Amparados por uma nova política, crianças e jovens assumem papel protagonista para educar e transformar a sociedade
Por Amália Safatle
“Em que meus pais estavam pensando quando tinham a chance de mudar e não mudaram?” Essa é a indagação que fecha Uma Verdade Inconveniente, documentário de Al Gore que estreou no Brasil em novembro.
Na sua oratória contundente em que alerta o mundo para os desastres do aquecimento global, o “ex-próximo presidente” dos Estados Unidos, como costuma se intitular, imagina que tal pergunta certamente partirá das chamadas gerações futuras. São elas quem mais sofrerão as conseqüências da irresponsabilidade das gerações atuais e passadas, que não mudaram seus modelos insustentáveis de produção e consumo a tempo de evitar um colapso ambiental global.
É como se Al Gore projetasse o sentimento de culpa dos adultos e o trouxesse a “valor presente”, erguendo uma ponte entre os dias que virão e os de hoje. Da mesma forma, existe uma parcela de crianças e jovens empenhados na construção de uma ligação entre o mundo adulto e o infanto-juvenil, entre o futuro possível e o presente aberto a transformações.
“Geração futura no presente” é a expressão que começa a ser usada para melhor condensar essas variáveis de tempo e possibilidades. Se o futuro, a rigor, não existe – quando acontecer, será presente -, cabe aos filhos aos quais se refere Al Gore fazer essa pergunta não em um tempo irremediável, mas agora, neste momento rico em oportunidades.
É justamente isso que começa a acontecer, ainda que timidamente, no Brasil. A Política Nacional de Educação Ambiental, regulamentada em 2002, está apenas dando os primeiros passos e enfrenta uma série de obstáculos para ser posta em prática. Mas tem um grande mérito, conforme avaliam especialistas no tema ouvidos nesta reportagem: o de envolver crianças e jovens no questionamento das regras ditadas pelo “mundo adulto” que levaram a uma realidade insustentável.
A edição anterior de PÁGINA 22 mostrou como Monteiro Lobato buscou construir no espaço imaginário do Sítio do Picapau Amarelo uma república ideal, a das crianças que seriam capazes de modernizar a sociedade e realizar as transformações que os adultos, acomodados em seu status quo, preferiam não fazer.
Crianças e jovens representam mais que uma metáfora de mudança e transgressão utilizada na literatura. No Brasil de hoje, alguns deles passaram a ser sujeitos da mudança em si, e a subverter paradigmas e estruturas de poder vigentes.
Organizados em grupos e amparados pela Política Nacional de Educação Ambiental, os chamados Coletivos Jovens, que congregam cidadãos entre 16 e 29 anos, ganham corpo ao propor dentro e fora das escolas a construção de uma nova sociedade, com base nos preceitos da Agenda 21 e da Carta das Responsabilidades Humanas – documento proposto pela Aliança para um Mundo Responsável, Plural e Solidário, assinado por milhares de pessoas em 115 países. A Agenda 21 é o resultado de um acordo firmado entre 179 países durante a Eco-92, em que se comprometeram a refletir, global e localmente, sobre a forma pela qual governos, empresas, organizações não governamentais e todos os setores da sociedade poderiam enfrentar os problemas socioambientais.
Os Coletivos somam cerca de 800 integrantes, organizados em aproxidamente 150 municípios no País. Atuam articulados em rede, de forma autônoma, flexível – e dentro de um sistema pouco hierarquizado, ao contrário do que se vê até mesmo em organizações não governamentais, em que há pouca rotatividade nas lideranças.
“Estamos falando de modelos diferentes dos existentes em países como Portugal e Espanha, onde a educação ambiental é tocada por associações e sociedades fechadas e centralizadas”, diz Patrícia Mousinho, secretária-executiva da Rede Brasileira de Educação Ambiental (Rebea).
Segundo Patrícia, está em formação no Brasil uma geração muito envolvida e empenhada na causa ambiental, que vem oxigenar os ambientalistas velhos de guerra. “Queremos aproximar esses Coletivos das redes de educadores, para unir o pessoal que chega com energia a quem está na batalha há muito tempo e coleciona decepções. É uma forma de passar o bastão”, diz.
Entre os Coletivos atuantes no Brasil, Patrícia destaca o grupo de Goiás como especialmente ativo, justamente pelo espírito de cooperação. “O traço marcante desses jovens é a generosidade e a descentralização. São essas características que fizeram que o grupo se expandisse ainda mais que os outros”, diz.
Dessa forma pouco hierarquizada, os Coletivos conseguem apresentar propostas inovadoras, e a primeira é certamente de caráter político – tal como Monteiro Lobato gostaria de ver.
