[Foto: Matheus Ponce]
O Brasil contabiliza 100 mil mortes por Covid-19. Em respeito à dor que atinge grande parte da sociedade, nós, da Página22, trazemos como registro deste momento uma história que joga luzes nas forças construtivas do bem, em contraponto à irresponsabilidade de governantes. Desde o início da pandemia, acompanhamos as ações em rede do grupo #Solidariedade, de Manaus, em auxílio a milhares de famílias atingidas pela crise. O resultado está nesta reportagem do jornalista Sérgio Adeodato, produzida em parceria com integrantes do movimento e alunos de Jornalismo, engajados em produzir conteúdo de impacto positivo. É uma contribuição que vai além do drama da saúde e da economia. Pode significar muito para a sustentabilidade e a conservação da Amazônia.
Quando o Brasil atinge 100 mil mortes por Covid-19, a maior metrópole da Amazônia é palco de uma mobilização em rede que leva solidariedade e ameniza a dor de milhares de famílias na travessia da crise
Puxirum é um dos vários termos indígenas típicos do linguajar amazônico. Significa ajuda mútua gratuita, cooperação, esforço coletivo em torno de um objetivo comum: plantar ou colher na roça, construir casas, costurar roupas. É a conjugação de forças e sinergias na lógica de que a soma de dois mais dois é maior que quatro. Além de etnias como a Sateré-Mawé e a Kaxuyana, a prática é comum entre caboclos e ribeirinhos. De tão forte na cultura indígena, a expressão tupi deu origem ao nosso “mutirão” – herança que não se restringe ao meio da floresta, mas influencia o cotidiano em Manaus, a maior metrópole da Amazônia, centro do principal estoque de biodiversidade tropical do planeta – e campo de prova e superação no drama da pandemia.
No bairro do Coroado, na periferia da cidade, a inquietude do manauara Alan Delon Linhares, 29 anos, ilustra localmente o movimento silencioso de empatia e união de forças que se repetiu, nos últimos meses, de Norte a Sul do País, na luta contra a Covid-19. Celular, wi-fi e rede de contatos são armas poderosas em momento crítico de vulnerabilidade social, em que arregaçar as mangas é um imperativo frente a insuficiência de ações do poder público, muitas vezes ausente. “Precisávamos fazer alguma coisa e começamos com o coração acima da razão, de forma voluntária e colaborativa entre muitos que sequer se conheciam”, conta Alan Delon, ponto inicial de uma rede formada no WhatsApp por jovens motivados a mobilizar doações, fazer o bem e amenizar impactos à vida de pessoas sob risco: o grupo #Solidariedade.
É como o puxirum dos tempos modernos, uma teia de conexões e histórias de vida que se entrelaçam, e, quando parece chegar ao fim, sempre abraça uma razão para continuar. A onda começou a se formar na última semana de março, quando ocorrências de inundação e incêndio em áreas de baixa renda ganharam destaque no noticiário local. Dez dias antes, 13 de março, Manaus registrava o primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus, e não demorou para a fulminante disseminação da doença tomar o centro de todas as atenções na região.
O quadro de riscos impulsionou o boca a boca do #Solidariedade nas redes sociais como um movimento orgânico de cidadãos unicamente conectados para fazer o bem, sem ligação com ideologias, partidos políticos ou instituições. “Na primeira ação, imaginávamos ajudar 20 famílias atingidas pelo incêndio e enchente, e acabamos atingindo o dobro”, diz Alan Delon, que à época da enchente devido às chuvas do inverno amazônico não imaginava a grave situação sanitária e econômica que a cidade enfrentaria nos meses seguintes, em razão da Covid-19.
Alan Delon foi para a linha de frente, com máscara e todo cuidado possível – mesmo diante dos riscos, com a mãe em tratamento de um câncer e o pai vítima de AVC. “A galera vai dando e a gente vai fazendo; uma coisa vai puxando a outra”, conta. Foi um período de aprendizados: “O foco não deve ser o dinheiro, como a gente aprende na faculdade, mas o porquê das coisas, o propósito”. São elementos inspiradores de um futuro profissional que se desenha para ele em projetos de impacto ambiental e social positivo para a Amazônia.
