Por Amália safatle
Mesmo banalizada ou usada indevidamente, o que a sustentabilidade traz de tão inédito e poderoso é a ideia de futuro
Tem coisas que a gente sabe reconhecer, mas perde um tempão para definir. Justiça, democracia, liberdade. E, em cada um desses balaios, cabe uma porção de ideias e interpretações. Com sustentabilidade, não é diferente. Aquela definição da Comissão Brundtland [1], em 1987, feita para qualificar o desenvolvimento e buscar a continuidade da prosperidade vivida no século XX, resultou nos mais diversos desdobramentos, usos e apropriações. As discussões sobre sustentabilidade saíram do espaço mais especializado e já se encontram diluídas no sabão em pó e no molho de tomate, repetidas pela apresentadora de tevê, embaladas na sacola de pano e disseminadas pelo twitter.
[1] Desenvolvimento sustentável é a capacidade de atender às necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender às suas necessidades.
“Acredito efetivamente que a disseminação da ideia de sustentabilidade veio acompanhada de uma saturação do seu sentido, e com ela uma banalização e também perversão do seu conceito”, afirma o economista mexicano Enrique Leff, coordenador da Rede de Formação Ambiental para a América Latina e Caribe do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
“Além de ocorrer um esvaziamento do sentido, devemos compreender esse processo como efeito de um desvio e ocultamento por parte dos que não estão interessados em acreditar no sentido da sustentabilidade e tentam seguir desconhecendo as leis de limite da natureza”, diz Leff, que também leciona na Universidade Federal do Paraná.
Neste processo de popularização e banalização com o qual a mídia colabora, usa-se a expressão para qualquer coisa – de beleza a candidatos, de automóveis a crescimento. “Apesar de contribuir para a formação de uma opinião pública, é preciso tomar cuidado com esse consumo do simbólico que não leva a plataformas efetivas de ação”, considera Paulo Nassar, professor da Escola de Comunicações e Artes, da USP, e diretor-geral da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje). Na visão de Nassar, o movimento pela sustentabilidade tem-se restringido muito ao consumo da própria mensagem.
Perguntado sobre os riscos de a sustentabilidade ser engolida pelo sistema, em vez de modificá-lo, José Eli da Veiga, professor titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) e orientador do programa de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP, responde: “Se você disser hoje que tem um uso oportunista do termo, eu pergunto: onde você estava nos últimos 30 anos? Qualquer batalha de ideias funciona assim, e acho que essa vitória é nossa”, afirma. Para ele, “a banalização é um fenômeno linguístico que ninguém conseguirá deter. O mais importante é reconhecer que passou a existir um novo valor.”
Um valor, explica Veiga, é aquilo que emerge em contraposição a situações anteriores que são julgadas inaceitáveis pela sociedade. “Assim, a trinca de valores da Revolução Francesa – igualdade, liberdade e fraternidade – emergiu em contraposição a um sistema feudal, monárquico, contra um mundo antigo e que veio a formar as bases do chamado liberalismo, pelo menos no plano político.”
O que esse mais novo valor emergente, chamado sustentabilidade, vem trazer de tão inédito e poderoso? “A ideia de futuro. Nenhum outro valor tinha trazido essa noção. Mesmo ‘justiça social’ não põe no centro da questão a nossa atual responsabilidade do que ocorrerá com nossos tataranetos”, diz Veiga. “Então, seja qual for o uso da expressão – mesmo o emprego ridículo que alguns fazem ao dizer que determinada taxa do PIB é ou não sustentável – você está sempre se referindo a algo que ainda não aconteceu, sobre o que não tem total previsão, mas chamando a atenção de que tem responsabilidade, hoje, sobre esse futuro.”
E, no futuro, cabe coisa demais. Por definição mistério, ele reforça a nossa ignorância em plena “sociedade do conhecimento” [2]. Sustentabilidade, tecida, sobretudo, com linhas do futuro, é saber que pouco ou nada sabemos, e tudo está por tramar, em um tear sem fim (mais sobre o “desconhecimento humano” em Radar).
[2] Definida inicialmente como sociedade da informação, com a emergência da Tecnologia da Informação na década de 70, a expressão hoje é usada para referir-se a uma sociedade que se desenvolve a partir da produção, do processamento e da disseminação do conhecimento.
Por isso Veiga refere-se à sustentabilidade como uma espécie de zona cinzenta, imprecisa, assim como a democracia. “Pode-se encontrar algo democrático em países como Cuba e China e algo não democrático em países como a Suécia”, exemplifica.
