Sabe-se que o crescimento econômico perpétuo é uma impossibilidade física, ambientalmente insustentável, com benefícios sociais duvidosos. No entanto, trata-se de uma arapuca política. No Brasil, o debate sobre a qualidade do crescimento esbarra na euforia do consumo
Do nascimento à maturidade, um hamster dobra o seu peso a cada semana. Se não parasse de crescer até certo ponto, o roedor celebraria o seu primeiro aniversário como um “ratozilla” de 9 bilhões de toneladas, capaz de engolir toda a produção mundial de milho em um único dia e ainda continuar com fome.
A história do hamster impossível (vídeo ao lado, em inglês) é uma criação do think tank britânico New Economics Foundation (NEF), para ilustrar uma suspeita que tem passado quase despercebida para a humanidade nas últimas décadas: deve haver um motivo bastante razoável, segundo o qual, na natureza, nada cresce indefinidamente. Então, pergunta a NEF, por que se acredita que a economia pode crescer para sempre em um planeta finito?
Essa é uma pergunta que se vem anunciando timidamente desde os anos 1970, mas que em tempos de crise climática começa a ganhar ressonância no interior da economia e de outras ciências, humanas ou exatas. Em larga medida, o questionamento tem mais a ver com rememorar do que com inovar. Por virtuais que se tenham tornado os mercados, as atividades econômicas ainda dependem de energia e matériaprima, dois elementos proporcionados pelos recursos naturais. Qualquer cientista atestará que muitos desses recursos são renováveis, mas nenhum deles é inesgotável.
A segunda recordação importante é que, não faz muito tempo, a humanidade tinha outro entendimento de seu projeto econômico. Até a virada do século XIX para o século XX, a ideia de um estado estacionário estava presente no pensamento clássico dominante. Expandiríamos a economia até o ponto em que todos os cidadãos tivessem garantidas as condições materiais para uma vida digna e gratificante. Missão espinhosa, talvez, mas pelo menos havia um limite no horizonte.
Na empolgação do progresso industrial, os patronos da economia neoclássica reinterpretaram o combinado, como explica Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da FEA-USP e coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental: “A base desse novo raciocínio é que não cabe a ninguém julgar a natureza das aspirações dos indivíduos. Portanto, os desejos humanos são infinitos. Sob esse ponto de vista, o sistema econômico só tem que crescer”.
Assim, nas palavras de Tim Jackson, diretor de economia da Comissão Europeia pelo Desenvolvimento Sustentável e autor do livro Prosperity Without Growth, o aumento da produção e do consumo tornou-se “o ponto mais importante da agenda política mundial”. Na atual macroeconomia, diz Jackson em entrevista exclusiva a Página22, o crescimento confunde-se com a estabilidade econômica, que por sua vez nutre a estabilidade social.
Aparentemente, nenhum governante gostaria de arriscar um caminho alternativo, sob a ameaça de elevar o desemprego e receber um golpe mortal nas urnas. “Os governos têm um papel legítimo de buscar o crescimento. Mas faz você pensar sobre qual é o sentido desse sistema quando esse ponto se eleva na agenda de prioridades mesmo quanto entra em conflito com outras demandas sociais e ambientais.”
A perspectiva predominante no século XX foi a de que todos os outros elementos do progresso social viriam a reboque. E esse é o motivo pelo qual você nem precisa ser um simpatizante da causa ambiental para desconfiar do crescimento econômico perpétuo.
Da metáfora do bolo que precisa fermentar primeiro para depois ser fatiado, de Delfim Netto, até os modelos econométricos de Simon Kuznets, um dos criadores do PIB, o aumento das desigualdades socioeconômicas foi encarado como dores do parto do desenvolvimento. Depois de certo tempo, com a expansão constante das atividades, o problema atingiria um platô e começaria a desaparecer automaticamente. Bem, não funcionou assim.
A economia global tem hoje quase cinco vezes o tamanho de 50 anos atrás. Se continuar no mesmo ritmo, terá 80 vezes esse tamanho ao final do século XXI. Ainda assim, 45% da população mundial vive com menos de US$ 2 por dia. Em verdade, a cada US$ 100 do crescimento global, entre 1990 e 2001, apenas US$ 0,60 chegaram ao bolso dos mais pobres. Isso significa que, para todo esse grupo tornar-se apenas US$ 1 menos pobre, é preciso expandir a produção e o consumo em US$ 166 [1].
[1] Para saber mais, confira o relatório Growth Isn’t Working, em inglês.
