[Foto: Preparação do tucupi]
A Climate Ventures, em parceria de conteúdo com a Página22, mensalmente conta ao leitor histórias sobre negócios inovadores relacionados ao desafio climático. A Climate Ventures é uma plataforma de Bons Negócios Pelo Clima que existe para acelerar a economia regenerativa e de baixo carbono e reverter a mudança climática, desenvolvendo startups e conectando-as ao mercado e investidores. A seguir, a história da Manioca Brasil, que atua em Agropecuária:
Tucupi, geleia de taperebá, farinha d’água de Bragança e feijão-manteiguinha de Santarém são alguns alimentos da culinária amazônica que já podem entrar na lista de compras de consumidores residentes a milhares de quilômetros de distância do mercado Ver-o-Peso. A façanha é da belenense Joanna Martins, fundadora da Manioca Brasil, uma empresa que, como ela define, valoriza os insumos (livres de aditivos químicos) e o conhecimento dos povos da floresta por meio de um comércio justo com os produtores locais e sem desmatamento. Seus produtos estão presentes em lojas revendedoras por todo o País e entre os consumidores mais ilustres figuram os premiados chefs de cozinha Alex Atala (D.O.M) e Helena Rizzo (Maní). “Tê-los como clientes nos trouxe visibilidade e reconhecimento, afinal são curadores e formadores de opinião no ramo da alimentação”, afirma a empresária.
Na entrevista a seguir, uma degustação da história da Manioca, que começou em 1972, no restaurante Lá em Casa, em Belém, e já começava a ganhar o mundo quando veio a pandemia do coronavírus: “Tivemos uma redução de quase 90% nos negócios, mas não nos deixamos esmorecer. Estamos aproveitando a paralisação das atividades para fazer adaptações no nosso espaço produtivo e na implantação de uma nova linha de produção a ser lançada em breve”.
Joanna Martins é fundadora e sócia-proprietária na empresa Manioca e diretora executiva do Instituto Paulo Martins, que atua na promoção e desenvolvimento da gastronomia paraense. É publicitária, administradora e empresas, com MBA em Gestão em Vendas, pela Fundação Getulio Vargas, e pesquisadora em Gastronomia Amazônica.
Como surgiu a ideia de criar a Manioca?
Essa história começa no Lá em Casa, um restaurante de cozinha regional criado pela minha família em 1972, em Belém, que passou a ser um grande divulgador da culinária e dos ingredientes amazônicos no mercado local. Ao longo do tempo, meu pai [chef Paulo Martins], arquiteto de formação, percebeu que poderia usar a sua criatividade também na cozinha e começou a criar pratos inovadores, mesclando ingredientes amazônicos com técnicas internacionais. Logo passou a ser convidado para realizar eventos e aulas Brasil afora. Depois de muito viajar, em 2000, ele criou o Festival Ver-o-Peso da Cozinha Paraense, com o objetivo de trazer chefs, jornalistas e gourmets para conhecer in loco a cozinha e a cultura alimentar paraense. Ficou conhecido como Embaixador da Cozinha Paraense por ter sido o responsável por apresentar esses sabores para uma grande parte do meio gastronômico brasileiro.
A partir dessa divulgação, surgiu uma demanda natural por parte de chefs de cozinha por ingredientes alimentares da Amazônia, que meu pai passou a fornecer quase que como um favor. Já em 2010, depois de me formar em publicidade e atuar na área por aproximadamente 10 anos, comecei a atuar no restaurante. Com o passar dos anos, vi essa demanda aumentar. Ao analisar a conjuntura gastronômica brasileira, com o surgimento de faculdades de gastronomia, a alta no preço de produtos importados e o aumento do número de brasileiros tornando a culinária um hobby, percebi uma oportunidade de lançar uma marca de produtos que oferecesse esses sabores também para o consumidor final. Foi aí que surgiu, em 2014, a Manioca.
A Manioca preza pela valorização e preservação das riquezas da Amazônia para manter a floresta em pé. Com esse foco, como são escolhidos os fornecedores?
De início, os fornecedores foram aqueles que herdamos do restaurante, eram pequenos produtores ou extrativistas de povos e comunidades tradicionais que forneciam produtos de muita qualidade. Hoje seguimos esse mesmo princípio. O que agregamos ao longo do tempo foi o apoio que damos a eles. A partir da criação de nosso PDF (Programa de Desenvolvimento de Fornecedores), estabelecemos metas de melhorias e crescimento desenhadas junto com eles, e atuamos diretamente em capacitação e assistência técnica de forma sistematizada e com avaliação de resultados.