Manaus, como muitas metrópoles brasileiras, precisa dessa atenção. No bairro da Terra Nova, além da ameaça do vírus, quem vive ao lado de igarapés poluídos por lixo e esgoto sofreu com o prejuízo da enxurrada de março. “Não acreditava que aquilo realmente estava acontecendo com a gente”, conta Rafael Vilas Boas, 35 anos. O policial militar teve a moradia parcialmente destruída pelas águas; perdeu roupas e eletrodomésticos, mas não a disposição de reconstruir o que tinha conquistado na vida, ao lado da mulher e três filhos.
Ele recebeu cestas de alimentos e roupas, doadas pelo #Solidariedade, e passou a se perguntar: “Por que não ajudar outras pessoas também?”. Inspirado no apoio recebido, criou um grupo no WhatsApp para juntar amigos e fazer doações no bairro, replicando a corrente do bem.
Igual caminho seguiu a refugiada venezuelana Egledimar Crespo, 20 anos, no bairro da União. Após chegar do país vizinho com marido e filhos, e passar situação de vulnerabilidade nas ruas, sem renda, recebeu apoio de famílias brasileiras para ter o mínimo e se reerguer. Deu aulas particulares de espanhol, conseguiu emprego no Distrito Industrial, e então lançou-se a campo para doar pratos de comida e produzir máscaras de proteção. “É uma sensação de plenitude e de responsabilidade social que nos leva a sempre fazer mais, nunca parar”, conta Egledimar, com sonho de criar uma instituição de assistência a idosos. “Muitas vezes a necessidade não é de dinheiro ou bens materiais, mas tempo, palavra, atenção”.
Desigualdade social contrasta com a riqueza da floresta
A década de 2020 começou com desafios que chacoalham o imobilismo diante da realidade social, com efeitos que devem avançar pelo restante do século XXI, também para a vida dos 2,2 milhões de habitantes da capital amazonense. Enquanto fora da cidade o desmatamento tem registrado recordes, com destruição de um patrimônio genético de alto valor, dentro dela os problemas vão além dos riscos à saúde causados pela fumaça das queimadas ao seu redor.
A pandemia de Covid-19 escancarou a desigualdade social que integra o lado obscuro da Amazônia, junto com a grilagem e conflitos de terra, tráfico de drogas e pessoas, garimpo e madeira ilegal. São realidades que convivem com o vigor industrial da Zona Franca de Manaus – concentração econômica que atraiu populações para a capital e evitou maior pressão sobre a floresta no interior. Por outro lado, o crescimento urbano, sem o devido planejamento, resultou na expansão de ocupações irregulares e deficiência no fornecimento de água, energia e saneamento básico, entre outros fatores de degradação.
“Foi uma adolescência agitada pelo ambiente de gangues, drogas e violência”, revela Alan Delon, neto de migrante que chegou do Ceará em busca de oportunidades, participou da ocupação de um terreno público e lá construiu moradia, montou negócio e viu a área crescer até virar o populoso bairro da Zona Leste onde a família vive até hoje. Ruas de barro, esgoto a céu aberto e necessidade de buscar água de beber na bica compõem o cenário local. “Como menor, fui levado para o sistema de reeducação e acabei virando socioeducador após a experiência de prestar serviço comunitário obrigatório por três meses”, conta Alan Delon. Estava ali a origem da atual motivação para ações solidárias: “Um dia resolvi ajudar por conta própria e chamei amigos para plantar mudas na beira do igarapé do bairro”.
Em local de vulnerabilidade social, o rapaz abraçou oportunidades que a maioria dos companheiros não teve. Sua trajetória passa inicialmente pelo serviço militar, pelas faculdades de Engenharia (interrompida) e Administração de Empresas, até o ingresso no serviço público, atuando hoje como articulador social na Comissão de Meio Ambiente, Proteção aos Animais e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Legislativa do Amazonas.
No apelo da pandemia, dar impulso ao #Solidariedade foi um movimento natural, como uma onda de conexões arrastando doadores e voluntários articulados na coleta, montagem e entrega de cestas básicas e diversos outros itens às famílias beneficiadas. Foram alimentos, artigos de higiene e limpeza, roupas, camas e até produtos para bebê, bens que por trás tinham algo mais valioso que números.
