A diversidade dos grupos revela-se na cor dos grafismos corporais, em roupas, cocares, plumagens, cantos e danças que são, no evento, expressão política de luta pela demarcação da terra e gesto indignado contra o Marco Temporal aprovado pelo Congresso Nacional. Senso de justiça, reparação e garantia de direitos originários é o que parece mover a energia deste acampamento
Por Antônio Reis Júnior*, de Brasília
Primeiro dia – Domingo, 21 de abril de 2024
Brasília estava ensolarada neste início de outono quando aterrissamos na cidade no dia 21 de abril bem cedo. Descobrimos então que a modernista capital federal completava 64 anos de idade. Muito jovem ainda. Além disso, o feriado nacional de Tiradentes deu uma aparência deserta às grandes avenidas e praças do Eixo Monumental, o Eixão, próximo de onde ficamos hospedados. Mas a razão para estarmos aqui era outra: chegamos hoje para a abertura do 20º Acampamento Terra Livre, Nosso Marco é Ancestral, Sempre Estivemos Aqui. uma edição histórica da maior assembleia indígena do País. Na verdade, bem mais que uma assembleia, como iríamos descobrir em seguida.
Desde 2004, em sua primeira edição, quando reuniu pouco mais de uma centena de lideranças e representantes de povos indígenas, a ATL cresceu enormemente e a expectativa para este ano era de 6 mil a 8 mil indígenas acampados no Complexo Cultural Funarte, uma extensa área próxima à Torre de TV de Brasília.
Pela manhã, as delegações que haviam chegado, poucas ainda, dirigiram-se ao Eixão e fizeram uma panfletagem para divulgar a ATL, acompanhada da dança do Toré, um ritual comum entre os povos Pankararu, Xukuru e Fulni-ô, grupos que vieram de Minas Gerais e Pernambuco para o evento.
No início da tarde, dentro do acampamento, vimos, então, a chegada das primeiras dezenas de delegações que iriam completar, até o início da semana, um total de pouco mais de 200 povos indígenas representados. Além de outros, de países vizinhos, como aqueles da Bacia Amazônica na região Norte.
Duas centenas de indígenas falantes de mais de duas centenas de línguas, no meio da capital, ocupando o espaço público, em barracas distribuídas por todo o acampamento, com lonas pretas protegendo-as do sol e da chuva. Banheiros químicos, ampla cozinha comunitária, montada em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, contêiners com banhos, tenda da saúde para atendimento aos participantes, espaço para doação e logística, e a imensa tenda central, como uma grande casa indígena no meio da aldeia, onde estão anunciadas as principais plenárias e debates dessa potente mobilização. – tudo isso era parte da estrutura que víamos ao caminhar pelo acampamento.
A diversidade dos grupos revela-se na cor dos grafismos corporais, nas roupas, nos cocares e plumagens, nos cantos e danças que são, no evento, expressão política de luta pela demarcação da terra e gesto indignado contra o Marco Temporal aprovado pelo Congresso Nacional como Lei nº 14.701 em outubro de 2023. O governo Lula sancionou a lei com 34 vetos, que foram derrubados em dezembro pelo Legislativo. Há também o caminho aberto pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que rejeitou a tese por 9 votos a 2 e declarou sua inconstitucionalidade. A disputa segue, e a mobilização indígena tem papel fundamental.
A lei, aprovada muito rapidamente em retaliação às decisões do STF, em seu artigo 4º, prevê: “são terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas que, na data da promulgação da Constituição de 1988” estavam habitadas e utilizadas. Mas, e os que foram expulsos de suas terras antes da Constituição? E as aldeias e comunidades devastadas antes de 1988 e que agora se refazem com o retorno daqueles que tem direito a terra? E os povos que, historicamente, desde o início e o avanço predatório da colonização, perderam suas terras? E outros que sofreram tantas outras espoliações e violências mais contemporâneas?
Senso de justiça, reparação e garantia de direitos originários é o que parece mover a energia deste acampamento.
Linhas de Sampa
Estou com Ligia Rocha, arquiteta e urbanista, minha companheira, que veio à ATL representando o coletivo Linhas de Sampa e que conta com dezenas de bordadeiras, que bordam pela democracia e por justiça social, em espaços públicos da cidade de São Paulo. Veio para somar. Bordados, como panfletos políticos, combativos, que circulam nos corpos, pendurados nas roupas, que aproximam as pessoas para o bom diálogo, e que também trafegam nos caminhos digitais, ampliando as consciências, tocando os corações e provocando o pensamento. Muitos deles agora estão em corpos indígenas pelas mãos de Ligia e de autoras que enfrentaram a violência do Estado durante a ditadura militar e protagonizaram a redemocratização do País. Estamos no campo dos direitos.
Visitamos algumas delegações interessados no artesanato, nas pulseiras de miçangas, nos lindos colares, cocares, brincos, maracás e tantos outros objetos que eles comercializam durante a ATL, e que geram importante recurso as delegações e famílias participantes.
Na compra, uma conversa descontraída com os falantes do português e outros falantes de línguas indígenas traduzidos por intérpretes, amigos e familiares. Três dias de viagem dos Xukuru do interior de Pernambuco. Três dias do Sul da Bahia a Brasília com ônibus fretados pelos Pataxó. Cinco dias de viagem de um grupo Huni Kuin, maioria de mulheres, do Acre até a capital. Do Xingu, vieram os Waurá, os Kuikuro, os Iawalapiti, os Kamaiurá e tantos outros. De São Paulo, em contexto urbano e das aldeias do Jaraguá, os Guarani, e os Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul e sua associação, a Aty Guasu, que, neste primeiro dia, fez uma grande reza e um benzimento para a proteção do ATL.
Saímos do acampamento no crepúsculo, sob o amplo céu de Brasília, atravessamos a área do entorno da Torre de TV, onde aconteciam as festividades oficiais de aniversário da cidade, rivalizando em sons, falas e música com a ATL, e fomos procurar algo para comer. Nada encontramos. Tudo fechado em Brasília nesta área. E, para quem está na zona hoteleira, lindeira ao Eixo Monumental e suas avenidas de muitas faixas, a sensação é de um lugar inóspito, com tudo numa escala imensa, dos lotes ocupadas pelos antigos hotéis fundados com a cidade, as áreas verdes e os shoppings. Melhor voltar ao hotel e comer por lá.
À noite, recuperados pelo banho, jantar e café, fomos ao acampamento, distante dois quilômetros do hotel. As delegações montavam suas barracas, havia um intercâmbio intenso entre os povos, e cada associação preparava sua programação nas tendas que os abrigavam, sempre dialogando com a programação oficial que ficou sob responsabilidade da executiva da Apib, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Levados pelo vento, ouvíamos os sons dos maracás, das flautas, dos cantos e o tilintar dos chocalhos amarrados nas canelas e que vibravam com o bater dos pés no chão. Os Guarani, mais uma vez, rezaram e benzeram as delegações e todo o acampamento, cantando com seus violões e rabecas, numa melodia que levamos extasiados ao hotel, mas também exauridos após um dia tão intenso.
Amanhã, segunda feira, começará oficialmente o evento, e é preciso acordar bem cedo para não perder as múltiplas manifestações, políticas e culturais, que ocorrerão, muitas vezes, simultaneamente.
*Antônio Reis Júnior é historiador, professor universitário, autor de livros didáticos e colaborador da Página22
Acompanhe o relato do segundo dia.