A vantagem do consentimento sobre o consenso é permitir que as conversas avancem mesmo quando não existe concordância absoluta. O consentimento permite que uma ideia siga em determinada direção e os atores passem a conviver em torno dela, ainda que tenham de amadurecê-la ao longo do tempo. Nada mais oportuno em tempos de polarização, em um ambiente marcado por volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade
Cada vez mais, deparamos com problemas complexos e situações polarizadas. Esse tipo de conjuntura, marcada por volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade, é chamado de ambiente VUCA. O momento atual de crises, conflitos e aflições trazidas pela pandemia da Covid-19 é um exemplo muito claro desse tipo de ambiente.
Para organizações e projetos de grande impacto, que normalmente envolvem alta complexidade, um cenário como esse demanda que os processos de tomada de decisão envolvam diversos atores, ou seja, sejam feitos por meio de uma governança multistakeholder. Nesse tipo de governança, as diferentes partes interessadas, muitas vezes com opiniões e pontos de vista diversos ou antagônicos, precisam chegar a decisões conjuntas sobre um tema comum. Alcançar uma decisão coletiva, dentro de um ambiente VUCA, pode ser algo extremamente desafiador – mas também gratificante.
Há diferentes formas possíveis de se chegar a decisões coletivas. Alguns optam pela posição da maioria, outros pelo consenso. Uma outra forma é o consentimento. Acredito que esta é uma maneira de decidir que funciona bem em uma governança multistakeholder.
No dicionário, o verbo consentir significa “permitir, dar licença para”. É exatamente isso que as deliberações por consentimento fazem: permitem que se evolua com uma decisão mesmo que não seja 100% do agrado de cada uma das partes. De forma pragmática, significa concordar parcialmente com uma decisão e, ao mesmo tempo, entender que é a melhor possível para o grupo. É uma resolução que mostra respeito às diferentes opiniões e uma aceitação de que não há apenas uma opinião sobre um mesmo assunto.
Diz-se, na sociocracia, que o consentimento é uma proposta suficientemente boa para o momento e razoavelmente segura para ser buscada. Em outras palavras, é o acordo possível naquele instante e com aquele grupo de pessoas acerca de um assunto que está em discussão. A vantagem do consentimento sobre o consenso é que as conversas não ficam paralisadas quando não existe concordância absoluta. Ele permite que a ideia siga em uma direção e os atores passem a conviver em torno dela, mesmo que tenham de amadurecê-la ao longo do tempo.
As decisões por consentimento possibilitam que o debate avance e não fique dividido entre opções extremas, como “concordo com tudo” ou “discordo de tudo”. Para aumentar a compreensão disso, é interessante lembrarmos que, em algumas decisões por consenso, por vezes se desiste de se chegar a um acordo, pois somos vencidos pelo cansaço e dizemos “basta, nunca teremos consenso”. Nesses casos, o consenso gera um desestímulo e coloca um determinado problema dentro de uma lógica dicotômica e, muitas vezes, irreal, por se limitar a certo ou errado, justo ou injusto, quando, na realidade, sabemos que nem tudo é tão preto no branco assim.
Claro que, em grupos que pensam de forma diametralmente oposta, parece não haver qualquer zona de intersecção ou ponto comum que os una. É possível que isso seja verdade, mas, pela minha experiência em governança multistakeholder, sempre há algum elemento que permite consentimentos. A desvantagem é quando isso não se dá por um real ato de consentir, mas sim por falta de interesse ou desistência da discussão.
O grande desafio para alcançar a decisão por consentimento está em conseguir enxergar o que existe para além das divergências, reconhecendo e aceitando-as, o que pode ser uma tarefa bastante difícil. Não significa concordar ou apoiar uma visão que seja contrária à sua, mas permitir que um diálogo ocorra, nem que seja para se chegar à conclusão de que ele não valeu a pena.