O desenvolvimento da ciência ajudou a humanidade a dar-se conta de sua fragilidade, de que é apenas parte de uma teia tênue, a bordo de uma nave em viagem incerta pelo universo. Veiga explica que a noção de desenvolvimento sustentável emergiu no final do século XX, porque foi o período em que humanidade deu-se conta da vulnerabilidade de suas bases naturais. Para que consciência pudesse emergir, precisou de muito avanço da ciência – campo em que, quanto mais respostas se obtêm, mais perguntas elas geram.
Buscar refinamento na definição de algo já em uso é tarefa infrutífera, na opinião do sociólogo e cientista político Sérgio Abranches. “Até porque sustentabilidade deve ser formada por metas móveis”, diz ele.
Assim, melhor que estabelecer um estado ideal e final a ser alcançado é adotar uma abordagem segundo a qual as realidades são dinâmicas e as metas estão sob constante mudança e reavaliação, influenciadas também pelo desenvolvimento de novas tecnologias. Conquistada uma etapa, passa-se para outra, mais complexa, em um constante processo de aperfeiçoamento, sempre movido pela insatisfação.
Assim, dizer que algo é sustentável não passa de uma força de expressão, como mostram as reportagens sobre temas muito próximos do cotidiano do leitor que Página22 escolheu para exemplificar essa discussão: moda, moradia e turismo.
A rigor, não existe produto ou serviço que possa ser taxado de sustentável em uma sociedade que está apenas no começo desse processo, que não tem respostas prontas e pede uma construção conjunta de soluções para lidar com uma encrenca de proporção planetária. Com o atual aparato tecnológico que a humanidade domina, será impossível manter o tipo de desenvolvimento tal qual ele se apresenta hoje, caracterizado pela busca de crescimento indefinido do consumo e busca ou conservação de um status quo de países ricos.
O relatório O Estado do Mundo – 2010, do Worldwatch Institute, mostra que os números simplesmente não fecham. No atual ritmo de exploração de recursos naturais, nem mesmo a repetição de um padrão de consumo médio, equivalente ao de países como Tailândia ou Jordânia, seria suficiente para atender de maneira equânime os 6,8 bilhões de habitantes da Terra (mais abaixo).
Considerando-se a projeção de crescimento populacional e a emergência econômica de diversos países, a situação se complica significativamente, fazendo do futuro uma das mais incômodas questões do presente. Mesmo porque a ideia de limites [3] apresentada na década de 70, na época ainda muito teórica, já se tornou bem concreta, segundo Abranches. “Hoje já tem uma diminuição de direitos” diz ele, citando como exemplo o cerco a países emergentes para assumirem compromissos de redução de emissões de gases-estufa, cobrança que não existia até pouco tempo atrás.
[3] Em 1972, Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jørgen Randers e William W. Behrens III expuseram no livro The Limits to Growth as consequências de um rápido crescimento populacional combinado com a oferta de recursos finitos.
Se hoje os impactos ambientais e sociais ainda não são visíveis nos resultados das empresas, Clarissa Lins, diretoraexecutiva da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), acredita que passarão a ser em um futuro próximo [4]. “A exemplo da Noruega, onde o governo começou a taxar a emissão de carbono e isso lá passou a ter um preço, aqui também teremos um custo de carbono, um custo social, em linhas do balanço”, diz Clarissa. Especialmente depois do acidente da BP – que era o benchmark da indústria petrolífera e perdeu 50% do seu valor de mercado. É ao que o consultor Aerton Paiva se refere em Entrevista, desta edição , quando fala em “economicizar” a sustentabilidade empresarial.
[4] Clarissa Lins e David Zylbersztajn são os organizadores do livro Sustentabilidade e Geração de Valor, recém-lancado pela Editora Campus Elsevier.
Com isso, a nova etapa é do “como fazer”. “O caminho agora é a operacionalização”, diz Abranches. E aí não basta só fazer: as ações alinhadas com a sustentabilidade precisam ser reportadas, mensuradas e verificadas, dentro da visão de responsabilidade integral, desde a cadeia de fornecedores até o descarte final do produto.