Diriam que essa relação com os produtores locais é o maior diferencial da Manioca? Por quê?
Acho que esse é um grande diferencial, mas depende de quem o vê. O consumidor final médio brasileiro, infelizmente, ainda não vê a sustentabilidade como um diferencial de destaque. Para ele, talvez o fato de o produto ser gostoso ou ser natural tenha mais valor. Mas para aqueles que se preocupam com a sustentabilidade e com o planeta, com certeza esse é o nosso maior diferencial. Costumo dizer que me incomodava ouvir notícias que criticavam o desenvolvimento da Amazônia em detrimento do desmatamento. Sempre questionava: o mundo se destruiu e agora não quer deixar a gente se desenvolver porque vai destruir a floresta? Isso não é justo… Mas, ao criar a Manioca, entendi que é possível desenvolver a floresta sem destruí-la, bastando que o modelo de desenvolvimento seja alterado. Sair da ideia da grande indústria de automóvel para um tipo de negócio como a Manioca, que valoriza os insumos da floresta e o conhecimento do seu povo, mantendo a floresta em pé.
Quais dificuldades encontram para criar produtos sem aditivos químicos e conservantes que preservam o sabor dos ingredientes?
Acredito que nossas maiores dificuldades dizem respeito à falta de referências. Primeiro, em relação a questões tecnológicas de como conservar alimentos de forma natural uma vez que a maior parte da indústria de alimentos no mundo está pautada na adição de aditivos químicos no alimento. Segundo, em relação à falta de estudos sobre os insumos florestais em todos os âmbitos, agronômico, físico-químico, biotecnológico e gastronômico. Além do agravante de termos um modelo educacional que não ajuda na relação das universidades com a empresas, o que torna tudo ainda mais difícil e caro.
Foi difícil inovar em um negócio tão tradicional e familiar?
Não muito, especialmente porque a Manioca é um negócio novo e criado por mim. Enquanto tentei inovar no próprio restaurante foi muito difícil, mas quando criei meu próprio negócio, com o acordo de a família ser apenas a “financiadora”, ficou bem mais fácil (risos). E o fato de a Manioca ter um bom reconhecimento no mercado tem ajudado bastante a dar continuidade ao negócio.
A Manioca preza pela relação de respeito e valorização entre produtores, comunidade e cozinheiros. Na sua percepção, trazer destaque para os ingredientes locais trouxe orgulho e sentimento de pertencimento aos que participam dessa cadeia?
Sem dúvida nenhuma. Percebemos isso em todas as esferas. Os cozinheiros passaram a ter o acesso facilitado aos ingredientes que tanto gostariam de usar e muitas vezes não conseguiam adquirir. O consumidor final de todo o país quando conhece nossos produtos fica satisfeito em ver um produto de qualidade com uma marca da Amazônia bem trabalhada, com sabores antes desconhecidos por eles. O cidadão amazônida fica muito feliz em ver uma marca local se destacando no cenário nacional. E, finalmente, os produtores passaram a ver os produtos de sua cultura e do seu trabalho sendo valorizados. Sem dúvida alguma, negócios que valorizam a cultura e o produto brasileiro dão muito orgulho aos brasileiros e podem trazer ainda muito mais desenvolvimento para o País.
Grandes chefs de cozinha, como Alex Atala e Helena Rizzo, se encantaram com os sabores dos produtos da Manioca. Como é ver os seus produtos ocupando esse lugar nas mãos de chefs premiados? Isso trouxe mais visibilidade para o empreendimento?
Dá um super orgulho, né?! (risos) Mas, para além do orgulho, é um sinal de que estamos no caminho certo e fazendo produtos gostosos e de qualidade. Chefs desse nível têm uma responsabilidade grande sobre a qualidade do produto que entregam a seus clientes e por isso são muito exigentes, o que os tornam excelentes “parceiros” no negócio, pois nos forçam a manter o alto padrão de qualidade. Além disso, tê-los como clientes nos traz visibilidade e reconhecimento, afinal são curadores e formadores de opinião no ramo da alimentação. Inclusive, uma boa parte de nossos clientes, no começo, vieram por intermédio deles.
Os produtos da Manioca têm capilaridade no Pará? Há alguma ação específica para que os produtores e comunidades locais experimentem os produtos?
Sim, mas apenas em Belém e isso, inclusive, foi uma surpresa pra nós. Como os produtos tradicionais da floresta são muito comuns e conhecidos como produto de feira, optamos por colocar no mercado local apenas os produtos criativos apesar de acreditarmos que o consumidor local teria um certo preconceito com os produtos por serem muito inovadores. Mas, na verdade, foram muito bem aceitos e têm um giro bem interessante no mercado local, representando cerca de 15% do nosso faturamento. Com relação aos produtores, quando temos oportunidade, os brindamos com os produtos.
