Novas ondas temporais invadem espaços imprevisíveis. O sertão era o limite entre a casa e o mato, entre o mito e o conhecido. Hoje é definido pelo alcance do celular
O Homem é esse macaco indeciso, que pula da árvore “pretéritomais- que-imperfeito” para a árvore “futuro-mais-que-perfeito”, sem ter certeza do que quer.
Desperdiçamos as oportunidades de dar a volta por cima e aprender com a Amazônia, sua gente e natureza. Se é inalcançável retornar ao tempo histórico, em que a natureza nos impunha respeito, quando se mediam viagens em marés, e anos em cheia e seca, é possível aprender suas lições.
A cada shopping center em Belém, distanciamo-nos do tempo amazônico. Porque neste templo do tempo tudo é controlável e previsível – o frescor, a luz, não há brechas para surpresas. O Homem acredita-se protegido ao controlar o “tempo” com o controle remoto do ar-condicionado. Lá fora, “no tempo”, no espaço expandido e indomável, as marés seguem sua vigília, as temperaturas banho-mariam em seu calor, e as chuvas galgam as valas abertas pelo homem e os bois-dos-homens.
Somos capazes de esquecer hábitos milenares, como a sesta, quando o corpo se entrega à natureza e há imediata recompensa. No “tempo presente-infinito”, trocamos a exigência do corpo por mil afazeres que nos impomos na vida moderna.
Há menos de meio século, a Amazônia se denominava “O Vale”, “O Vale Amazônico”. Amazônia é invenção recente, de quem não tem tempo para pronunciar frases que enunciam circunstâncias. Perdemos ao trocar os nomes das gentes, das coisas e dos tempos em tupi e em diversas línguas de povos originais por marcas internacionais rastreáveis e registráveis (e descartáveis). Não ser encontrável é parte da essência da natureza. Pior, hoje nos contentamos com apelidos, siglas e abreviações, cada vez mais breves.
Ao lado das majestades-cidades, monstroscidades, flutuam aqueles à baila do tempo, que não alcançam acertar os ponteiros para seguir os códigos da sobrevivência na labutacidade. Em Belém, são os ribeirinhos das outras margens, invisíveis, deserdados, sem permissão. O que para alguns são pitorescas paisagens verdes constitui-se no viver de milhares de pessoas. E porque tudo o que produzem vem do “tempo”, da “rua”, nada tem valor – o peixe, o camarão, a farinha, o cesto, a fruta. Mesmo o açaí, recém-descoberto, não lhes cobre a conta.
E as ondas do “tempo” invadem os espaços mais imprevisíveis. A noção de sertão é ditada pela capacidade de alcance do telefone celular e do mapa do Google. Se na deserta praia é possível falar ao celular, o encanto oferecido pela imensidão, a maré de mais de 5 metros e a explosão de luz parecem desaparecer, uma vez que o “tempo” se oferece para o controle.
Antes, o sertão era o limite entre a luz e a sombra, entre a casa e o mato, entre o mito e o conhecido. O mito, a tradição oral, delimitava, de maneira graciosa (e apavorante). À medida que as ondas dos televisores e celulares iluminam as casas, os mitos se acanham. Se antes menino não ia pra beira do lago pra cobra-d’água não o engolir, agora nada parece amedrontá-lo. O tempo da Mãe-d’água, do Mapinguari, do Boto extravia-se para os mais recônditos lugares.
Se Belém agendava seus encontros no tempo “do antes da chuva” e “do depois da chuva”, hoje o “tempo” se rege para antes ou depois do trânsito pesado de veículos. Ao fechar o vidro e acionar o ar-condicionado não dispomos de tempo para a maré, o vento, o sol, a passagem das garças e urubus. Difícil é reconhecer limites, ou melhor, difícil é encontrar a convivência entre homem e natureza, entre casa e rua.
O Brasil tropical (quatro quintos do País estão nos trópicos) não foi feito para servir, deliberadamente, ao tempo. São Paulo, por exemplo, é indecisa, entre os dois lados da linha de Capricórnio. De um lado, a cobra-grande nos exige um pouco mais de imaginação, menos ganância e mais tempo, para não dizer limites: que ali não se deve chegar, que a partir desse ponto se corre perigo. De outro, estamos mais que cientes que o tempo torna a vida insossa, monótona, previsível; é como saber o cardápio de segunda-feira do mês que vem do intolerável restaurante industrial.
Aos viajantes que visitaram a Amazônia, o que mais impressionou foi o descompromisso com o “tempo”, o desinteresse em se prevenir diante do amanhã. Quando arguido como faria amanhã se não houvesse peixe, o caboclo retrucava: se não conseguisse o alimento, certamente seria porque estava “panema”. Pleno de significados é este termo “panema”. Resumidamente, pode-se entender como “sem sorte”. Confiante, o caboclo seguiria adiante, até se ver livre da panema. Seguiria alguns rituais, jejuns, rezas, ditados, banhos de cheiro, até que recobrasse a sua “sorte”, o seu “tempo”. Destarte, bem ou mal, o caboclo aprendeu a viver a “casa” e a “rua”, o “tempo” e a “natureza”.
Antes de pular para o próximo galho da evolução, o homem deveria maquinar se não haveria um “presente-mais-que-presente”, carente de compreensão, tal qual a natureza humana, binômica, homem-natureza, sem aspas…
*Dirige o Instituto Peabiru, em Belém, e é autor de Grandes Expedições à Amazônia Brasileira (Metalivros) e O Livro de Ouro da Amazônia (Ediouro)