“Esse sentimento de que sustentabilidade é meio disforme e cada um projeta lá dentro um pouco dos seus sonhos não é ruim. O problema é que, se continua com a ideia difusa, talvez não consiga ter uma visão conjunta para planejar o futuro”, pondera Nelmara Arbex, vice-presidente da Global Reporting Initiative (GRI) e autora do site Sustentabilidade com Pimenta. “Por exemplo: qual é a visão de uma cidade sustentável? Se não tiver essa visão, como se vai construir a cidade? Como se vão gerenciar as águas na cidade? E quem decide sobre isso? Por isso é preciso especificar, ter planejamento, metas, governança, transparência.”
Nesse sentido, Clarissa, da FBDS, acredita que, quanto mais instrumentos estiverem à disposição, melhor: tanto ferramentas de gestão, índices e indicadores como o estabelecimento de metas.
A demanda pelo “como fazer” já está na praça. Em encontros promovidos entre stakeholders relacionados ao Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), por exemplo, as empresas manifestam interesse em aprender umas com as outras.
Roberta Simonetti, coordenadora do programa de Sustentabilidade Empresarial do Gvces (responsável pela metodologia do questionário aplicado pelo ISE), conta que as empresas gostariam que fosse criada uma espécie de “banco de práticas”, para compartilhar experiências sobre um tema que ainda é muito novo.
Na avaliação de Nelmara, os gestores não foram preparados nas escolas de negócios nem mesmo para buscar a redução de impactos negativos da empresa na sociedade. Quem dirá criar um novo modelo realmente sustentável, com impacto zero ou totalmente positivo?
Ela cita o CEO da Nike, Mark Parker, que declarou em 2009 que está na hora de as empresas começarem a testar os protótipos do que serão os negócios sustentáveis no futuro. A própria Nike montou uma fábrica baseada no cradle to cradle (do berço ao berço), em que o produto descartado volta à linha de produção, fechando o ciclo entre descarte final e matéria-prima. A Interface é outro case. Quantos mais? Contam-se nos dedos.
Então, para Nelmara, as questões no pipeline são: “Do que vai ser feito o negócio do futuro? Qual o business plan (plano de negócios) do futuro? Como se sabe se o business plan é bom do ponto de vista da sustentabilidade?
À essa discussão, Nassar, da Aberje, acrescenta que, embora as empresas apresentem em sua “missão-visão-valores” um ideário já homogeneizado de ética e pluralismo, ele ainda não as viu incluir a alteridade. “Ou seja, mostrar nesse ideário quem são os outros, quem é o contraditório, quais são os interesses dos outros.”
E, nessa reflexão, talvez chegar à conclusão que não existam tantos stakeholders, na medida em que assumimos simultaneamente múltiplos papéis e integramos um mesmo ambiente, o que dá mais sentido a estratégias de cooperação do que a competição ensinada desde cedo nas escolas e estimulada no meio empresarial.
Vamos por partes
Na visão de Clóvis Borges, diretor-executivo da ONG Sociedade de Pesquisa em Vida Silvestre e Educação Ambiental (SPVS), as empresas estão tentando se enquadrar e entendendo que é preciso ir além da simples legalidade, mas ainda sem discutir questões cruciais como consumo e crescimento, que falam diretamente de sua essência.
Borges é um dos defensores de que se “decomponha” sustentabilidade em partes, em busca de maior objetividade, foco e estratégias específicas. Ele acredita que um bom exercício para o setor privado balizar suas ações na área ambiental, por exemplo, seria o de analisar a empresa de acordo com nove sistemas [5] que a revista Nature, na edição de setembro de 2009, levantou como vitais. Ultrapassá-los é romper o limite “operacional” considerado seguro para a humanidade na Terra.
[5] São eles: uso de água, ciclagem de nitrogênio e fósforo, perda de biodiversidade, mudança no uso do solo, emissão de aerossóis na atmosfera, mudança climática, acidificação de oceanos, poluição química e depleção do ozônio estratosférico. Os limites já foram ultrapassados na ciclagem de nitrogênio e na perda de biodiversidade.
“Isso coloca a conversa de uma forma muito mais enquadrada”, diz Borges, ao passo que falar em sustentabilidade de forma genérica permite divagações, sem muito compromisso com o rigor técnico. “Você confiaria a um pedreiro a construção de uma ponte?” Para Borges, é isso que tem acontecido dentro das empresas em relação a ações voltadas para a sustentabilidade.
Ele defende que elas sejam balizadas pelo saber científico, tanto no setor público como no privado, até mesmo para não serem objeto de exploração política no primeiro caso ou de marketing no segundo.
