Um estudo na região de Una, no Sul da Bahia, sugere que as paisagens alteradas pelo homem na Mata Atlântica têm valor para a biodiversidade, desde que se mantenham heterogêneas e preservem parte das florestas nativas.
Por Projeto RestaUna
Os cerca de 7% da Mata Atlântica que restaram após séculos de atividade humana estão longe de compor uma floresta contínua. À exceção das Unidades de Conservação, a grande Floresta Atlântica foi reduzida a pequenos fragmentos, formados principalmente de mata secundária, resultado de regeneração após alterações feitas pela mão humana, e imersos em uma matriz composta de cidades, vilas, áreas de pasto e de produção agrícola. Por isso, o terceiro maior bioma do Brasil é hoje um laboratório a céu aberto para estudos sobre o manejo e a conservação de paisagens tropicais alteradas pelo homem.
Os resultados de um estudo realizado em Una, no Sul da Bahia – região única para a Mata Atlântica, pois abriga fragmentos de floresta primária (49%) em um mosaico de áreas abertas (27%), matas secundá rias (15%) e cabrucas (6%), plantações de cacau sombreadas pela copa das árvores da floresta –, indicam que paisagens heterogêneas como essa têm valor para a conservação da biodiversidade, desde que manejadas para preservar parte dos habitats nativos e evitar a conversão de grandes extensões de terra.
No Brasil, talobjetivo pode ser parcialmente alcançado com o cumprimento do Código Florestal, que determina que as propriedades mantenham de 20% a 80%, dependendo do bioma, cobertos por habitats nativos.
Arquipélago de remanescentes
A perda de habitat e a fragmentação são ameaças causadas pelo homem, intimamente relacionadas, que alteram os padrões de distribuição e abundância de espécies animais e vegetais. Boa proporção da biodiversidade terrestre encontra-se atualmente em paisagens fragmentadas e os ecólogos, por meio de crescente produção científica, tentam desenrolar o novelo dos efeitos que esses fenômenos podem ter para as comunidades biológicas.
Marco nessa linha de pesquisa foi a publicação, em 1967, da teoria da biogeografia de ilhas. Nela, os ecólogos Robert MacArthur e Edward O. Wilson tentam estabelecer e explicar os fatores que afetam o número de espécies encontradas em uma ilha. A teoria teve impacto tão grande que passou a ser usada não só para ilhas oceânicas, mas para qualquer habitat circundado de áreas não apropriadas para as espécies nativas, como fragmentos de florestas cercados por ambientes antropogênicos, ou seja, criados pelo homem.
A estrutura conceitual dos estudos de fragmentação, derivada da teoria de biogeografia de ilhas, foiconstruída com base na premissa de que apenas dois componentes de uma paisagem determinam a persistência das espécies: os remanescentes de floresta, ou habitat nativo, e as áreas sem floresta, ou não-habitat. Subestimou-se o papel da estrutura e da composição da paisagem, ou seja, a quantidade e a disposição espacial dos remanescentes de habitat e a qualidade da matriz de ambientes alterados em que estão inseridos.
Hoje é possível afirmar que certos ambientes antropogênicos – principalmente os que se assemelham às florestas originais, como as plantações de cacau sombreadas por árvores nativas – são importantes não só porque permitem o movimento de parte das espécies na paisagem, mas também porque podem representar habitat apropriado e fonte de recursos para a biodiversidade.
À luz desse recente avanço na pesquisa, espera-se que paisagens fragmentadas abriguem uma parcela significativa da fauna e flora nativas, desde que se mantenha um percentual razoável de floresta e se realize o manejo sensato das áreas antropogênicas.
O estudo de Una, batizado de RestaUna, representou uma das poucas tentativas de testar essa hipótese em paisagens tropicais.
Um grupo de jovens pesquisadores investigou o valor de cabrucas e matas secundárias para a biodiversidade, comparado ao de remanescentes de floresta primária. Avaliou, também, os efeitos da redução da área e da proximidade da borda nos remanescentes – o chamado efeito de borda, ou a influência dos habitats alterados que cercam cada fragmento.
