Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil
Especialistas levam ao Congresso estudos que mostram como tornar mais eficiente o serviço de transporte coletivo no País e, ao mesmo tempo, eliminar os engarrafamentos
Por Magali Cabral
É bem possível que muitas das pessoas que se deslocam para o trabalho de transporte individual e se submetem diariamente a horas de congestionamento o façam por falta de opção. Talvez os roteiros do transporte público não atendam as suas necessidades de locomoção. Ou os coletivos passem muito lotados. O problema também pode estar na relação custo-benefício entre o preço da tarifa e o do litro do combustível. Sejam quais forem os motivos, o fato é que a circulação de carros nas grandes cidades brasileiras já supera o total de deslocamentos por transporte coletivo.
Segundo a Associação Nacional de Transporte Público, do total de quilômetros percorridos por veículos motorizados nas grandes cidades, os carros representam 44% do trajeto; os deslocamentos feitos por ônibus, 42%; e motocicletas, 7%. Outro dado valioso mostra que entre 2016 e 2018, a passagem de ônibus urbano aumentou 20,9% no País, superando a inflação (IPCA) de 13,5% acumulada no período.
O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) está lançando dois estudos nesta semana: o primeiro faz parte do projeto MobCidades – Mobilidade, Orçamento e Direitos e mostra que os recursos investidos em mobilidade nas quatro últimas gestões presidenciais foram abaixo das expectativas; o outro, intitulado Financiamento Extratarifário da Operação dos Serviços de Transporte Público Urbano no Brasil, embasa uma proposta de redução da tarifa de ônibus em todo o País com o objetivo de atrair mais usuários para o transporte público.
Ambos serão apresentados hoje (30 de outubro), na Câmara dos Deputados, em audiência pública para tratar da regulamentação do transporte como direito social. “Enquanto o sistema de transporte público depender exclusivamente da receita vinda da cobrança das passagens, será impossível reduzi-las e, certamente, o [uso do] automóvel individual ficará mais barato, enchendo as ruas de carros e mais carros”, diz o estudo em defesa da criação de um fundo para o financiamento ao transporte público.
Por que o transporte quase ou totalmente gratuito é uma discussão relevante? É disso que tratam os estudos do Inesc, de autoria do pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Carlos Henrique de Carvalho. O trabalho mostra como é possível criar fontes de recursos diferentes para subsidiar os gastos da população usuária de ônibus, já que hoje essas pessoas – em geral, de baixa renda – arcam quase sozinhas com a receita desse sistema no Brasil. Há estados, como São Paulo e Distrito Federal, que já usam algum tipo de subsídio público, mas são exceções.
Os especialistas em mobilidade urbana explicarão aos deputados que o transporte coletivo no Brasil se mantém com R$ 59 bilhões ao ano, dos quais 89,8% (ou R$ 52,9 bi) são arrecadados com as tarifas cobradas dos passageiros, quase sempre pagas pela população de baixa renda. As subvenções públicas representam apenas 10,2% desse montante, enquanto as receitas não tarifárias (com publicidade nos coletivos, por exemplo) somam R$ 375 mil.
O Inesc entende que é uma injustiça deixar praticamente 90% do custo de um serviço primordial à sociedade bancados pelos usuários, e por isso vai propor ao Congresso a criação de um fundo de financiamento ao transporte público, com recursos vindos dos cofres públicos, de empresas privadas e até de pessoas que optam por não utilizar o transporte coletivo para se locomover. “Usando ou não o ônibus, todos se beneficiam do transporte coletivo, seja ao encontrar mais espaços nas vias ou ao garantir que um funcionário dependente deste meio chegue ao trabalho”, explica Cleo Manhas, assessora política do Inesc.
Com os custos desse sistema financiados por um fundo, as empresas de ônibus poderão reduzir o valor das tarifas, mantendo a qualidade e promovendo a expansão das linhas. Para a assessora do Inesc, só assim será cumprida a Emenda Constitucional nº 90, promulgada em 2015 e de autoria da deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), que transformou o transporte público em um direito social no Brasil, colocando-o no rol das garantias do Estado para com seus cidadãos. “Do mesmo modo que existem subsídios para garantir o acesso da população à educação, saúde, alimentação, lazer e outras condições essenciais a uma vida digna, o transporte público também deve ser financeiramente acessível a todos”, defende Manhas.
Na avaliação do Inesc, o atual modelo do sistema de transporte está preso a um ciclo vicioso, na medida em que o encarecimento das tarifas de ônibus empurra a demanda para o veículo individual, onerando ainda mais o custo do transporte público, já que menos pessoas pagarão por ele. Com mais carros nas ruas, os congestionamentos urbanos crescem, o que aumenta os gastos para as empresas de ônibus, que compensam a diferença em novos reajustes, resultando em outra perda de demanda. “Além disso, hoje o sistema não oferece transparência sobre o lucro das empresas, transformando um direito em mercadoria”, acrescenta.
A porta voz do Inesc lembra ainda que a proposta está alinhada à edição da Lei da Mobilidade Urbana (nº 12.587, de 2012), cujo texto deixa clara a possibilidade da implementação de um financiamento extratarifário, pois se entende que a mobilidade nas grandes cidades é uma responsabilidade de todos, incluindo as pessoas que optam pelo automóvel, mas continuam sendo beneficiadas pela existência de meios de locomoção coletivos.
Além de menos vias congestionadas, toda a sociedade é impactada positivamente com um transporte público de qualidade e economicamente acessível. Afinal, o prejuízo econômico gerado pelos ônibus – considerando a poluição, os danos ambientais e os acidentes – é de R$ 16,6 bilhões por ano, contra uma perda 8 vezes maior (R$ 137,8 bilhões) provocada pela circulação de carros e motos. “Não faz sentido só os passageiros sustentarem o transporte coletivo, quando cada ônibus consegue tirar 50 carros da rua, e uma composição de metrô elimina 800 automóveis das vias públicas”, afirma Manhas.
A Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados vem realizando audiências públicas sobre mobilidade urbana há algumas semanas, em um total de três debates com base nos seguintes estudos coordenados pelo Inesc: Gênero, raça, acessibilidade e mobilidade urbana; Energia limpa e transporte coletivo; e Financiamento do transporte público, alternativas à tarifa, que será apresentado hoje na audiência pública.