Exemplo: segundo Borges, o governo do Paraná, nos últimos oito anos, privilegiou a restauração de áreas degradadas e abandonou a conservação de remanescentes de floresta de araucária. “Esta foi uma decisão política.” A ciência possivelmente indicaria que, para a conservação da biodiversidade, a segunda opção seria melhor. E talvez também saísse mais barato. Mas plantar árvores dá ao governo mais visibilidade e popularidade.
A ciência traz ferramentas valiosas de comprovação, que ajudam a dar mais consistência àquilo que se vem chamar de sustentável. Segundo o biólogo Fernando Fernandez, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “na maioria dos muitos projetos hoje existentes de utilização dita ‘sustentável’ de recursos, o que se vê é que a sustentabilidade é apenas assumida, sem nem mesmo ser testada, quanto menos demonstrada”, conforme escreve na série Reflexões nº 15, publicada pelo Instituto Ethos.
O caso mais clássico de uso inapropriado da expressão sustentável ao qual Fernandez se refere foi “desmascarado” por um estudo do agrônomo Carlos Peres e seus colegas, publicado em uma edição da revista Science de 2003.
Eles demonstraram que a exploração da castanha-do-pará, repetida como exemplo de uso sustentável dos recursos naturais no governo Lula, não é sustentável a longo prazo. Grosso modo, porque o ritmo de coleta das castanhas não tem permitido o brotamento de novas árvores. Por algumas décadas, a coleta pode até se sustentar, porque as castanheiras são longevas e frutificam por muito tempo. Mas, depois disso, a floresta não terá árvores jovens para repor a oferta.
A conclusão de Fernandez – que coordena na UFRJ um levantamento bibliográfico de trabalhos voltados para comprovar o grau de sustentabilidade da exploração de recursos madeireiros, não madeireiros e caça em reservas florestais e Terras Indígenas – é de que não há testes feitos a priori. E, dos feitos a posteriori, boa parte não chega a levar em conta um aspecto elementar, que é a avaliação demográfica, com uma projeção populacional.
“A ciência oferece uma porção de metodologias para comprovação”, diz Fernandez. No entanto, sem o uso delas, a seu ver, a sustentabilidade não passa de uma autodeclaração, muitas vezes feita de forma leviana.
Mas, se o futuro traz tantas incógnitas à equação, é de se perguntar se até mesmo a ciência dará conta de mapear todos os prognósticos, considerando variáveis tão voláteis como o desenvolvimento tecnológico, as demandas populacionais e as próprias reações dos sistemas naturais aos impactos sofridos, até então imprevisíveis.
De qualquer forma, a ciência, ao trazer no rastro de cada resposta uma porção de novas perguntas, é mais uma a alimentar o moto-contínuo desse processo que não tem fim nem nunca terá. Assim esperamos.
Leia aqui entrevista com Enrique Leff sobre desenvolvimento sustentável.
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Consumindo o mundo
Se for para eleger o grande nó da sustentabilidade, este é o consumo, o coração que faz pulsar o sistema econômico capitalista, baseado, sobretudo, na lógica do crescimento. O relatório O Estado do Mundo, publicado anualmente pelo Worldwatch Institute, traz em 2010 o tema “Transformando Culturas – do Consumismo à Sustentabilidade”, no qual aborda as mudanças no consumo, sob a ótica da economia, dos negócios, da educação, da mídia e dos movimentos sociais, desta vez em parceria com o Instituto Akatu.
Os dados são preocupantemente superlativos. Sessenta e oito milhões de veículos, 85 milhões de refrigeradores, 297 milhões de computadores e 1,2 bilhão de telefones celulares: esses são alguns números do que foi vendido em bens de consumo no mundo somente em 2008, além de itens básicos como comida, moradia e transporte. As pessoas no mundo todo consumiram US$ 30,5 trilhões em bens e serviços, 28% a mais do que há dez anos. Entre 1950 e 2005, a produção de metais cresceu seis vezes, o consumo de petróleo subiu 8 vezes e o de gás natural, 14 vezes.
“Além de excessivo, o consumo é desigual”, segundo comunicado do Akatu à imprensa. Em 2006, os 65 países com maior renda foram responsáveis por 78% dos gastos mundiais em bens e serviços, mas somam apenas 16% da população mundial. Os americanos, com 5% da população, ficaram com uma fatia de 32% do consumo global. Se todos vivessem como eles, o planeta só comportaria uma população de 1,4 bilhão de pessoas.