Considerando-se que 60% dos ecossistemas já se encontram degradados, é o caso de perguntar se o planeta terá capacidade de tornar os ricos ainda mais ricos até que se verifique algum resultado expressivo na redução da pobreza.
No interior das nações, os efeitos do crescimento econômico para a redução das desigualdades foram os mais variados, diz José Eli da Veiga, também professor da FEA-USP e especialista em ecodesenvolvimento: “Tem de tudo. País que cresceu sem distribuir, ou distribuiu crescendo pouco, ou cresceu muito distribuindo muito. São as instituições e o sistema de regras que vão fazer com que eu aproveite ou não o crescimento para reverter em desenvolvimento”.
Para Veiga, o exemplo mais significativo de que não há correlação automática entre um e outro está aqui mesmo no Brasil. Entre as dez maiores economias do mundo, o País foi o campeão de aumento do PIB durante quase um século, especialmente durante o Milagre Econômico [2]. “Isso só causou mais concentração de renda e essas aglomerações urbanas que são o nosso maior problema para o futuro”, diz o professor. No entanto, a partir da década de 80, o País cresceu majoritariamente a taxas pífias, mas se desenvolveu como nunca.
[2] Período de excepcionais taxas de crescimento ocorrido no Brasil durante a ditadura militar, especialmente entre 1969 e 1973.
Uma das ideias mais equivocadas do pensamento político e econômico, segundo Abramovay, é o trickle down, ou gotejamento. De acordo com essa perspectiva, pouco importa que os governos contribuam com a concentração de renda, distribuindo subsídios e benefícios fraternais às fatias mais abastadas da sociedade. Esses atores investiriam na infraestrutura dos negócios, produziriam mais bens a preços acessíveis, gerariam empregos e eventualmente toda a população seria incluída no progresso. Os críticos do mecanismo apontam que, sem outras políticas ligadas à redistribuição de renda e à seguridade social, os benefícios disseminados não são garantidos.
São muitas as evidências de que o desenvolvimento se dá por um conjunto de políticas aliadas ao desempenho econômico. Não há combustão espontânea. No entanto, o imperativo de crescer por crescer ainda é uma espécie de arapuca política, na qual governos de países ricos ou pobres permanecem enroscados.
O juramento
“Estamos aprisionados pelo nosso próprio juramento político hipócrita: entregar ao eleitorado mais gostosuras que qualquer outro candidato”, disse certa vez o congressista britânico Colin Challen. Seu desabafo ecoa a máxima de James Carville, marqueteiro da campanha de Bill Clinton, em 1992, para quem “é (sempre) a economia, estúpido”, que move as escolhas políticas dos cidadãos.
Segundo o cientista político Antonio Lavareda, especialista em marketing eleitoral com mais de 70 eleições no currículo, a literatura especializada não se cansa de apontar os big two no radar do eleitor: inflação e desemprego. Isso significa que as pessoas tendem a se preocupar prioritariamente com sua própria estabilidade financeira e poder de compra. “A maioria da população não liga para os números do PIB. O mais importante é o bem-estar econômico percebido, o feel good factor. Para as classes emergentes, consumo representa a realização de sonhos, como a casa própria.”
Ocorre, no entanto, um interessante reequilíbrio dos valores a partir de um determinado ponto do crescimento, normalmente identificado entre US$ 10 mil e US$ 15 mil de PIB per capita. Depois de alcançado esse ponto, o aumento da afluência gera pouco ou nenhum acréscimo em termos do acesso a recursos fundamentais, como saúde e educação, ou para a satisfação geral dos indivíduos com sua própria qualidade de vida.
Apesar do que leva a crer a cultura do consumismo, do luxo e do desperdício, muitas pessoas se dão conta disso e passam a demandar outras melhorias descoladas do crescimento econômico, como cultura, ar limpo, belas paisagens, menos barulho. Não por acaso, diz Claudio Couto, cientista político e professor do Departamento de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas, os países em que a agenda da sustentabilidade ambiental encontrou mais aderência política são aqueles com os melhores indicadores socioeconômicos.
A proposta para alguns desses países seria a transição para uma economia em steady-state [3]. Significa que as atividades econômicas seriam constantemente aprimoradas, mas sem implicar mais crescimento. O alvo recorrente são os países escandinavos, como Suécia e Noruega, considerados de altíssimo desenvolvimento. Tendo em mente que a biosfera é comum e limitada, o aumento da afluência nessas sociedades estaria apenas usurpando o “espaço ecológico” para que as nações mais pobres também possam se desenvolver.
