[Imagem: tela do artista Moacir Cardoso retrata o cotidiano no manguezal]
Ao restaurar áreas degradadas, projeto resgata identidade cultural na maior faixa contínua de manguezais do mundo
“É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo/ Escutando o som das vitrolas, que vem dos mocambos/ Entulhados à beira do Capibaribe, na quarta pior cidade do mundo/ Recife, cidade do mangue, incrustada na lama dos manguezais/ Onde estão os homens-caranguejos/ Minha corda costuma sair de andada, no meio da rua, em cima das pontes/ É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo/ Procurando antenar boas vibrações/ Preocupando antenar boa diversão”
“Antene-se”, CD Da Lama ao Caos, Chico Science, 1994
Há 30 anos, o cantor e compositor pernambucano Chico Science encontrava na lama a fonte inspiradora para criar o movimento Manguebeat – uma alusão aos simbolismos em torno do típico ecossistema da costa brasileira. Naquele ano de 1991, configurava-se na cena recifense o fenômeno cultural de uma batida musical que ganharia fama pela mistura de ritmos regionais, como o maracatu rural e o coco de roda, com a inusitada influência do rock, do hip-hop e da música eletrônica.
Nos dois discos gravados pela banda Chico Science & Nação Zumbi, Da Lama ao Caos e Afrociberdelia, multiplicavam-se referências aos mangues como uma realidade “raiz” em contraste – e, ao mesmo tempo, em simbiose – com uma cidade cosmopolita e cheia de paradoxos ao redor. Letras de canções como “Maracatu Atômico” ou “Caranguejo Elétrico”, e suas metáforas que evocavam a diversidade do mangue, falavam da insurreição de “caranguejos com cérebro” e exaltavam a figura do “mangue-boy”, parte malandro, parte trabalhador esperto, antenado a boas vibrações e inovações do mix entre samba e jazz, entre lama e antena parabólica, conforme estudos acadêmicos sobre o tema.
Antes de sair de cena devido a um acidente de carro na avenida que liga o Recife a Olinda, em fevereiro de 1997, Chico Science viu o movimento sair dos guetos e crescer. Na segunda metade da década de 1990, a onda cultural do Manguebeat já contagiava diversos campos com a miscelânea de tradição e modernidade – da gastronomia e literatura às artes plásticas e até ao design de interiores na arquitetura, mesclando o rústico ao sofisticado. Refletiam-se, assim, inquietudes marcantes da última década daquele milênio, juntamente às projeções do imaginário diante do que estaria por vir no novo século.
A inspiração veio das simbologias em torno da particular realidade dos mangues nordestinos, não raro estigmatizados pelo rótulo da pobreza, negligenciados como refúgio hostil de mau-cheiro, lama, espinhos e caranguejos. Nas cidades, grande parte do que restou dessas matas está escondida pela pressão urbana em cursos d´água poluídos; fora delas, são degradadas pelos lucros de viveiros de camarão e da especulação imobiliária em áreas litorâneas.
Sua majestade, o Ataíde
Na zona costeira da Amazônia, a chamada Amazônia Azul, onde estão 80% dos manguezais brasileiros, na maioria em bom estado de conservação, o cenário é diferente. Que nos perdoe Chico Science com seu inestimável legado cultural, mas na vasta região onde a maior floresta tropical do planeta beija o Oceano Atlântico, o rei tem outro nome: Ataíde. Trata-se de uma entidade sobrenatural masculina, atribuída pelas lendas como ente protetor dos manguezais, no Pará. Com uma característica corpórea marcante para sua fama: o grande tamanho do órgão sexual, enrolado ao pescoço.
“O ser mitológico é representado pela figura de um homem negro e peludo, que castiga atitudes erradas, como pescar no domingo ou tirar mais caranguejo e madeira do que se deve, e por isso é bastante temido e respeitado pelas comunidades de pescadores”, explica Marcus Fernandes, coordenador do Laboratório de Ecologia de Manguezal (LAMA), da Universidade Federal do Pará (UFPA).
“São seres míticos que ameaçam aqueles que não cumprem as regras estabelecidas pelos membros da comunidade”, reforça a pesquisadora Roseli da Silva Cardoso, em dissertação de mestrado sobre o tema na UFPA. O Ataíde junta-se a outros personagens que simbolizam o respeito à natureza na cosmovisão de comunidades tradicionais, como o “boto, a mãe d’água e a mãe da praia”, diz a pesquisadora. Na sua visão, “as narrativas locais dos pescadores contemplam uma infinidade de saberes constituídos pela necessidade de expressar a história de desejos, privações, e algumas vezes, de realizações do caboclo amazônico”.
“Não podemos deixar de mencionar a resistência dos pescadores e a introdução de novas formas de organização social estabelecidas a partir dos saberes tradicionais caracterizados pela forte relação com o meio natural, que resultam em variadas narrativas orais míticas advindas do contexto da pesca”, conclui Cardoso, ao destacar o depoimento abaixo colhido na pesquisa que realizou em Bragança (PA).