Movimento orgânico e organizado
“Foi um trabalho de formiguinha”, conta a consultora e designer Camila Lima, ao lembrar que se juntou ao grupo após conversa com amigas do Rio de Janeiro preocupadas com a difícil realidade de Manaus exibida nas reportagens sobre a pandemia. “Fizemos uma vaquinha para doar caixas de sabão e roupas, e comecei a ajudar nas peças de comunicação e na organização do grupo”, diz. Foi quando as estratégias ganharam planejamento, passando a primeiro captar as doações para depois definir as famílias atendidas – e não o inverso, como antes. Isso permitiu viabilizar a logística de coleta e distribuição, dentro de campanhas focadas no perfil do público a ser beneficiado.
“Se cada um fizer um pouquinho, juntos podemos fazer a diferença”, enfatizou Camila em post do WhatsApp que convocava doações de produtos de higiene, máscaras e outros itens de saúde, e pedia ajuda para estender o gesto com a divulgação entre grupos de amigos, familiares e vizinhos. “O impacto parece pequeno, mas pode significar muito para as pessoas em situação de risco”.
Nessa etapa, evidenciou-se o poder do trabalho em rede e a importância de ser puxado por lideranças: “Não adianta ficar esperando que alguém levante a mão”. Assim, na ponta do puxirum, Camila somou forças valendo-se da experiência no apoio a animais de rua e na defesa de causas sociais e ambientais na cidade. “Impressiona perceber no rosto das pessoas a gratidão pela ajuda em momento tão turbulento, como ocorreu na entrega de marmitas no centro de Manaus”, afirma Camila, cuja qualificação como designer de serviços, que envolve de pessoas na construção de projetos, foi fundamental no processo.
A gestão com planilhas e relatórios é chave para os bons resultados, mas nada seria alcançado sem a indispensável “vanzinha do amor” – nome carinhosamente dado pelos integrantes do #Solidariedade ao carro que faz as rotas de coleta e entrega dos itens às famílias. Pertencia a um amigo de Alan Delon, um peixeiro que ficou bem de vida e, por apego, não quis se desfazer do velho veículo já encostado, em precárias condições para o negócio no comércio – mas não para o transporte das doações.
Ajuda para quem acolhe crianças
De post em post, o grupo chegou à Waldiza Ribeiro, a dona Wal, 63 anos, mulher que aos 21 tinha sonho de casar e ter 10 filhos. Teve dois biológicos, mas ao longo da vida acolheu outros 207 – na maioria, crianças entregues na porta de casa por mães em situação de risco. Do total, 22 têm o nome dela na certidão de nascimento, e 77 moram hoje ao seu lado, em uma casa que está sendo ampliada por meio de doações, no bairro Lírio do Vale I, em Manaus. Ao receber cestas básicas e roupas levadas pela “vanzinha do amor”, dona Wal identificou-se com a empatia do movimento voluntário: “Se todos pensassem igual, não haveria tanta criança abandonada”.
Marcelo Cordeiro, 27 anos, vendedor ambulante de doces, é deficiente físico e não tem acesso a benefícios do governo. Sem clientes na pandemia, pela primeira vez na vida dependeu da solidariedade para garantir o básico a ele, mulher, dois filhos e uma terceira que está por vir. “Um companheiro de rua me falou sobre esse grupo, enviei meu nome e ontem recebi alimentos e uma banheira para a bebê”, conta.
A pandemia aflorou o lado solidário que potencializa ajuda, inclusive no isolamento social necessário para barrar o contágio. Mobilizados em rede, voluntários podem mais facilmente chegar na ponta da linha onde o poder público muitas vezes não alcança – especialmente no Amazonas, devido ao isolamento e à dificuldade de logística e deslocamento. É um mundo invisível para governos, mas não para a sociedade civil que se mobiliza para fazer o bem, na figura de pessoas como João Cascaes, 21 anos: “Nas ações percebemos o abandono e a falta do básico para quem mora ao lado da maior capital da Amazônia”.