[3] Proposta elaborada por Herman Daly, pai da economia ecológica. Para saber mais, leia aqui a entrevista Design, e não desastre, da edição 31 de Página22.
No Canadá, o economista Peter Victor acaba de apresentar um estudo que estima a situação do país caso houvesse um planejamento para cessar o crescimento até 2025. Surpreendentemente, não consta das projeções de Victor que os portões do inferno se abririam sob as montanhas geladas do Canadá. Na verdade, todos os indicadores sociais apresentam melhora, inclusive o emprego.
“Nesse caso, as multinacionais que querem vender mais celular porque é mais cor-de-rosa, provavelmente não se interessariam. Por outro lado, uma empresa que tem uma inovação que permite trocar energia fóssil por energia renovável acharia que o Canadá é o melhor país para vender. Você não precisa se isolar do mundo, apenas se concentrar em mercados mais alinhados com o projeto de desenvolvimento”, explica Veiga.
É no “meião” do mundo, como diz o professor, que a coisa se complica. A maioria dos países considerados de médio e alto desenvolvimento, como o Brasil, ainda não pode se desprender do crescimento. A explicação vem da tríade pobreza, desigualdade social e demografia em transformação. No mínimo, é preciso expandir as oportunidades para incluir o aumento populacional, embora o Brasil esteja caminhando para a estabilidade nesse quesito. O crescimento econômico também aumenta a arrecadação, o que, em tese, aprimora a capacidade do governo de aliviar a pobreza por meio de programas sociais.
Mas isso não significa que não se possa discutir a qualidade desse crescimento, ou seja, quais são as consequências socioambientais desejáveis do aumento da riqueza do país. “Você pode abrir uma estrada como a BR-319 no meio da Amazônia ou pode investir em saneamento básico, por exemplo. Ambos vão aparecer no PIB. É questão de escolha”, diz Veiga.
A ordem dos fatores
Pode parecer frustrante para os defensores de uma nova economia verde que as diferentes demandas sociais ainda sejam consideradas em ordem linear: primeiro a pobreza, depois o meio ambiente. Especialmente quando se sabe que as consequências da mudança do clima, por exemplo, devem se abater com fúria maior sobre as populações socialmente mais vulneráveis.
Para Lavareda, isso tem a ver com o ineditismo das propostas que desejam unir os dois elos do socioambiental: “Trata-se de uma nova terminologia, um repertório conceitual que ainda não foi decodificado, embora as pessoas estejam acompanhando essa questão na TV. Se houvesse uma pesquisa para saber se as propostas de Marina Silva são consideradas importantes, certamente mais de 90% diriam que sim. Mas isso ainda não tem centralidade. O problema da miséria ocupa todo o ‘espaço da compaixão’ atualmente”.
Claudio Couto inclui ainda a perspectiva de longo prazo que, sob o ponto de vista eleitoral, seria um inconveniente. “Mesmo com os problemas ambientais mais imediatos, como a poluição do ar nas cidades, é possível viver. Sem emprego, não.” Segundo o professor, historicamente, as únicas situações em que o voto econômico não prevalece é com a emergência de eventos dramáticos, como um desastre ambiental de grandes proporções, por exemplo, ou a existência de governos absurdamente corruptos.
Novamente, é possível considerar que a mesma tendência observada nos países de altíssimo desenvolvimento se reproduz no Brasil em escala menor. “O eleitorado de Marina Silva é essa classe média progressista que há muito tempo está com seu problema econômico básico resolvido. Na hora que o crescimento estiver garantido, assim como lá atrás a estabilidade monetária foi garantida, o eleitor vai se preocupar com outras coisas também. Só que a gente ainda está num ciclo de fruição desses ganhos econômicos que há muito tempo não se via. Não sabemos quanto tempo esse ciclo vai durar”, considera Couto.
Segundo Lavareda, a grande expectativa para esta e as próximas eleições é como deve se comportar essa nova classe C, que hoje corresponde a quase 90 milhões de brasileiros e 50% da renda nacional. É possível que sigam premiando as políticas bem-sucedidas em aumentar o poder de consumo. Mas também é possível que, uma vez acostumados à nova situação econômica, incorporem os valores daquela parcela da classe média que se volta para atributos imateriais.
Para José Eli da Veiga, ainda que a população brasileira não esteja preparada para discutir alternativas de desenvolvimento, nenhum presidente eleito poderá evitar essas questões, no mínimo, pressionado pelo mercado internacional. Como quase tudo em matéria de sustentabilidade, trata-se de uma aposta. A de que não se pode escapar do futuro.