Um caminho para ajudar nessa aceitação das diferenças e abertura para a escuta é o diálogo genuíno, pois é nele que as trocas de ideias e a comunicação efetiva acontecem. Caso contrário, o que se tem é uma mera defesa de pontos de vista, sem que haja uma escuta empática. É a partir dessa comunicação que começam a surgir as verdadeiras relações de confiança, elemento indispensável para se avançar em projetos multistakeholder.
As relações de confiança, com escuta empática e diálogos genuínos, é que fazem as decisões coletivas serem mais coesas e duradouras. Em tempos de ambiente VUCA, criar espaços de discussão que respeitem os diferentes pontos de vista é muito importante. Se, de um lado, temos urgência de respostas, por outro, temos situações inéditas que demandam reflexão e pausa. Equilibrar urgência e tempos de respiro é chave para não errar.
Pode-se até demorar mais tempo para se chegar a uma decisão, mas pode ser o tempo necessário para as adaptações que a nova realidade nos pede. Não adianta acreditar que já sabemos nadar em um mar revolto, quando ainda estamos passando pelas primeiras ondas. O que podemos fazer é continuar testando possibilidades, checar seus efeitos e observar os sinais e aprendizados que essa realidade nos traz.
Como criar relações de confiança em um ambiente multistakeholder
O ambiente multistakeholder existe em projetos de alta complexidade que possuem um grande desafio não passível de solução com uma visão única. Ou seja, são situações que demandam um esforço coletivo grande para se chegar a um resultado positivo ou transformador. Há dois grandes exemplos no Brasil em que esse tipo de esforço ocorre: o processo de reparação do Rio Doce após a tragédia de Mariana e a grande discussão no Brasil sobre produzir e conservar– pauta bastante debatida pela Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. Ambos exemplos são casos de alta complexidade, inéditos e permeados por características de ambiente VUCA: volátil, incerto, complexo e ambíguo.
O primeiro grande desafio desses ambientes onde há muitas vozes distintas é conseguir identificá-las, para não se cometer erros de largada. Dependendo do caso, as vozes não são tão evidentes e é preciso fazer um trabalho investigativo de mapeamento de stakeholders para revelá-las. Depois de identificar esses stakeholders, vêm as etapas seguintes, que é ouvi-los e lhes dar voz.
Um exemplo que ilustra o descrito acima é o debate em torno do desenvolvimento da Amazônia. Há diferentes olhares sobre o que é um possível modelo de desenvolvimento para a região, mas essa resposta deve passar por uma ampla discussão com as mais diversas partes interessadas, e isso inclui um espectro muito amplo, como os povos indígenas, as comunidades tradicionais, os amazônidas que vivem nas zonas rurais e urbanas, as ONGs, as empresas, as universidades, os órgãos públicos, os tomadores de decisão e assim por diante.
Uma vez que essas três etapas anteriores ocorram – identificar, ouvir e dar voz –, é preciso criar um ambiente seguro o suficiente para que haja uma troca genuína e legítima de visões e informações sobre a questão que se pretende resolver. Isso significa permitir que cada parte mostre a sua perspectiva sobre o problema. Para isso, é preciso reconhecer que não há uma única resposta, mas sim respostas parciais que são, muitas vezes, peças fundamentais de um quebra-cabeça maior.
Esse ambiente seguro é estabelecido quando se consegue criar relações de confiança entre as partes, e isso consiste em, literalmente, confiar naquilo que o outro está dizendo, naquela visão que ele defende. Isso não significa concordar com ela, mas sim, respeitá-la como uma visão. É aceitar que existem várias verdades e que nenhuma delas é absoluta.
Tudo isso é muito mais fácil de ser lido do que vivenciado. Como dito anteriormente, ambientes multistakeholder costumam ser voláteis, incertos, complexos e ambíguos e, sendo assim, há muitas idas e vindas de fluxos, processos e decisões. Por vezes, esses processos podem provocar um sentimento de frustração em relação à velocidade dos resultados alcançados coletivamente. Leva-se bastante tempo e requer maturidade do grupo, porque nesse processo também se aprende a lidar com o desconforto e com a discordância. Isso não é fácil e, às vezes, bastante doloroso. É intrinsecamente humano.
