O Quarto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), lançado recentemente em Bruxelas, chamou atenção para o fato de que mudanças climáticas já estão ocorrendo e que elas são causadas por atividades humanas, especialmente a queima de combustíveis fósseis (mas também a destruição da cobertura florestal). A lista de impactos previstos é impressionante.
Na América Latina, a destruição de 43% das 69 espécies de árvores da Amazônia até o fim do século; o desaparecimento de 24% das 138 espécies de árvores do Cerrado; a redução de terras adequadas ao plantio de café; aumento na extinção de mamíferos, pássaros, borboletas, sapos e répteis até 2050; redução na disponibilidade de água e na geração de hidreletricidade em virtude do derretimento das geleiras dos Andes; severa degradação de terras, desertificação em áreas do Nordeste e em outros lugares; substituição de parte da floresta tropical por savanas na Amazônia Oriental; aumento da vulnerabilidade a eventos extremos, como secas, cheias, ciclones.
Como enfrentar esses desafios? Na prática, as respostas às mudanças climáticas têm se focado mais em políticas de mitigação, que são relacionadas à redução das causas antropogênicas que levam a essas mudanças. Através da mitigação são tomadas medidas para reduzir as fontes de emissão de gases de efeito estufa para a atmosfera. Há ainda muito que precisa ser feito em mitigação até que a composição de gases de efeito estufa na atmosfera possa ser estabilizada. O IPCC desenvolveu vários cenários de estabilização, que variam conforme o esforço de mitigação adotado pela sociedade, e que podem levar o aquecimento do planeta a valores que se situam entre 2 e 4 graus centígrados, até o fim do século, ou até mais que isso.
Não falamos apenas de mudanças futuras. O aumento de emissões que se verificou até agora já compromete uma elevação de temperatura média do planeta da ordem de 0,6 grau. O número médio esconde variações, por exemplo, entre mar e terra, entre latitudes altas e baixas, entre regiões. Em alguns lugares, o aumento será bem maior, trazendo impactos significativos na variabilidade climática, com mais eventos extremos e elevação do nível do mar. Portanto, por mais que a política de mitigação seja bem-sucedida, um certo nível de mudanças climáticas já é inevitável. Mitigação apenas não é suficiente.
A política de adaptação diz respeito a como aumentar a capacidade de convivência com um clima diferente, através da redução de vulnerabilidades, do aumento de resiliência e do reforço de capacidade adaptativa.
O IPCC define vulnerabilidade a mudanças climáticas como “o grau segundo o qual sistemas geofísicos, biológicos e socioeconômicos são suscetíveis a mudanças climáticas e incapazes de conviver com seus impactos adversos”. Resiliência é a capacidade natural de um sistema de voltar ao normal depois de sofrer um dado distúrbio causado, por exemplo, por um evento climático. Em casos extremos, um sistema natural pode não voltar ao seu estado natural. Isso aconteceria, por exemplo, com a Amazônia, que poderá ter partes savanizadas, e com o Nordeste do Brasil, que se tornaria mais árido.
Exemplo de Nova Orleans
O conceito de “capacidade adaptativa” diz respeito aos recursos disponíveis em uma dada sociedade, que lhe dão os meios para adaptar-se a eventos extremos. Existem muitos países pobres que têm baixas capacidades adaptativas, em termos de recursos naturais, humanos e tecnológicos. Esses países são naturalmente mais vulneráveis e sofrem maiores impactos. Por outro lado, a existência de capacidade adaptativa não significa necessariamente que ela será utilizada. Basta ver o exemplo recente do furacão Katrina, nos Estados Unidos, que causou enorme impacto sobre a cidade de Nova Orleans, apesar da alta capacidade adaptativa existente no país.
A adaptação é necessária não apenas por causa de mudança futura do clima, mas também por causa da variabilidade climática corrente. Independentemente de mudanças, a variabilidade normal do clima causa eventos como secas e cheias que têm efeitos significativos, sobretudo sobre as populações mais pobres. Os eventos climáticos que ocorrerão no futuro terão a mesma natureza dos atuais, entretanto com intensidades e efeitos mais graves. Por isso, a experiência de adaptação a eventos correntes como secas e cheias é importante para o desenho de políticas de adaptação a mudanças climáticas globais previstas.
No caso brasileiro, existe ampla experiência de adaptação, por exemplo, às secas do Nordeste brasileiro, ou às cheias em várias regiões. O País possui um sistema de defesa civil que é acionado em casos de eventos como a seca na Amazônia, em 2005. Há vários sistemas estaduais e locais que complementam o federal. Esse sistema tem sido útil, embora não capaz de prevenir todos os problemas causados por eventos extremos. Se, no futuro, secas e cheias se tornarão mais freqüentes e várias regiões se tornarão mais vulneráveis, fortalecer os sistemas atuais de enfrentamento de desastres naturais pode ser a primeira medida para melhorar a capacidade de adaptação do País às mudanças climáticas que estão por vir.
Um bom sistema de adaptação requer entendimento da cadeia que liga a variabilidade climática a impactos e a respostas adaptativas. Por exemplo, uma alteração no clima pode causar excesso ou a insuficiência de precipitação. Um excesso de chuvas pode levar a cheias, que geram deslizamentos de terras, perda de plantações e de criações e perdas humanas.