Ricardo Abramovay explica por que o debate sobre a qualidade do crescimento é tão profícuo entre as empresas, mas não no interior dos governos. Ouça aqui o trecho da entrevista.
Assista aqui ao vídeo do debate entre José Eli da Veiga e André Lara Resende, no lançamento do livro “O que os economistas pensam sobre sustentabilidade”, de Ricardo Arnt.[:en]Sabe-se que o crescimento econômico perpétuo é uma impossibilidade física, ambientalmente insustentável, com benefícios sociais duvidosos. No entanto, trata-se de uma arapuca política. No Brasil, o debate sobre a qualidade do crescimento esbarra na euforia do consumo
Do nascimento à maturidade, um hamster dobra o seu peso a cada semana. Se não parasse de crescer até certo ponto, o roedor celebraria o seu primeiro aniversário como um “ratozilla” de 9 bilhões de toneladas, capaz de engolir toda a produção mundial de milho em um único dia e ainda continuar com fome.
A história do hamster impossível (vídeo ao lado, em inglês) é uma criação do think tank britânico New Economics Foundation (NEF), para ilustrar uma suspeita que tem passado quase despercebida para a humanidade nas últimas décadas: deve haver um motivo bastante razoável, segundo o qual, na natureza, nada cresce indefinidamente. Então, pergunta a NEF, por que se acredita que a economia pode crescer para sempre em um planeta finito?
Essa é uma pergunta que se vem anunciando timidamente desde os anos 1970, mas que em tempos de crise climática começa a ganhar ressonância no interior da economia e de outras ciências, humanas ou exatas. Em larga medida, o questionamento tem mais a ver com rememorar do que com inovar. Por virtuais que se tenham tornado os mercados, as atividades econômicas ainda dependem de energia e matériaprima, dois elementos proporcionados pelos recursos naturais. Qualquer cientista atestará que muitos desses recursos são renováveis, mas nenhum deles é inesgotável.
A segunda recordação importante é que, não faz muito tempo, a humanidade tinha outro entendimento de seu projeto econômico. Até a virada do século XIX para o século XX, a ideia de um estado estacionário estava presente no pensamento clássico dominante. Expandiríamos a economia até o ponto em que todos os cidadãos tivessem garantidas as condições materiais para uma vida digna e gratificante. Missão espinhosa, talvez, mas pelo menos havia um limite no horizonte.
Na empolgação do progresso industrial, os patronos da economia neoclássica reinterpretaram o combinado, como explica Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da FEA-USP e coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental: “A base desse novo raciocínio é que não cabe a ninguém julgar a natureza das aspirações dos indivíduos. Portanto, os desejos humanos são infinitos. Sob esse ponto de vista, o sistema econômico só tem que crescer”.
Assim, nas palavras de Tim Jackson, diretor de economia da Comissão Europeia pelo Desenvolvimento Sustentável e autor do livro Prosperity Without Growth, o aumento da produção e do consumo tornou-se “o ponto mais importante da agenda política mundial”. Na atual macroeconomia, diz Jackson em entrevista exclusiva a Página22, o crescimento confunde-se com a estabilidade econômica, que por sua vez nutre a estabilidade social.
Aparentemente, nenhum governante gostaria de arriscar um caminho alternativo, sob a ameaça de elevar o desemprego e receber um golpe mortal nas urnas. “Os governos têm um papel legítimo de buscar o crescimento. Mas faz você pensar sobre qual é o sentido desse sistema quando esse ponto se eleva na agenda de prioridades mesmo quanto entra em conflito com outras demandas sociais e ambientais.”
A perspectiva predominante no século XX foi a de que todos os outros elementos do progresso social viriam a reboque. E esse é o motivo pelo qual você nem precisa ser um simpatizante da causa ambiental para desconfiar do crescimento econômico perpétuo.
Da metáfora do bolo que precisa fermentar primeiro para depois ser fatiado, de Delfim Netto, até os modelos econométricos de Simon Kuznets, um dos criadores do PIB, o aumento das desigualdades socioeconômicas foi encarado como dores do parto do desenvolvimento. Depois de certo tempo, com a expansão constante das atividades, o problema atingiria um platô e começaria a desaparecer automaticamente. Bem, não funcionou assim.