Hoje um europeu consome em média 43 quilos em recursos por dia, enquanto um americano consome 88 quilos – mais do que o próprio peso, considerando-se a maior parte de sua população.[:en]Mesmo banalizada ou usada indevidamente, o que a sustentabilidade traz de tão inédito e poderoso é a ideia de futuro
Tem coisas que a gente sabe reconhecer, mas perde um tempão para definir. Justiça, democracia, liberdade. E, em cada um desses balaios, cabe uma porção de ideias e interpretações. Com sustentabilidade, não é diferente. Aquela definição da Comissão Brundtland [1], em 1987, feita para qualificar o desenvolvimento e buscar a continuidade da prosperidade vivida no século XX, resultou nos mais diversos desdobramentos, usos e apropriações. As discussões sobre sustentabilidade saíram do espaço mais especializado e já se encontram diluídas no sabão em pó e no molho de tomate, repetidas pela apresentadora de tevê, embaladas na sacola de pano e disseminadas pelo twitter.
[1] Desenvolvimento sustentável é a capacidade de atender às necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender às suas necessidades.
“Acredito efetivamente que a disseminação da ideia de sustentabilidade veio acompanhada de uma saturação do seu sentido, e com ela uma banalização e também perversão do seu conceito”, afirma o economista mexicano Enrique Leff, coordenador da Rede de Formação Ambiental para a América Latina e Caribe do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
“Além de ocorrer um esvaziamento do sentido, devemos compreender esse processo como efeito de um desvio e ocultamento por parte dos que não estão interessados em acreditar no sentido da sustentabilidade e tentam seguir desconhecendo as leis de limite da natureza”, diz Leff, que também leciona na Universidade Federal do Paraná.
Neste processo de popularização e banalização com o qual a mídia colabora, usa-se a expressão para qualquer coisa – de beleza a candidatos, de automóveis a crescimento. “Apesar de contribuir para a formação de uma opinião pública, é preciso tomar cuidado com esse consumo do simbólico que não leva a plataformas efetivas de ação”, considera Paulo Nassar, professor da Escola de Comunicações e Artes, da USP, e diretor-geral da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje). Na visão de Nassar, o movimento pela sustentabilidade tem-se restringido muito ao consumo da própria mensagem.
Perguntado sobre os riscos de a sustentabilidade ser engolida pelo sistema, em vez de modificá-lo, José Eli da Veiga, professor titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) e orientador do programa de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP, responde: “Se você disser hoje que tem um uso oportunista do termo, eu pergunto: onde você estava nos últimos 30 anos? Qualquer batalha de ideias funciona assim, e acho que essa vitória é nossa”, afirma. Para ele, “a banalização é um fenômeno linguístico que ninguém conseguirá deter. O mais importante é reconhecer que passou a existir um novo valor.”
Um valor, explica Veiga, é aquilo que emerge em contraposição a situações anteriores que são julgadas inaceitáveis pela sociedade. “Assim, a trinca de valores da Revolução Francesa – igualdade, liberdade e fraternidade – emergiu em contraposição a um sistema feudal, monárquico, contra um mundo antigo e que veio a formar as bases do chamado liberalismo, pelo menos no plano político.”
O que esse mais novo valor emergente, chamado sustentabilidade, vem trazer de tão inédito e poderoso? “A ideia de futuro. Nenhum outro valor tinha trazido essa noção. Mesmo ‘justiça social’ não põe no centro da questão a nossa atual responsabilidade do que ocorrerá com nossos tataranetos”, diz Veiga. “Então, seja qual for o uso da expressão – mesmo o emprego ridículo que alguns fazem ao dizer que determinada taxa do PIB é ou não sustentável – você está sempre se referindo a algo que ainda não aconteceu, sobre o que não tem total previsão, mas chamando a atenção de que tem responsabilidade, hoje, sobre esse futuro.”
E, no futuro, cabe coisa demais. Por definição mistério, ele reforça a nossa ignorância em plena “sociedade do conhecimento” [2]. Sustentabilidade, tecida, sobretudo, com linhas do futuro, é saber que pouco ou nada sabemos, e tudo está por tramar, em um tear sem fim (mais sobre o “desconhecimento humano” em Radar).
[2] Definida inicialmente como sociedade da informação, com a emergência da Tecnologia da Informação na década de 70, a expressão hoje é usada para referir-se a uma sociedade que se desenvolve a partir da produção, do processamento e da disseminação do conhecimento.
Por isso Veiga refere-se à sustentabilidade como uma espécie de zona cinzenta, imprecisa, assim como a democracia. “Pode-se encontrar algo democrático em países como Cuba e China e algo não democrático em países como a Suécia”, exemplifica.