República jovem
Uma expressão bastante ouvida entre os educadores ambientais hoje, emprestada do inglês empowerment, é o “empoderamento” de crianças e jovens. Consta que teria partido de uma das filhas da ministra Marina Silva, aos 13 anos, a idéia de organizar uma conferência infanto-juvenil em paralelo à Conferência Nacional de Meio Ambiente. A idéia não só vingou como deu as bases para um movimento de crescimento exponencial, conforme relata Rangel Mohedano, de 26 anos, membro do Coletivo Jovem de São Paulo e do Conselho Nacional de Juventude (Conjuve).
A versão infanto-juvenil que inicialmente havia sido montada como um apêndice, e sob uma lona de circo, hoje já atrai mais público que a “versão adulta”. E não se restringe a um evento pontual, realizado bianualmente: foi capaz de provocar a mobilização dos Coletivos Jovens, de articular esses grupos com a Rede da Juventude pelo Meio Ambiente e Sustentabilidade (Rejuma) e de interligá-los à Rebea, que por sua vez é formada por ONGs e educadores do País todo e congrega outras 45 redes estaduais, municipais e regionais e lusófonas, entre países que falam a língua portuguesa.
Mais que isso, a conferência infanto-juvenil deflagrou um programa permanente de educação ambiental que começa a se espalhar na rede de ensino – por meio da Com-Vida, ou Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida nas Escolas, no momento funcionando em 276 escolas brasileiras. A Com-Vida é um novo tipo de organização na escola formada por alunos, professores, funcionários, diretores e membros da comunidade, com o objetivo principal de construir a Agenda 21 na escola.
“A Conferência deu peso político ao movimento dos jovens”, afirma Mohedano. O primeiro documento resultante do encontro que reuniu 16 mil escolas em 2003 e mobilizou 6 milhões de pessoas foi a Carta dos Jovens Cuidando do Brasil. Essa carta apresentou propostas, das quais cinco já se transformaram em políticas públicas nacionais de educação ambiental. Uma dessas prevê a atuação dos Coletivos Jovens nas escolas, com base no conceito conhecido como “jovem educa jovem”. E que acaba educando também os professores.
“É um conceito muito moderno, porque é orgânico e sistêmico”, avalia Miriam Duailibi, coordenadora-geral do Instituto Ecoar, organização não governamental que abriga o escritório do Coletivo Jovem de São Paulo. O conceito foi elaborado pelo órgão gestor da Política Nacional de Educação Ambiental, coordenado por dois ministérios em parceria, o do Meio Ambiente, na figura de Marcos Sorrentino, e o da Educação, representado por Rachel Trajber.
A proposta é inovadora porque leva à subversão da estrutura das escolas brasileiras, fortemente caracterizadas pelo conservadorismo, pela fragmentação do conhecimento, pela valorização da hierarquia e pela transmissão de informações “de cima para baixo”, sempre do adulto para a criança, do professor para o aluno.
A estrutura vigente na maioria das escolas brasileiras não só reflete como ajuda a cristalizar o arcabouço de poder da própria sociedade nacional, em que o conhecimento e as regras invariavelmente partem do mais poderoso para o menos poderoso, do mais rico para o mais pobre, reforçando o quadro de disparidades sociais e econômicas.
Quebrar essas estruturas enraizadas, portanto, é a primeira lição da educação ambiental – e daí advêm as maiores dificuldades na implementação da política nacional conduzida pelo órgão gestor.
Segundo Rachel Trajber, essa implementação exige um corpo-a-corpo muito grande, porque as crianças e os jovens são a todo momento incentivados ao consumismo, ao individualismo e à competição, seja pela mídia, seja pela educação dada na própria escola, pela educação dada em casa. “São esses os valores da sociedade atual”, diz.
Ainda que não de forma sistêmica, alguma reflexão sobre esse modelo insustentável começa com idéias das crianças. Na Escola Cristo Rei, por exemplo, na Zona Sul de São Paulo, elas espalharam nos corredores cartazes com os dizeres “Dia 25 de Outubro: Dia de Não Comprar Nada!” E desenhos que mostravam a natureza sendo destruída para se transformar em objetos de consumo. A manifestação é válida, mas o que as crianças pensam sobre os demais dias do ano?
Ditadura de mercado
Segundo Carlos Frederico Loureiro, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), essa estrutura educacional herdada dos anos de chumbo da ditadura militar ganhou nos anos 90 características do neoliberalismo, fazendo com que as escolas passassem a se orientar fortemente pela idéia de mercado e para a formação de mão-de-obra apta a competir no mundo globalizado.