A economia global tem hoje quase cinco vezes o tamanho de 50 anos atrás. Se continuar no mesmo ritmo, terá 80 vezes esse tamanho ao final do século XXI. Ainda assim, 45% da população mundial vive com menos de US$ 2 por dia. Em verdade, a cada US$ 100 do crescimento global, entre 1990 e 2001, apenas US$ 0,60 chegaram ao bolso dos mais pobres. Isso significa que, para todo esse grupo tornar-se apenas US$ 1 menos pobre, é preciso expandir a produção e o consumo em US$ 166 [1].
[1] Para saber mais, confira o relatório Growth Isn’t Working, em inglês.
Considerando-se que 60% dos ecossistemas já se encontram degradados, é o caso de perguntar se o planeta terá capacidade de tornar os ricos ainda mais ricos até que se verifique algum resultado expressivo na redução da pobreza.
No interior das nações, os efeitos do crescimento econômico para a redução das desigualdades foram os mais variados, diz José Eli da Veiga, também professor da FEA-USP e especialista em ecodesenvolvimento: “Tem de tudo. País que cresceu sem distribuir, ou distribuiu crescendo pouco, ou cresceu muito distribuindo muito. São as instituições e o sistema de regras que vão fazer com que eu aproveite ou não o crescimento para reverter em desenvolvimento”.
Para Veiga, o exemplo mais significativo de que não há correlação automática entre um e outro está aqui mesmo no Brasil. Entre as dez maiores economias do mundo, o País foi o campeão de aumento do PIB durante quase um século, especialmente durante o Milagre Econômico [2]. “Isso só causou mais concentração de renda e essas aglomerações urbanas que são o nosso maior problema para o futuro”, diz o professor. No entanto, a partir da década de 80, o País cresceu majoritariamente a taxas pífias, mas se desenvolveu como nunca.
[2] Período de excepcionais taxas de crescimento ocorrido no Brasil durante a ditadura militar, especialmente entre 1969 e 1973.
Uma das ideias mais equivocadas do pensamento político e econômico, segundo Abramovay, é o trickle down, ou gotejamento. De acordo com essa perspectiva, pouco importa que os governos contribuam com a concentração de renda, distribuindo subsídios e benefícios fraternais às fatias mais abastadas da sociedade. Esses atores investiriam na infraestrutura dos negócios, produziriam mais bens a preços acessíveis, gerariam empregos e eventualmente toda a população seria incluída no progresso. Os críticos do mecanismo apontam que, sem outras políticas ligadas à redistribuição de renda e à seguridade social, os benefícios disseminados não são garantidos.
São muitas as evidências de que o desenvolvimento se dá por um conjunto de políticas aliadas ao desempenho econômico. Não há combustão espontânea. No entanto, o imperativo de crescer por crescer ainda é uma espécie de arapuca política, na qual governos de países ricos ou pobres permanecem enroscados.
O juramento
“Estamos aprisionados pelo nosso próprio juramento político hipócrita: entregar ao eleitorado mais gostosuras que qualquer outro candidato”, disse certa vez o congressista britânico Colin Challen. Seu desabafo ecoa a máxima de James Carville, marqueteiro da campanha de Bill Clinton, em 1992, para quem “é (sempre) a economia, estúpido”, que move as escolhas políticas dos cidadãos.
Segundo o cientista político Antonio Lavareda, especialista em marketing eleitoral com mais de 70 eleições no currículo, a literatura especializada não se cansa de apontar os big two no radar do eleitor: inflação e desemprego. Isso significa que as pessoas tendem a se preocupar prioritariamente com sua própria estabilidade financeira e poder de compra. “A maioria da população não liga para os números do PIB. O mais importante é o bem-estar econômico percebido, o feel good factor. Para as classes emergentes, consumo representa a realização de sonhos, como a casa própria.”
Ocorre, no entanto, um interessante reequilíbrio dos valores a partir de um determinado ponto do crescimento, normalmente identificado entre US$ 10 mil e US$ 15 mil de PIB per capita. Depois de alcançado esse ponto, o aumento da afluência gera pouco ou nenhum acréscimo em termos do acesso a recursos fundamentais, como saúde e educação, ou para a satisfação geral dos indivíduos com sua própria qualidade de vida.
Apesar do que leva a crer a cultura do consumismo, do luxo e do desperdício, muitas pessoas se dão conta disso e passam a demandar outras melhorias descoladas do crescimento econômico, como cultura, ar limpo, belas paisagens, menos barulho. Não por acaso, diz Claudio Couto, cientista político e professor do Departamento de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas, os países em que a agenda da sustentabilidade ambiental encontrou mais aderência política são aqueles com os melhores indicadores socioeconômicos.