O desenvolvimento da ciência ajudou a humanidade a dar-se conta de sua fragilidade, de que é apenas parte de uma teia tênue, a bordo de uma nave em viagem incerta pelo universo. Veiga explica que a noção de desenvolvimento sustentável emergiu no final do século XX, porque foi o período em que humanidade deu-se conta da vulnerabilidade de suas bases naturais. Para que consciência pudesse emergir, precisou de muito avanço da ciência – campo em que, quanto mais respostas se obtêm, mais perguntas elas geram.
Buscar refinamento na definição de algo já em uso é tarefa infrutífera, na opinião do sociólogo e cientista político Sérgio Abranches. “Até porque sustentabilidade deve ser formada por metas móveis”, diz ele.
Assim, melhor que estabelecer um estado ideal e final a ser alcançado é adotar uma abordagem segundo a qual as realidades são dinâmicas e as metas estão sob constante mudança e reavaliação, influenciadas também pelo desenvolvimento de novas tecnologias. Conquistada uma etapa, passa-se para outra, mais complexa, em um constante processo de aperfeiçoamento, sempre movido pela insatisfação.
Assim, dizer que algo é sustentável não passa de uma força de expressão, como mostram as reportagens sobre temas muito próximos do cotidiano do leitor que Página22 escolheu para exemplificar essa discussão: moda, moradia e turismo.
A rigor, não existe produto ou serviço que possa ser taxado de sustentável em uma sociedade que está apenas no começo desse processo, que não tem respostas prontas e pede uma construção conjunta de soluções para lidar com uma encrenca de proporção planetária. Com o atual aparato tecnológico que a humanidade domina, será impossível manter o tipo de desenvolvimento tal qual ele se apresenta hoje, caracterizado pela busca de crescimento indefinido do consumo e busca ou conservação de um status quo de países ricos.
O relatório O Estado do Mundo – 2010, do Worldwatch Institute, mostra que os números simplesmente não fecham. No atual ritmo de exploração de recursos naturais, nem mesmo a repetição de um padrão de consumo médio, equivalente ao de países como Tailândia ou Jordânia, seria suficiente para atender de maneira equânime os 6,8 bilhões de habitantes da Terra (mais abaixo).
Considerando-se a projeção de crescimento populacional e a emergência econômica de diversos países, a situação se complica significativamente, fazendo do futuro uma das mais incômodas questões do presente. Mesmo porque a ideia de limites [3] apresentada na década de 70, na época ainda muito teórica, já se tornou bem concreta, segundo Abranches. “Hoje já tem uma diminuição de direitos” diz ele, citando como exemplo o cerco a países emergentes para assumirem compromissos de redução de emissões de gases-estufa, cobrança que não existia até pouco tempo atrás.
[3] Em 1972, Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jørgen Randers e William W. Behrens III expuseram no livro The Limits to Growth as consequências de um rápido crescimento populacional combinado com a oferta de recursos finitos.
Se hoje os impactos ambientais e sociais ainda não são visíveis nos resultados das empresas, Clarissa Lins, diretoraexecutiva da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), acredita que passarão a ser em um futuro próximo [4]. “A exemplo da Noruega, onde o governo começou a taxar a emissão de carbono e isso lá passou a ter um preço, aqui também teremos um custo de carbono, um custo social, em linhas do balanço”, diz Clarissa. Especialmente depois do acidente da BP – que era o benchmark da indústria petrolífera e perdeu 50% do seu valor de mercado. É ao que o consultor Aerton Paiva se refere em Entrevista, desta edição , quando fala em “economicizar” a sustentabilidade empresarial.
[4] Clarissa Lins e David Zylbersztajn são os organizadores do livro Sustentabilidade e Geração de Valor, recém-lancado pela Editora Campus Elsevier.
Com isso, a nova etapa é do “como fazer”. “O caminho agora é a operacionalização”, diz Abranches. E aí não basta só fazer: as ações alinhadas com a sustentabilidade precisam ser reportadas, mensuradas e verificadas, dentro da visão de responsabilidade integral, desde a cadeia de fornecedores até o descarte final do produto.