Cultivando sonhos
Integrante do #Solidariedade, o estudante de Turismo teve Covid-19 junto com toda a família e quando curado tomou uma lancha para levar cestas básicas à comunidade ribeirinha de Nossa Senhora de Fátima, arredores da cidade, no Rio Negro. “Idosos relataram que recebiam ajuda pela primeira vez na vida, e percebi que, naquele momento, se sentiam visíveis”, conta João, para quem “é preciso estender a mão, porque a crise pode ser mais longa do que se imagina”.
Como uma vibração positiva que rebate de volta, o rapaz encontrou no voluntariado o melhor remédio contra a depressão na adolescência, e agora quer avançar nos estudos, realizar o sonho de trabalhar com turismo comunitário sustentável, e desta forma contribuir para um futuro mais digno nessas localidades em meio à beleza amazônica.
Bruna Santos, 20 anos, está na mesma toada. Ela conheceu a comunidade indígena Terra Preta, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Poranga-Conquista, quando trabalhava na lojinha de artesanato de um barco de luxo com rota frequente na região. O local foi palco do primeiro pico de Covid-19 fora de Manaus, antes de se espalhar pelo interior e chegar a lugares distantes e isolados. “Acionei o grupo, pois já conhecia a Camila, e levamos alimentos e itens de limpeza pelo rio até perto de uma casa ribeirinha, sem sair do barco para evitar risco de mais contágio”, relata Bruna. “Também deixamos lá uma doação de xarope de jatobá, remédio da medicina tradicional para aumento da imunidade, feito por mulheres de uma comunidade vizinha”.
Ela percebeu que a vida no interior da mata é bem diferente da normalmente mostrada pelo turismo. “Mais do que empatia, é preciso convívio com essa realidade”, afirma Bruna, também atuante na distribuição de marmitas a moradores de rua no centro de Manaus – fase seguinte da campanha do #Solidariedade, no afã de atingir novos grupos sociais em vulnerabilidade.
As conexões se ampliaram, nutridas pelas redes pessoais de colaboradores e colaboradoras, como a de Joana Darc Cordeiro, deputada estadual (PL-AM) que diz ter apoiado a fase inicial das ações exclusivamente como cidadã, até porque nesta onda coletiva não há espaço para quem surfa com interesses econômicos ou políticos. O processo autêntico de fazer o bem é a marca da iniciativa.
No olhar de Debora Pessoa, 26 anos, uma das voluntárias que colocaram a mão na massa na separação de produtos para cestas básicas, “o momento mostra que estamos todos juntos neste desafio”. Desde menina atuante em ações solidárias na companhia de uma tia assistente social, não faria sentido para a administradora de empresas ficar de braços cruzados na pandemia. Muito menos na atual condição de aluna de Filosofia, em que cultiva uma visão integrada sobre as relações na sociedade, com respeito ao próximo: “Doar para outro é como doar para mim mesma”.
Débora integrou-se ao coletivo puxada por Isabella Arruda, a diretora da escola de Filosofia onde estuda, a Nova Acrópole, em Manaus, que por sua vez chegou ao #Solidariedade por meio da Camila, como um efeito-dominó. “Questões como de onde venho, para onde vou e com qual propósito estão vindo à tona”, afirma a advogada, que atua na Defensoria Pública. Na sua visão, o momento de crise exige a garantia do básico, mas “a vida não pode estar baseada apenas na subsistência”.
O valor do pensamento crítico e da felicidade
Para Isabella, o questionamento é chave contra a manipulação para se acreditar em verdades impostas por poderosos ou fakenews, como hoje se vê nas redes sociais. Pensar de forma crítica, conclui, é importante tanto para quem doa, como para quem recebe a ajuda, e “repassar aprendizados desse tipo é a melhor forma de solidariedade”. Ela diz que o voluntariado é uma oportunidade de colocar tudo isso em prática: “Encanta ver pessoas totalmente diferentes, com interesses e histórias distintas, e que provavelmente jamais se encontrariam em outras situações, agindo ali com um propósito único”.
Ela tem consciência de que não está propriamente resolvendo o problema da desigualdade e demais mazelas sociais do País. “Mas ajudamos a amenizar, o que não é pouco para quem está passando fome”, completa Isabella. “Para essas pessoas, estamos fazendo a diferença, com consciência e propósito, sem assistencialismo”.