Além da venda online, os produtos estão disponíveis em redes varejistas de vários estados. Já receberam proposta de exportação dos produtos? Quais são os maiores obstáculos que enfrentam para chegar ao consumidor final?
Sim. Desde que lançamos a marca, somos procurados por intermediários do mercado internacional, pois muitos dizem que nosso produto tem “cara de produto para mercado internacional”. Já fizemos algumas vendas pra França e temos um cliente ativo nos Estados Unidos, mas não consideramos que somos exportadores por que ainda é uma fatia muito pequena do negócio e sem muita regularidade. Estamos nos preparando para crescer nesse mercado e já temos um produto desenvolvido especialmente para isso que deve ser lançado ainda este ano. Estamos contando com o apoio da Apex Brasil para desenvolvimento de uma embalagem focada no mercado internacional.
Com relação aos obstáculos, acredito que o maior deles são os sabores pouco conhecidos fora do Brasil. Então, existe todo um trabalho de apresentação/degustação de produto que precisa ser feito para que o consumidor se sinta “encorajado” a comprar e isso exige muito investimento.
Do que sentem falta nas tratativas com as grandes redes varejistas?
Trabalhar com o varejo é algo bastante difícil para pequenas empresas no Brasil. A relação não é muito justa. As exigências dos varejistas são muito grandes e o custo muito alto. Acredito que ajudaria muito se eles entendessem que lidar com uma pequena empresa é muito diferente de lidar com uma grande, especialmente multinacional, e conseguissem flexibilizar as exigências e os custos, sendo mais sensíveis aos pequenos como forma de trazer produtos diferenciados para os seus pontos de venda.
A empresa foi contemplada com investimentos do Laboratório de Investimento da Conexsus e do 1º Fórum de Investimentos de Impacto e Negócios Sustentáveis na Amazônia (FIINSA), além de ter sido uma das vencedoras da 2ª Chamada de Bons Negócios pelo Clima da Climate Ventures. O que essas conquistas trouxeram de aprendizados?
Os aprendizados foram muitos em governança, comunicação, relacionamento, finanças, investimento entre outras áreas. Mas acredito que o mais importante foi nos enxergarmos como negócio de impacto socioambiental e entendermos a profundidade positiva do nosso negócio. Apesar de a Manioca ter nascido já com muitos itens de impacto, não nos víamos assim e por isso não nos relacionávamos muito com esse diferencial e nem os comunicávamos para nossos clientes.
A Amazônia é um dos temas favoritos da mídia no mundo inteiro. Como tem aproveitado disso para alcançar os consumidores?
Sempre que podemos falamos sobre todo o trabalho de impacto que realizamos, mas, na verdade, no Brasil, ainda é um percentual muito pequeno da população que dá valor ao tema. A mídia, muitas vezes, ainda está mais interessada em aspectos negativos da Amazônia do que positivos.
Pensam em ampliar as linhas de produtos? Que novidades vêm por aí?
Sim, estamos com oito produtos em desenvolvimento, com previsão de lançamento de todos até o começo do próximo ano. Recentemente lançamos a Granola de Tapioca (contém cumaru, cupuaçu e castanha do Pará), ainda em fase de introdução no mercado devido ao impacto provocado pela pandemia do coronavírus). Em breve, teremos novas linhas de produtos e apostamos em um deles para um grande lançamento no mercado nacional. Só não posso adiantar o que é para não estragar a surpresa aos consumidores.
Diante do cenário atual da pandemia, a grande maioria dos estados determinou o fechamento de bares e restaurantes. Como a Manioca reagiu a esse cenário? Que medidas foram tomadas?
Esse cenário trouxe um impacto gigante ao nosso faturamento. Tivemos uma redução de aproximadamente 90% nas vendas, pois além dos bares e restaurantes, o consumidor passou a dar prioridade ao consumo de produtos mais básicos. Paralisamos nossas operações no final de março e estamos quase parados até agora. Só não foi pior porque com o auxílio emergencial do governo federal, conseguimos que nossos funcionários tivessem renda e para se manter. Nossos fornecedores estão sendo acompanhados e, felizmente, conseguiram direcionar parte de suas produções aos mercados de suas cidades. Mas não nos deixamos esmorecer e estamos aproveitando a paralisação das atividades para fazer adaptações no nosso espaço produtivo e na implantação de uma nova linha de produção para um dos produtos a ser lançado em breve.