Quanto resta?
Foram amostrados samambaias, árvores, borboletas frugívoras (que se alimentam de frutos), sapos e lagartos da serapilheira (que vivem na camada de folhas e ramos no solo da floresta), morcegos, pequenos mamíferos e aves. Para cada grupo foram avaliados dois conjuntos de espécies: as especialistas, que apresentam forte associação com as florestas nativas e, portanto, maior chance de extinção; e as generalistas, que podem ocorrer também em outros ambientes.
A amostragem foi realizada em seis categorias de ambientes: mata secundária, cabruca, interiores e bordas de grandes (maiores do que 1.000 hectares) e de pequenos (menores do que 100 hectares) fragmentos de floresta primária.
Foram identificadas 431 espécies – 60 de samambaias, 86 de borboletas, 15 de sapos, 13 de lagartos, 39 de morcegos, 19 de pequenos mamíferos e 199 de aves. Do total, 151 foram classificadas como especialistas e 280 como generalistas. Registraram-se ainda 498 espécies de árvores no interior de fragmentos grandes e pequenos.
Como era de esperar, o número de especialistas foi maior e o de generalistas, menor, na floresta primária em relação a cabrucas e matas secundárias. Entretanto, uma parcela significativa das especialistas esteve presente nos ambientes antropogênicos (de 26% a 92% nas cabrucas e de zero a 83% nas matas secundárias, a depender do grupo de organismos considerado).
Aparentemente, o valor relativamente alto das cabrucas e das matas secundárias para a biodiversidade, aliado ao percentual significativo de remanescentes de floresta primária, evita que as populações de animais e plantas se tornem pequenas e isoladas na região de Una. Isso porque, para a maioria dos grupos estudados, não se observou perda de espécies especialistas do interior de fragmentos grandes para o interior de fragmentos pequenos, como se esperaria pela teoria de biogeografia de ilhas. Ao contrário, as maiores alterações quanto à biodiversidade nos fragmentos florestais se deveram à proliferação de espécies generalistas nas bordas de remanescentes pequenos, provavelmente vindas dos ambientes antropogênicos do entorno.
A exceção são as árvores: os fragmentos pequenos abrigam menos espécies tolerantes à sombra – capazes de crescer em florestas bem desenvolvidas – e mais espécies intolerantes, que só crescem ao sol.
Tais alterações foram mais acentuadas entre as árvores jovens e menores, o que leva os pesquisadores a esperar mudanças futuras na flora dos remanescentes à medida que as árvores jovens cresçam e passem a integrar o dossel, causando efeitos em cascata para outros grupos de plantas e de animais.
Entre as medidas possíveis para evitar novas alterações da vegetação – e danos à biodiversidade – estão o abandono de técnicas de produção agrícola que usem fogo e o combate à exploração ilegal de madeira.
Diversidade da paisagem
A comparação entre os resultados do RestaUna e os de pesquisas feitas na mesma região em paisagens dominadas por cabrucas e poucos remanescentes florestais indica que o valor das plantações de cacau para a conservação depende fortemente da proporção de floresta primária que permanece na paisagem. Vários estudos provam que a distância do fragmento florestal influencia decisivamente na biodiversidade encontrada nas plantações. Por isso, o melhor cenário parece ser um com pequenas áreas de habitats antropogênicos circundadas de floresta primária, evitando a criação de grandes extensões de paisagem homogênea.
Estudos que assumem que todas as espécies são afetadas de forma igual e negativa com a alteração das paisagens pelo homem geralmente recomendam estratégias para preservar grandes áreas de habitats nativos. Ao contrário, ao levar em conta a variabilidade das respostas entre grupos de espécies, o RestaUna aponta a importância de aumentar a heterogeneidade das paisagens antropogênicas para que possam abrigar parte da biodiversidade nativa e, esta, continuar prestando serviços ao homem.
* Projeto RestaUna: Renata Pardini, Deborah Faria, Gustavo M. Accacio, Rudi R. Laps, Eduardo Mariano, Mateus L.B. Paciência, Marianna Dixo, Julio Baumgarten