“Esse sentimento de que sustentabilidade é meio disforme e cada um projeta lá dentro um pouco dos seus sonhos não é ruim. O problema é que, se continua com a ideia difusa, talvez não consiga ter uma visão conjunta para planejar o futuro”, pondera Nelmara Arbex, vice-presidente da Global Reporting Initiative (GRI) e autora do site Sustentabilidade com Pimenta. “Por exemplo: qual é a visão de uma cidade sustentável? Se não tiver essa visão, como se vai construir a cidade? Como se vão gerenciar as águas na cidade? E quem decide sobre isso? Por isso é preciso especificar, ter planejamento, metas, governança, transparência.”
Nesse sentido, Clarissa, da FBDS, acredita que, quanto mais instrumentos estiverem à disposição, melhor: tanto ferramentas de gestão, índices e indicadores como o estabelecimento de metas.
A demanda pelo “como fazer” já está na praça. Em encontros promovidos entre stakeholders relacionados ao Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), por exemplo, as empresas manifestam interesse em aprender umas com as outras.
Roberta Simonetti, coordenadora do programa de Sustentabilidade Empresarial do Gvces (responsável pela metodologia do questionário aplicado pelo ISE), conta que as empresas gostariam que fosse criada uma espécie de “banco de práticas”, para compartilhar experiências sobre um tema que ainda é muito novo.
Na avaliação de Nelmara, os gestores não foram preparados nas escolas de negócios nem mesmo para buscar a redução de impactos negativos da empresa na sociedade. Quem dirá criar um novo modelo realmente sustentável, com impacto zero ou totalmente positivo?
Ela cita o CEO da Nike, Mark Parker, que declarou em 2009 que está na hora de as empresas começarem a testar os protótipos do que serão os negócios sustentáveis no futuro. A própria Nike montou uma fábrica baseada no cradle to cradle (do berço ao berço), em que o produto descartado volta à linha de produção, fechando o ciclo entre descarte final e matéria-prima. A Interface é outro case. Quantos mais? Contam-se nos dedos.
Então, para Nelmara, as questões no pipeline são: “Do que vai ser feito o negócio do futuro? Qual o business plan (plano de negócios) do futuro? Como se sabe se o business plan é bom do ponto de vista da sustentabilidade?
À essa discussão, Nassar, da Aberje, acrescenta que, embora as empresas apresentem em sua “missão-visão-valores” um ideário já homogeneizado de ética e pluralismo, ele ainda não as viu incluir a alteridade. “Ou seja, mostrar nesse ideário quem são os outros, quem é o contraditório, quais são os interesses dos outros.”
E, nessa reflexão, talvez chegar à conclusão que não existam tantos stakeholders, na medida em que assumimos simultaneamente múltiplos papéis e integramos um mesmo ambiente, o que dá mais sentido a estratégias de cooperação do que a competição ensinada desde cedo nas escolas e estimulada no meio empresarial.
Vamos por partes
Na visão de Clóvis Borges, diretor-executivo da ONG Sociedade de Pesquisa em Vida Silvestre e Educação Ambiental (SPVS), as empresas estão tentando se enquadrar e entendendo que é preciso ir além da simples legalidade, mas ainda sem discutir questões cruciais como consumo e crescimento, que falam diretamente de sua essência.
Borges é um dos defensores de que se “decomponha” sustentabilidade em partes, em busca de maior objetividade, foco e estratégias específicas. Ele acredita que um bom exercício para o setor privado balizar suas ações na área ambiental, por exemplo, seria o de analisar a empresa de acordo com nove sistemas [5] que a revista Nature, na edição de setembro de 2009, levantou como vitais. Ultrapassá-los é romper o limite “operacional” considerado seguro para a humanidade na Terra.
[5] São eles: uso de água, ciclagem de nitrogênio e fósforo, perda de biodiversidade, mudança no uso do solo, emissão de aerossóis na atmosfera, mudança climática, acidificação de oceanos, poluição química e depleção do ozônio estratosférico. Os limites já foram ultrapassados na ciclagem de nitrogênio e na perda de biodiversidade.
“Isso coloca a conversa de uma forma muito mais enquadrada”, diz Borges, ao passo que falar em sustentabilidade de forma genérica permite divagações, sem muito compromisso com o rigor técnico. “Você confiaria a um pedreiro a construção de uma ponte?” Para Borges, é isso que tem acontecido dentro das empresas em relação a ações voltadas para a sustentabilidade.
Ele defende que elas sejam balizadas pelo saber científico, tanto no setor público como no privado, até mesmo para não serem objeto de exploração política no primeiro caso ou de marketing no segundo.