Estratégias de sobrevivência
O impacto será maior sobre áreas e populações mais vulneráveis ou sobre ecossistemas com menor resiliência. Por sua vez, a falta de precipitação pode produzir secas, que causam perdas na disponibilidade de água e na agricultura. As regiões e populações mais vulneráveis são mais afetadas. Uma seca extrema no Semi-Árido do Nordeste brasileiro afetaria milhões de pessoas.
Caracterizado um impacto, o próximo elo é a resposta de adaptação da sociedade. As pessoas exercem suas estratégias de sobrevivência. Primeiro, os agricultores desistem das plantações, e isso causa enorme desemprego dos trabalhadores rurais. Em seguida, desistem das criações (que perecem ou são deslocadas para regiões mais úmidas, ou vendidas por preço baixo). Freqüentemente, as pessoas migram, muitas vezes definitivamente.
Com as transformações na organização social do Nordeste, sobretudo a partir de meados do século XX, com as comunidades eclesiais de base, os sindicatos rurais e as organizações da sociedade civil (que aumentaram a “capacidade adaptativa” dos mais pobres), uma forma de reação mais freqüente tem sido a pressão sobre as autoridades públicas, por meio de invasões de armazéns ou saques no comércio.
A resposta do governo vem inicialmente através de programas emergenciais de criação de empregos, frentes de trabalho, distribuição de água e de alimentos. O governo também tem respondido de forma não emergencial, procurando reduzir a vulnerabilidade através da diversificação da economia, levando a menor participação da agricultura de sequeiro (sem irrigação, dependente da chuva) na formação do PIB.
A agricultura, no passado, podia representar até 30% do PIB regional e hoje está em torno de 6%. No entanto, 35% da força de trabalho continua dependente dessa atividade, o que denota a existência de um grupo social altamente vulnerável. Uma seca continua sendo um grande problema no Nordeste, embora não represente mais o mesmo grau de desastre social que acontecia no passado, quando milhares de pessoas podiam morrer como conseqüência de um evento extremo. O que poderá acontecer se as secas se tornarem mais freqüentes e os solos mais improdutivos, como dizem os cenários de mudanças climáticas? É preciso fortalecer as políticas de adaptação, tanto em resposta a eventos extremos (ações de emergência), como na redução de vulnerabilidade e aumento de capacidade adaptativa.
Além de preparar-se melhor para enfrentar a variabilidade climática atual, é necessário também começar a preparar-se para enfrentar eventos futuros. O que acontecerá se o nível do mar se elevar em 60 centímetros até
o fim do século. Esta é uma previsão conservadora. Áreas costeiras baixas como as do Rio de Janeiro, de Recife e de Belém podem ser afetadas. Algumas áreas agrícolas também. Não temos planos para esses casos.
Em outros países, já existem exemplos de preparação para um possível aumento do nível do mar. Por exemplo, no Canadá, a construção da Confederation Bridge (Ponte da Confederação) teve sua altura acrescida em um metro para prevenir um possível futuro aumento do nível do mar. Novos projetos em áreas costeiras deveriam incluir a análise de impacto ambiental, social e econômico de uma possível elevação do nível do mar. O mesmo deveria ser feito em relação a outros possíveis impactos.
A Convenção de Mudanças Climáticas requer que cada país desenvolva um Plano de Ação Nacional de Adaptação (Napa, na sigla em inglês). Alguns países têm avançado nessa direção, mas a evidência sobre resultados até agora é escassa. O Banco Mundial vem apoiando em vários países, como nos do Caribe, programas de Adaptação a Mudanças Climáticas, focando na redução de vulnerabilidades a eventos extremos atuais e futuros e no aumento de capacidade adaptativa.
No Brasil, a adaptação a mudanças climáticas ainda é uma agenda vazia. Muito pode ser aprendido da experiência de impactos de eventos climáticos correntes, como secas e cheias, em várias regiões.
Como lidar com um Semi-Árido ainda mais seco, com zonas de desertificação? Ou com uma Amazônia mais savanizada? Ou com maior escassez de água? Ou com maior freqüência de eventos extremos, inclusive alguns que antes não ocorriam no País, como os ciclones? Em suma, como promover o desenvolvimento sustentável nos diversos espaços do País, para que a sociedade se torne mais resistente a crises como as que são provocadas pelas mudanças do clima?
Em primeiro lugar, a questão das mudanças climáticas precisa deixar de ser uma preocupação de alguns poucos cientistas, ou apenas dos ministérios do Meio Ambiente, da Ciência e Tecnologia e das Relações Exteriores. Precisa ser incluída na política de desenvolvimento do País, como parte importante da agenda de todos os ministérios e de todos os níveis de governo, assim como do setor privado e das organizações da sociedade civil.
Os riscos advindos de eventos climáticos mais severos no futuro afetam toda a sociedade. Como sempre, o custo de prevenir é menor do que o de remediar, mesmo porque, em muitos casos, os impactos podem ser tão sérios que não haverá remédio possível.