivo permitir a navegação de comboios de até 20 barcaças, reduzindo o custo do transporte para a exportação de grãos do Centro-Oeste e de minérios.
Os ambientalistas, porém, temem que a hidrovia incentive a expansão da fronteira agrícola sobre o Pantanal Mato-Grossense e o Cerrado, além de causar impactos socioambientais às comunidades indígenas e ribeirinhas.
A Hidrovia Paraguai-Paranáé um dos dez eixos de integração e desenvolvimento da Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). Trata-se de uma agenda de prioridades, negociada entre os governos dos 12 países da América do Sul desde 2000 para garantir a integração física da região, tendo como base a realização de obras de infra-estrutura. Todas decididas sem a participação das comunidades envolvidas. O governo brasileiro realizou consultas abertas à sociedade sobre a IIRSA somente no ano passado.
No entanto, até hoje os ambientalistas não sabem se os questionamentos feitos serão incorporados no processo de integração, que é financiado pelo BNDES. “A maioria dos projetos de infra-estrutura previstos pela IIRSA está planejada para interconectar mercados internacionais, sem considerar a importância dos mercados locais e os impactos socioambientais que essas obras vão causar nas comunidades”, lamenta Elisângela Soldatelli Paim, do Núcleo Amigos da Terra/Brasil e uma das coordenadoras da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais.
A preocupação ambiental com todas as obras de infra-estrutura que o presidente Lula quer destravar, previstas ou não entre as prioridades da IIRSA, é baseada em uma história de desrespeito aos limites dos ecossistemas. O Brasil, pródigo em riquezas naturais, também é o país onde empreendimentos são realizados até mesmo sem estudo de impacto ambiental.
Foi o caso do porto graneleiro da Cargill, no Rio Tapajós, em Santarém (PA), alvo de diversos protestos do Greenpeace, que chegou a fazer, meses atrás, uma denúncia internacional apontando o local como porta de saída de soja produzida em áreas de desmatamento ilegal dentro da Amazônia.
Dada a pressa em crescer, o presidente corre o risco de nem repetir a façanha desenvolvimentista de JK, diante das amarras da política econômica, nem implantar um modelo inovador e sustentável de desenvolvimento. A história dirá.