Exemplo: segundo Borges, o governo do Paraná, nos últimos oito anos, privilegiou a restauração de áreas degradadas e abandonou a conservação de remanescentes de floresta de araucária. “Esta foi uma decisão política.” A ciência possivelmente indicaria que, para a conservação da biodiversidade, a segunda opção seria melhor. E talvez também saísse mais barato. Mas plantar árvores dá ao governo mais visibilidade e popularidade.
A ciência traz ferramentas valiosas de comprovação, que ajudam a dar mais consistência àquilo que se vem chamar de sustentável. Segundo o biólogo Fernando Fernandez, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “na maioria dos muitos projetos hoje existentes de utilização dita ‘sustentável’ de recursos, o que se vê é que a sustentabilidade é apenas assumida, sem nem mesmo ser testada, quanto menos demonstrada”, conforme escreve na série Reflexões nº 15, publicada pelo Instituto Ethos.
O caso mais clássico de uso inapropriado da expressão sustentável ao qual Fernandez se refere foi “desmascarado” por um estudo do agrônomo Carlos Peres e seus colegas, publicado em uma edição da revista Science de 2003.
Eles demonstraram que a exploração da castanha-do-pará, repetida como exemplo de uso sustentável dos recursos naturais no governo Lula, não é sustentável a longo prazo. Grosso modo, porque o ritmo de coleta das castanhas não tem permitido o brotamento de novas árvores. Por algumas décadas, a coleta pode até se sustentar, porque as castanheiras são longevas e frutificam por muito tempo. Mas, depois disso, a floresta não terá árvores jovens para repor a oferta.
A conclusão de Fernandez – que coordena na UFRJ um levantamento bibliográfico de trabalhos voltados para comprovar o grau de sustentabilidade da exploração de recursos madeireiros, não madeireiros e caça em reservas florestais e Terras Indígenas – é de que não há testes feitos a priori. E, dos feitos a posteriori, boa parte não chega a levar em conta um aspecto elementar, que é a avaliação demográfica, com uma projeção populacional.
“A ciência oferece uma porção de metodologias para comprovação”, diz Fernandez. No entanto, sem o uso delas, a seu ver, a sustentabilidade não passa de uma autodeclaração, muitas vezes feita de forma leviana.
Mas, se o futuro traz tantas incógnitas à equação, é de se perguntar se até mesmo a ciência dará conta de mapear todos os prognósticos, considerando variáveis tão voláteis como o desenvolvimento tecnológico, as demandas populacionais e as próprias reações dos sistemas naturais aos impactos sofridos, até então imprevisíveis.
De qualquer forma, a ciência, ao trazer no rastro de cada resposta uma porção de novas perguntas, é mais uma a alimentar o moto-contínuo desse processo que não tem fim nem nunca terá. Assim esperamos.
Leia aqui entrevista com Enrique Leff sobre desenvolvimento sustentável.
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Consumindo o mundo
Se for para eleger o grande nó da sustentabilidade, este é o consumo, o coração que faz pulsar o sistema econômico capitalista, baseado, sobretudo, na lógica do crescimento. O relatório O Estado do Mundo, publicado anualmente pelo Worldwatch Institute, traz em 2010 o tema “Transformando Culturas – do Consumismo à Sustentabilidade”, no qual aborda as mudanças no consumo, sob a ótica da economia, dos negócios, da educação, da mídia e dos movimentos sociais, desta vez em parceria com o Instituto Akatu.
Os dados são preocupantemente superlativos. Sessenta e oito milhões de veículos, 85 milhões de refrigeradores, 297 milhões de computadores e 1,2 bilhão de telefones celulares: esses são alguns números do que foi vendido em bens de consumo no mundo somente em 2008, além de itens básicos como comida, moradia e transporte. As pessoas no mundo todo consumiram US$ 30,5 trilhões em bens e serviços, 28% a mais do que há dez anos. Entre 1950 e 2005, a produção de metais cresceu seis vezes, o consumo de petróleo subiu 8 vezes e o de gás natural, 14 vezes.
“Além de excessivo, o consumo é desigual”, segundo comunicado do Akatu à imprensa. Em 2006, os 65 países com maior renda foram responsáveis por 78% dos gastos mundiais em bens e serviços, mas somam apenas 16% da população mundial. Os americanos, com 5% da população, ficaram com uma fatia de 32% do consumo global. Se todos vivessem como eles, o planeta só comportaria uma população de 1,4 bilhão de pessoas.
Hoje um europeu consome em média 43 quilos em recursos por dia, enquanto um americano consome 88 quilos – mais do que o próprio peso, considerando-se a maior parte de sua população.