“Essa orientação deixa de lado a formação mais humanista e privilegia o ensino cada vez mais especializado dos jovens”, diz Loureiro. Tal especialização não seria prejudicial se permitisse também a transversalidade nas disciplinas, fenômeno necessário para lidar com a problemática socioambiental.
Mas isso ainda acontece muito pouco, e a educação ambiental, embora cada vez mais praticada nas escolas, ainda está restrita a eventos pontuais, segundo avaliação de especialistas como Loureiro, Arthur Soffiati, doutor em História Ambiental pela UFRJ e professor da Universidade Federal Fluminense, e Luiz Marcelo de Carvalho, professor do Departamento de Educação da Unesp de Rio Claro.
Loureiro coordenou uma pesquisa nacional sobre educação ambiental nas escolas brasileiras, cujos resultados deverão ser divulgados em dezembro, mas sobre os quais já é capaz de fazer um diagnóstico. Iniciada em março, a pesquisa ouviu 420 escolas das redes pública e particular no Brasil. A maioria respondeu que a educação ambiental é muito importante, e 95% autodeclararam praticá-la.
Um segundo passo da pesquisa será mostrar como a educação ambiental é de fato praticada. A percepção dos especialistas é que a maioria das escolas – as que não têm programas como a Com-Vida – considera praticar educação ambiental ao simplesmente plantar mudas no Dia da Árvore, comemorar o Dia do Meio Ambiente, convidar palestrantes para falar sobre o tema ou visitar parques ecológicos – atividades válidas, mas separadas do cotidiano e desconectadas da realidade social brasileira.
Para Carvalho, da Unesp, é inegável o aumento da preocupação ambiental nas escolas brasileiras, mas ela tem sido abordada na maioria das vezes sob a percepção do risco – o de que a vida do planeta está ameaçada – e sob uma visão ainda utilitarista da natureza, que dispõe seus “recursos” para ser apropriados pelo homem.
“Na década de 50, quando eu estava na escola primária, já se falava da importância da árvore, mas concebida como uma dádiva de Deus oferecida para a sociedade usufruir como bem entendesse”, diz Carvalho. “Lembro de uma poesia que trazia uma visão muito forte, dizendo que a árvore nos acompanhava a vida toda, porque de sua madeira se fazia o berço e o caixão!”
Break the wall
A educação ambiental que está sendo proposta pela lei que instituiu a política nacional pretende mudar essa visão utilitarista e técnica da natureza e incorporá-la à questão social e política. Tal mudança, explica Mohedano, do Conjuve, implica também a “derrubada” dos muros da própria escola, para que as crianças e os jovens não só implantem uma Agenda 21 internamente, como também extrapolem o programa para a comunidade no entorno, com olhos voltados para a cidade e para o País.
Trata-se de um modelo inspirado nos chamados círculos de aprendizagem propostos por Paulo Freire, que concebem a educação como um processo dentro e fora das escolas.
Assim, os alunos aprendem a não apenas lidar com o lixo gerado “na sala da terceira série C”, mas a enfrentar a problemática do lixo do bairro, ou da cidade. Da mesma forma, um programa de horta orgânica não ficaria restrito ao canteiro da escola, mas poderia transformar-se numa política de agricultura orgânica para a zona rural do município, sugerida pelos próprios alunos em conjunto com os Coletivos Jovens, os professores e a coordenadora pedagógica da escola.
Nesse modelo é possível também buscar a transversalidade entre as diversas áreas do conhecimento. Valer-se, por exemplo, da matemática para calcular a quantidade de água necessária para a produção dos alimentos. E, assim, buscar soluções para os problemas socioambientais da atualidade por meio da implementação de políticas públicas.
Segundo Mohedano, isso confere aos alunos uma condição de protagonismo muito grande, à medida que eles se vêem na posição de cidadãos – independente da idade – capazes de construir uma sociedade sustentável a partir das próprias atitudes e do seu empoderamento.
Em entrevista nesta edição, Edna Roland, que dirige a Coordenadoria da Mulher e da Igualdade Racial em Guarulhos (SP), afirma que um determinado setor concentra o poder porque conseguiu convencer os demais segmentos da sociedade de que não são capazes, não estão habilitados. É assim que as classes dominantes se mantêm no poder.
Linha de pensamento similar à de Edna guia a atuação dos Coletivos Jovens e das Com-Vida, mas os desafios não se limitam à questão da estrutura conservadora de poder da sociedade replicada nas escolas.
Há ainda dois problemas fundamentais: a falta de preparo dos professores para lidar com essa novíssima abordagem e a escassez de recursos orçamentários para implementar programas vistos ainda como “complementares”.