Eu trabalhei na maré, mas eu tinha muito medo de dormir em beira de mangal; é assombrado (…) O mangal é um lugar soturno, né. Acho que se eu fosse tirar caranguejo, não trabalhava só. (…) dentro do mangal, porque faz medo mesmo (…) Essas histórias do “Ataíde”, que o pessoal já disse que viro isso mesmo, né. Com certeza é um espírito maligno (…) que se transforma no homem, então ele vai fazer tudo o que ele deve fazer. Eu nunca vi (…), mas não duvido que é espírito mau. Pescador João Miranda Mescouto, em 9 de dezembro de 2014, contido na dissertação de mestrado “Os saberes da gente do mar: o imaginário e as experiências de vida dos pescadores da Vila do Treme, Bragança (PA).
Expressões dos manguezais
O Ataíde é conhecido pelos mais antigos como Sarambuí, expressão que inspirou o nome de uma associação voltada ao desenvolvimento social e conservação dos ambientes da costa amazônica brasileira, sediada no Pará. A ONG é correalizadora, ao lado do Instituto Peabiru, do projeto Mangues da Amazônia – iniciativa desenvolvida em parceria com o LAMA, com patrocínio do Programa Petrobras Socioambiental.
O objetivo principal é recuperar 12 hectares de manguezais degradados em três reservas extrativistas nos municípios de Augusto Corrêa, Bragança e Tracuateua (PA), beneficiando diretamente 1,6 mil pessoas que dependem desses ambientes para obter o sustento, por meio da pesca, captura de caranguejo e extração de madeira. Em paralelo ao cultivo e plantio de mudas com engajamento dos moradores, as atividades abrangem ações educativas junto a crianças, jovens e adultos, e apoio a pesquisas acadêmicas voltadas à valorização da identidade cultural das comunidades tradicionais.
“Esses valores imateriais devem ser considerados por estratégias de conservação dos manguezais”, aponta Indira Eyzaguirre, coordenadora de pesquisas socioambientais do LAMA apoiadas pelo projeto. As manifestações culturais, a apreciação estética, o enriquecimento espiritual, a recreação física e mental e a transmissão do conhecimento tradicional compõem o conjunto dos serviços oferecidos pelos ecossistemas ao ser humano – da mesma forma que a provisão de água e regulação do clima, entre outros benefícios que atualmente mobilizam uma maior escala dos esforços e investimentos na conservação ambiental.
“O manguezal é um ecossistema que faze parte das várias Amazônias e o nordeste paraense integra a maior e mais importante área contínua de manguezais do mundo”, afirma Eyzaguirre. Nesse sistema socioecológico complexo, diz ela, residem as chamadas “civilizações do mangue”, comunidades tradicionais que dependem daqueles serviços ecossistêmicos. “O conhecimento sobre todos esses usos é essencial à conservação do manguezal, que inclui não somente o sistema ecológico, mas também o social”, reforça.
Com propósito de dar visibilidade a esses atributos socioambientais da relação homem-natureza, a pesquisadora desenvolveu como trabalho não acadêmico o storytelling fotográfico “As Vozes da Amazônia Azul”, contendo cenas da dinâmica cultural dos manguezais paraenses. Dividido em sete contos, o ensaio foto-documental permite uma viagem imagética por várias paisagens e dinâmicas relativas aos manguezais, como a tradição em torno da farinha, alma da agricultura familiar nessas áreas.
Além da atividade dos homens na carpintaria dos barcos, o cotidiano nas comunidades retratado por Eyzaguirre destaca o ofício das mulheres – desde as marisqueiras na coleta de sururu e retirada da polpa de caranguejo até as trabalhadoras das caieiras na produção de carvão com a madeira de mangue. Atenção especial foi dada às crianças: “Sem as meninices, não existiria no futuro o conhecimento tradicional”.
A ideia da pesquisadora é utilizar o material em futuros projetos de educomunicação junto a essas comunidades de pescadores, hoje alvo de estudos na dimensão cultural apoiados pelo projeto Mangues da Amazônia. “Queremos saber como os manguezais são expressados nas manifestações artísticas ao seu redor”, explica o engenheiro de pesca e músico Ruann Lins, pesquisador do LAMA especializado em etnomusicologia – o estudo da relação entre conhecimento tradicional e música.
Sabe-se que por lá existem artistas de carimbó, xote e outros ritmos relacionados à marujada, ponto alto dos festejos de São Benedito, de origem afro-brasileira, celebrados no mês de dezembro. Seria um campo fértil para Chico Science e seus discípulos.
A seguir, ensaio fotográfico “As Vozes da Amazônia Azul”, da pesquisadora Indira Eyzaguirre, da UFPA