Isabella e companheiros têm perfil apropriado para lidar com essa demanda, segundo a psicóloga social Andréa Sena, integrante de um grupo de acolhimento no Impact Hub Manaus durante a pandemia. “São jovens descolados, que participam ativamente de redes, conhecem os caminhos para conseguir fundos e querem fazer acontecer de forma que outros sigam igual exemplo”.
O que move essa gente a romper a inércia em suas bolhas e olhar para o outro? O que a pandemia tem ensinado sobre isso? E qual o significado não apenas para a vida das pessoas, mas para o futuro da Floresta Amazônica?
A razão disso tudo pode estar na busca por felicidade. “Há uma relação direta entre a bondade e o ato de doar e a satisfação sobre a própria vida”, ressalta Alíria Noronha, professora do tema na Universidade Nilton Lins, em Manaus. Ela cita pesquisas provando que pessoas mais felizes se sentem motivadas a fazer o bem. “Do lado de quem recebe, a sensação de ter uma rede de apoio e sentir-se protegido também é um elemento importante para a felicidade”.
A pandemia, segundo ela, reacendeu o debate em torno da relação entre o “ter” e o “ser”. “A questão da felicidade está chegando com força no mundo corporativo, associada ao desafio da produtividade e à busca de propósito”, completa Alíria, que no trabalho de doutorado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia estudou o chamado “bem-viver” dos Baniwa, povo indígena da região do Alto Rio Negro, dedicado a esse conceito como um novo paradigma de seus projetos de vida. Trata-se de um conjunto de aspirações baseado nas relações de reciprocidade, solidariedade e partilha.
“Entre os Baniwa, a felicidade está associada às relações comunitárias e ao sentimento de que todos são iguais, e isso se reflete em hábitos do dia a dia nas aldeias, como o cuidado coletivo com as refeições”, explica Alíria.
O movimento solidário criado em Manaus espelha raízes indígenas. É campo fértil de inspiração para profissionais de vanguarda em várias áreas do conhecimento, no debate sobre uma possível transição evolutiva da humanidade. O cenário da Covid-19 turbinou reflexões como as do biólogo americano Bruce Lipton, renomado pelo trabalho com células-tronco e pela divulgação da epigenética, a nova biologia das crenças e das emoções que condicionam nossa percepção da realidade. Entre os temas de fronteira, desponta o conceito de Comunicação Construtiva, aquela de impacto transformador da pessoa e da sociedade, defendido no Brasil pelo jornalista e escritor Edvaldo Pereira Lima.
Ele ressalta: “A civilização estabelecida neste planeta está passando por um choque de tremendo impulso transformador, com um destino incerto. A resposta depende de como vamos reagir às dores e ao sofrimento que podem nos impelir para a edificação de um novo mundo” – um dilema que envolve não somente jornalistas ou blogueiros, mas lideranças de diferentes perfis profissionais e todos que anonimamente utilizam a comunicação como forma de se expressar e multiplicar ideias. O olhar para soluções, e não exclusivamente problemas, pode ser um caminho mais edificador. Como escrevia o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), se você olha longamente para um abismo, ele também olhará para dentro de você.
A psicóloga Deborah Dubner, autora do livro “A Prática da Gratidão”, concorda: “A pandemia está mudando a noção de valor”. Na atual crise a percepção de finitude está sendo alterada, diz ela, em especial entre os mais jovens, que pensam no agora e não tanta na esperança de um futuro distante. Para a psicóloga, as pessoas que se mobilizam para sentir-se vivas por dentro, escudo contra energias de raiva e medo do entorno. “A gratidão é como um músculo que se fortalece por meio das nossas escolhas, relacionadas a dois pontos, na pandemia: ficar lamentando dores ou se conectar com o lado mais luminoso da esperança, concentrando-se no que faz sentido e no que podemos oferecer com base em nossas potências pessoais”.
Ações generosas aumentam o bem-estar e a autoestima. Allan Luks, autor do livro O Poder Curativo de Fazer o Bem: os benefícios espirituais e a saúde em ajudar os outros, entrevistou mais de 3 mil voluntários para concluir que ações filantrópicas melhoram a saúde física, mental e emocional, com redução do nível de estresse. São elementos norteadores da Psicologia Positiva, movimento criado na década de 1960 pelo pesquisador americano Martin Seligman, insatisfeito pela demasiada atenção à doença mental, ao sofrimento e à dor em detrimento do bem-estar.