“O que estamos precisando mesmo é formar educadores”, afirma Soffiati. O especialista defende que a educação ambiental seja incorporada de vez nas escolas que formam os mestres. Sem a obrigatoriedade, o tema acaba virando um adorno para o qual os professores não encontram tempo para dedicar atenção, sufocados por uma pesada carga horária. E também não contam com material didático que aborde o tema corretamente.
Segundo ele, o fato de ser um assunto transversal, como definido pela política nacional, acaba fazendo com que fique “sem dono”. No máximo, é assimilado pelos professores de ciências e geografia dentro uma visão tecnicista e biológica, e não política e filosófica.
Soffiati foi um dos poucos educadores ambientais que defenderam a criação, de forma provisória, de uma disciplina específica para o tema, em suas palavras “separada, mas não isolada”. “A transversalidade não vingou. É de todo mundo e não é de ninguém”, afirma.
Jacqueline Guerreiro, facilitadora da Rebea e há 15 anos professora da rede pública de ensino no Rio de Janeiro, afirma que a formação do professor ainda é totalmente calcada na visão disciplinar, quando a educação ambiental exige a interdisciplinaridade.
Para Jacqueline, o professor somente estará apto a exercer a educação ambiental quando for “um cidadão lá fora”. “A educação ambiental precisa de atores sociais que trafeguem em ONGs, em comitês de bacias, em orçamentos participativos”, diz.
Sem poder de fogo
A questão orçamentária é outro desafio para a implementação da política nacional. Marcos Sorrentino, do MMA, conta que a disputa por recursos começa dentro do próprio ministério. Segundo ele, todos concordam com a importância da educação ambiental, mas os recursos vão sempre para a questão mais emergencial. “Se tem uma floresta pegando fogo, a educação ambiental acaba tendo de esperar”, diz.
Além disso, diz Sorrentino, o Ministério do Planejamento não autoriza recursos quando não há números claros dos benefícios que a política traz. “Sem números precisos, eles têm dificuldade de compreensão da importância do tema. A gente vem de outra tribo e esse diálogo é um aprendizado”, diz.
Diante dessa falta de recursos materiais e humanos, o órgão gestor vale-se tanto do voluntariado dos Coletivos Jovens como dos Coletivos Educadores, que visam suprir a deficiência na formação de especialistas em edução ambiental que atuem tanto dentro como fora da rede de ensino.
O órgão gestor pretende criar 300 desses coletivos em todo o País, de forma que cada um consiga atuar em regiões ocupadas por 600 mil habitantes, o que abarcaria o total da população brasileira. Segundo Sorrentino, hoje há 150 Coletivos Educadores delineados e 40 em diferentes graus de implantação. O governo busca nesses projetos o apoio da iniciativa privada. Um dos coletivos, por exemplo, atuante em 34 municípios em torno do Parque Nacional do Iguaçu, é apoiado pela Itaipu Binacional.
Jovens ou educadores, os coletivos colocam-se como formas inovadoras de organização social e política. Um dos méritos da globalização foi mostrar que a humanidade é um só coletivo, e apenas a cooperação pode encontrar respostas para os problemas que a cada dia se mostram mais visíveis para as gerações presentes, futuras, e futuras no presente.
Popularização da questão ambiental?
O jovem ambientalista não é mais o mesmo. Uma pesquisa realizada entre dezembro de 2004 e janeiro de 2005, que ouviu 241 pessoas em todo o Brasil – das quais 161 pertencentes ao Coletivo Jovem e 80 não pertencentes -, identificou que ele não advém da classe média ou das elites, mas emerge das classes mais populares e com níveis de escolaridade mais baixos, informam Fábio Delboni e Soraia Mello, técnicos da Coordenação-Geral de Educação Ambiental do MEC, no livro Juventude, Cidadania e Meio Ambiente – Subsídios para a elaboração de políticas públicas.
Os dados representam uma novidade em face das informações apresentadaspelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), que coordena a série histórica “O que o brasileiro pensa do meio ambiente e do consumo sustentável”. Na pesquisa do Iser, o ambientalista ou simpatizante pertence a classes sociais mais favorecidas e de alta escolaridade.
Segundo os técnicos, essa adesão de jovens das classes mais baixas viria do fato de estarem potencialmente mais expostos a problemas socioambientais como enchentes, desabamentos e falta de saneamento. E acrescentam que esse fenômeno poderia contribuir para a popularização da questão ambiental no Brasil, mas que seriam necessários novos estudos e um tempo maior de acompanhamento e análise para reforçar ou refutar essa hipótese.