Há elementos que podem aumentar ou diminuir a confiança entre os atores envolvidos na tomada de decisão. Listo, a seguir, algumas ações importantes que podem ajudar:
- Acreditar que existe um propósito comum
Acreditar na existência de um propósito comum é fundamental, mesmo que os meios para se chegar a ele sejam distintos. As partes interessadas precisam perceber valor no debate das ideias e nos diferentes pontos de vista. Mesmo quando há discordância, a forma como o outro enxerga a questão permite que eu expanda o meu entendimento e pode me ajudar a ter a real fotografia do todo e, com isso, acelerar o processo de solução do problema. Quando em grupo, é importante o papel de um facilitador para ajudar a reconhecer e apresentar os pontos convergentes. Essa prática ajuda a dar clareza ao processo e faz com que algumas “fichas caiam”.
- Transparência e simetria de informações
As partes envolvidas devem saber quais são as regras do jogo, isto é, como os processos, fluxos e tomadas de decisão ocorrem. Além disso, o espaço onde as relações acontecem deve ser seguro a ponto de ser possível explicitar uma discordância e deixar os limites posicionados e respeitados. Não se trata de cada parte revelar a sua estratégia – sabemos que às vezes isso não ocorre. Mas é importante ter ao menos uma indicação de qual é o posicionamento do outro sobre o tema, mesmo ciente de que em alguns casos a discrição é necessária ou até mesmo uma regra.
- Aceitar a limitação da racionalidade humana
As nossas decisões não são 100% racionais. Em 1978, o Prêmio Nobel de Economia, Herbert Simon, cunhou o conceito de racionalidade limitada. Ele dizia que a racionalidade humana estava limitada a três dimensões, que determinavam as nossas decisões: a informação disponível, a limitação cognitiva da mente individual e o tempo disponível para a tomada de decisão.
Compreender esse conceito, ou ter ciência de sua existência, é fundamental para entender que não se pode controlar todas as variáveis num processo de tomada de decisão e que não se pode explicar de forma cartesiana o porquê de os tomadores de decisão optarem por determinadas escolhas. Sendo assim, compreender possíveis aspectos psicológicos por trás de certos posicionamentos pode ajudar na identificação da necessidade de se adotar uma postura.
Conseguir decifrar o “não dito” e observar comportamentos e gestos também são maneiras de entender que aquele tomador de decisão não está agindo apenas com a razão, mas, sim, dentro de sua integralidade – e esta inclui razão, emoções, histórico de vida, posições ideológicas, dentre outros fatores. Compreender toda essa complexidade humana ajuda na construção das relações de confiança.
- Respeito às ideologias
Mais do que nunca, para que as relações de confiança se estabeleçam, é importante o respeito às ideologias das partes. Ainda que as questões ideológicas possam atrapalhar ou desvirtuar o encaminhamento de uma discussão, não podem ser ignoradas. Cada ator tem a sua ideologia, e ela é legítima. Reconhecer que existem, buscar empatia e, acima de tudo, respeitá-las, são atitudes imprescindíveis. Quando as ideologias são reconhecidas, podem até ser minimizadas e retiradas do centro do debate, permitindo focar naquilo que é mais relevante.
- Disposição e disponibilidade dos atores
No fim das contas, o sucesso de um projeto multistakeholder também depende da disposição e disponibilidade dos seus atores em cooperarem e, para isso, é preciso que eles vejam valor nessa colaboração, o que significa acreditar e confiar que gera resultados positivos. Apresentar essa disposição e disponibilidade também fortalece as relações de confiança.
*Luana Maia é mestre em sustentabilidade, apaixonada por psicossíntese, consultora em governança multistakeholder e ex-coordenadora executiva da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura
[Foto: Clay Banks/ Unsplash]