Para conservar e restaurar a biodiversidade paulista, falta transformar o conhecimento técnico em um documento legal do Estado, na forma de resolução ou decreto
Por Maria Cecília Wey de Brito, Carlos Joly e Ricardo Rodrigues *
Pode-se dizer que hoje já é de conhecimento público um dos mais significativos resultados do desenvolvimento social e econômico no Estado de São Paulo: uma profunda alteração da paisagem. Essa paisagem está quase totalmente sob algum regime de produção ou ocupação, mas dela ainda despontam, aqui e ali, maiores ou menores áreas com remanescentes de ecossistemas naturais.
Os remanescentes, especialmente os maiores, estão geralmente associados a relevos mais acidentados. É o caso daqueles que ocorrem nas serras do Mar e da Mantiqueira. Ainda assim, algumas áreas declivosas têm suas encostas degradadas historicamente por ocupação agrícola. Onde o relevo é menos acidentado são encontrados muitos pequenos fragmentos de ecossistemas naturais, mais ou menos interligados entre si, sob maior ou menor grau de ameaça. Nos remanescentes, maiores ou menores, estão as amostras da biodiversidade paulista.
A biodiversidade pode ser traduzida como a variedade de espécies de todas as origens e de todas as localizações, assim como a de suas associações — as comunidades, os ecossistemas e sua estrutura genética. O conhecimento acumulado demonstra que o Brasil é um dos países com maior biodiversidade e abriga entre 15% e 20% das espécies do planeta.
O estado de São Paulo, em razão do relevo e da posição geográfica, apresenta rica biodiversidade, mesmo que mantenha apenas 13% da vegetação original, entre os quais cerca de 4% estão protegidos por unidades de conservação. Em São Paulo ocorrem remanescentes de dois dos hotspots mundiais — o Cerrado e a Mata Atlântica, assim considerados por serem muito ricos em biodiversidade e estarem bastante ameaçados.
Com a finalidade de conservar as últimas áreas de ecossistemas naturais e sua biodiversidade, em 1995 o então secretário estadual do Meio Ambiente, Fabio Feldmann, criou o Programa Estadual para a Conservação da Biodiversidade (Probio/SP), voltado a traduzir em normas, resoluções, decretos e leis as informações científicas disponíveis no Estado e promover a articulação da secretaria com a comunidade científica. O objetivo era suprir, por meio da pesquisa, as lacunas de conhecimento existentes e subsidiar as políticas públicas para o tema.
Desse programa resultaram políticas importantes, como o workshop “Bases para Conservação e Uso Sustentável das Áreas de Cerrado do Estado de São Paulo” e a “Lista das Espécies da Fauna Silvestre Ameaçadas de Extinção” (Resolução SMA nº 55/95 e Decreto Estadual nº 42.838/98, respectivamente). Entretanto, o sucesso obtido nessas iniciativas não se repetiu posteriormente na articulação do poder executivo com a comunidade científica.
O maior problema para que os formuladores de políticas públicas utilizem as informações científicas disponíveis sobre a biodiversidade continua a ser o fato de que estas estão sempre dispersas e fragmentadas em centenas de trabalhos e publicações, muitas vezes em fontes de difícil acesso e em formato que praticamente inviabiliza a sua aplicação direta.
Nova concepção
Uma das estratégias para superar tal dificuldade foi a implantação do Programa Biota, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado São Paulo (Fapesp). O Biota tem nove anos de existência e representa uma nova concepção capaz de fazer a ponte entre a imprescindível etapa dos inventários da biodiversidade e um programa de pesquisas em conservação e uso sustentável dessa diversidade biológica.
Nos últimos dois anos, cerca de 160 pesquisadores do Biota/Fapesp, em parceria com a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (que inclui a Fundação Florestal, o Instituto Florestal e o Instituto de Botânica) e as ONGs Conservação Internacional e CRIA (Centro de Referência em Informação Ambiental), discutiram as bases metodológicas e organizaram os workshops “Áreas Continentais Prioritárias para Conservação e Restauração da Biodiversidade do Estado de São Paulo” e “Diretrizes para Conservação e Restauração da Biodiversidade do Estado de São Paulo”.
Esse esforço conjunto resultou na produção de três mapas-síntese e 24 mapas temáticos (mapas de três escalas para oito temas), que indicam os remanescentes de ecossistemas naturais a serem protegidos, restaurados, ou mais bem pesquisados. Tais resultados podem constituir a base do planejamento ambiental do estado. Para o trabalho foram usados, entre outras informações, os dados de distribuição de 3.236 espécies de plantas e animais consideradas estratégicas para as ações de conservação e uso sustentável da biodiversidade remanescente.
É uma demonstração clara e concreta de que o banco de dados do Biota/Fapesp, gerado com fins científicos, pode e deve sustentar a adequação das políticas públicas estaduais para conservação, restauração e uso sustentável da biodiversidade do estado.
Passo importante
Mas, para que os objetivos de conservação e uso sustentável da biodiversidade sejam atingidos, ainda falta um passo importante: a transformação dos resultados construídos com base científica em documento legal do estado, na forma de uma resolução ou de um decreto estadual. Em âmbito federal, a perspectiva de transformar dados científicos em políticas públicas já tem exemplos, em particular no tratamento do tema de áreas prioritárias para a conservação e uso sustentável da biodiversidade.
Desde que o Brasil ratificou a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), em 1994, o governo federal criou e reforçou estruturas institucionais, desenvolveu programas, levantou recursos e aplicou diretrizes e conceitos importantes. Para tanto, criou a Comissão Nacional de Biodiversidade (Conabio), estabeleceu a Política Nacional da Biodiversidade, o Plano de Ação para Implantação da Política Nacional de Biodiversidade (PANBio), editou a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP), entre outras ações.
Guiado por esse arcabouço institucional e legal, o governo brasileiro desenvolveu e aplicou dois exercícios de definição de áreas prioritárias para conservação, uso sustentável e repartição dos benefícios da biodiversidade brasileira. O primeiro, ocorrido entre 1998 e 2000, denominou-se “Avaliação e Identificação das Áreas e Ações Prioritárias para a Conservação dos Biomas Brasileiros”. Esse trabalho foi oficializado legalmente por meio da Portaria nº 126/04, do Ministério do Meio Ambiente (MMA), e do Decreto Federal nº 5.092/04.
Em 2006, os dados resultantes foram atualizados e os princípios do planejamento sistemático para conservação e os critérios de representatividade, persistência e vulnerabilidade do ambiente passaram a integrar a metodologia de análise das manchas de vegetação nativa, por meio da qual se definem as áreas que precisam ser conservadas. O resultado do processo foi oficializado através da Portaria MMA nº 09/07. Tais instrumentos legais guiam as ações do MMA e o subsidiam nas discussões sobre o uso do território com os demais atores sociais.
Exemplos para legalização dos resultados de iniciativas como essa existem. Cabe aos estados que têm consensualidade no trabalho de conservação e restauração da biodiversidade remanescente traduzi-lo em documento legal, garantindo a perpetuação das ações.
Assim, ficará mais claro para a sociedade que os investimentos públicos na área ambiental, sejam aqueles aplicados na gestão pública do território paulista, sejam aqueles aplicados à pesquisa científica, podem e devem caminhar juntos. Com essa diretriz será possível subsidiar um melhor planejamento para a paisagem paulista, em benefício de toda a sociedade.
* Grupo de Coordenação do Biota/Fapesp