A clássica afirmação de que “notícia boa não é notícia” é colocada em xeque pelo trabalho de coletivos solidários na pandemia de Covid-19, como provam os resultados das ações do #Solidariedade, em Manaus – uma história até agora contada por inúmeras postagens no WhatsApp desde março, quando a expansão da pandemia, com seus impactos econômicos e sociais, exigia a mobilização da sociedade.
Um dos posts mais recentes, publicado por Alan Delon, anuncia a etapa final das ações: “Em 19 de agosto é comemorado o Dia Nacional da Luta das Pessoas em Situação de Rua. E realizaremos uma ação chamada Banho do Bem, na Praça da Matriz, das 9h às 12h. O evento também contará com a presença de outros grupos e projetos sociais. Ficamos responsáveis pelos kits que serão distribuídos para essas pessoas. Recebemos doações como barbeadores, máscaras de pano, absorventes, creme dental e escovas”. Será o fechamento do ciclo, junto com um sopão comunitário, pelo menos até surgir um novo apelo social para mexer com o poder de mobilização do grupo.
Efeitos para toda a Amazônia
Até a primeira semana de agosto foram registradas 2.036 mortes por Covid-19 em Manaus. Desde julho, os números arrefeceram, embora permaneça latente o risco de uma nova onda por conta da flexibilização do isolamento. Com a passagem do pico, o grupo mirou novos horizontes. A experiência tem muito a ensinar: ao longo de cinco meses, as atividades beneficiaram mais de 1 mil famílias de diferentes perfis sociais com cestas básicas, protetores faciais, máscaras, frascos de álcool em gel, kit de limpeza, roupas, marmitas e mudas de árvores frutíferas.
Pela experiência adquirida nas etapas da campanha junto aos atingidos por enchentes na cidade, comunidades indígenas e ribeirinhas e moradores em situação de rua, o grupo foi demandado a uma outra missão importante: escoar doações de empresas e instituições no enfrentamento à Covid-19, fazendo a ajuda chegar a quem precisa.
Para quem superou o pesadelo da pandemia com ajuda do #Solidariedade, os números significam muito – embora pareçam pequenos, diante do que foi mobilizado em todo o Brasil: cerca de R$ 4,8 bilhões, de acordo com o Monitor das Doações Covid-19. Em Manaus, mais que estatísticas, o movimento aponta para ganhos que extrapolam a questão da saúde e da economia, pois o espírito fraterno de respeito ao próximo inclui não só o indivíduo, como também a casa, o jardim, o ambiente onde vive. Sob um olhar mais macro, a floresta. E nisso a capital amazonense tem uma peculiaridade especial: cercada por biodiversidade por todos os lados, está no centro da atenção global contra o desmatamento.
“Solidariedade, compaixão e empatia ajudam na percepção de resgate e pertencimento da cidade, principalmente em áreas urbanas periféricas ocupadas por pessoas que vieram da floresta e podem tê-la de volta”, destaca Paula Carramaschi Gabriel, integrante do grupo e coordenadora da Agenda Cidades Sustentáveis, da Fundação Amazonas Sustentável, em Manaus.
Alan Delon, João, Camila, Isabella, Bruna, Débora, Paula e todos os cerca de 50 personagens anônimos do puxirum têm boas histórias a contar e, principalmente, replicar. Conectados em rede, podem também fazer a diferença para a conservação da Amazônia, estratégica para saúde e a economia. Cada vez mais se percebe que não há espaço para a espécie humana fora da vida em comum. São lições ao enfrentamento de doenças e à garantia de melhor qualidade de vida, visando um futuro mais saudável e menos desigual.
“Esta foi uma das imagens tiradas durante a entrega das cestas durante a segunda ação para a população ribeirinha do RDS Puranga Conquista. Ela representa, pra mim, a força de uma rede focada em fazer o bem e ajudar ao próximo. Graças a ajuda de vários voluntários com suas doações e parcerias que foram feitas, conseguimos ajudar não só estas famílias, mas muitas outras que estavam precisando de um apoio num momento tão crítico da pandemia” – Camila Lima