A proposta para alguns desses países seria a transição para uma economia em steady-state [3]. Significa que as atividades econômicas seriam constantemente aprimoradas, mas sem implicar mais crescimento. O alvo recorrente são os países escandinavos, como Suécia e Noruega, considerados de altíssimo desenvolvimento. Tendo em mente que a biosfera é comum e limitada, o aumento da afluência nessas sociedades estaria apenas usurpando o “espaço ecológico” para que as nações mais pobres também possam se desenvolver.
[3] Proposta elaborada por Herman Daly, pai da economia ecológica. Para saber mais, leia aqui a entrevista Design, e não desastre, da edição 31 de Página22.
No Canadá, o economista Peter Victor acaba de apresentar um estudo que estima a situação do país caso houvesse um planejamento para cessar o crescimento até 2025. Surpreendentemente, não consta das projeções de Victor que os portões do inferno se abririam sob as montanhas geladas do Canadá. Na verdade, todos os indicadores sociais apresentam melhora, inclusive o emprego.
“Nesse caso, as multinacionais que querem vender mais celular porque é mais cor-de-rosa, provavelmente não se interessariam. Por outro lado, uma empresa que tem uma inovação que permite trocar energia fóssil por energia renovável acharia que o Canadá é o melhor país para vender. Você não precisa se isolar do mundo, apenas se concentrar em mercados mais alinhados com o projeto de desenvolvimento”, explica Veiga.
É no “meião” do mundo, como diz o professor, que a coisa se complica. A maioria dos países considerados de médio e alto desenvolvimento, como o Brasil, ainda não pode se desprender do crescimento. A explicação vem da tríade pobreza, desigualdade social e demografia em transformação. No mínimo, é preciso expandir as oportunidades para incluir o aumento populacional, embora o Brasil esteja caminhando para a estabilidade nesse quesito. O crescimento econômico também aumenta a arrecadação, o que, em tese, aprimora a capacidade do governo de aliviar a pobreza por meio de programas sociais.
Mas isso não significa que não se possa discutir a qualidade desse crescimento, ou seja, quais são as consequências socioambientais desejáveis do aumento da riqueza do país. “Você pode abrir uma estrada como a BR-319 no meio da Amazônia ou pode investir em saneamento básico, por exemplo. Ambos vão aparecer no PIB. É questão de escolha”, diz Veiga.
A ordem dos fatores
Pode parecer frustrante para os defensores de uma nova economia verde que as diferentes demandas sociais ainda sejam consideradas em ordem linear: primeiro a pobreza, depois o meio ambiente. Especialmente quando se sabe que as consequências da mudança do clima, por exemplo, devem se abater com fúria maior sobre as populações socialmente mais vulneráveis.
Para Lavareda, isso tem a ver com o ineditismo das propostas que desejam unir os dois elos do socioambiental: “Trata-se de uma nova terminologia, um repertório conceitual que ainda não foi decodificado, embora as pessoas estejam acompanhando essa questão na TV. Se houvesse uma pesquisa para saber se as propostas de Marina Silva são consideradas importantes, certamente mais de 90% diriam que sim. Mas isso ainda não tem centralidade. O problema da miséria ocupa todo o ‘espaço da compaixão’ atualmente”.
Claudio Couto inclui ainda a perspectiva de longo prazo que, sob o ponto de vista eleitoral, seria um inconveniente. “Mesmo com os problemas ambientais mais imediatos, como a poluição do ar nas cidades, é possível viver. Sem emprego, não.” Segundo o professor, historicamente, as únicas situações em que o voto econômico não prevalece é com a emergência de eventos dramáticos, como um desastre ambiental de grandes proporções, por exemplo, ou a existência de governos absurdamente corruptos.
Novamente, é possível considerar que a mesma tendência observada nos países de altíssimo desenvolvimento se reproduz no Brasil em escala menor. “O eleitorado de Marina Silva é essa classe média progressista que há muito tempo está com seu problema econômico básico resolvido. Na hora que o crescimento estiver garantido, assim como lá atrás a estabilidade monetária foi garantida, o eleitor vai se preocupar com outras coisas também. Só que a gente ainda está num ciclo de fruição desses ganhos econômicos que há muito tempo não se via. Não sabemos quanto tempo esse ciclo vai durar”, considera Couto.
Segundo Lavareda, a grande expectativa para esta e as próximas eleições é como deve se comportar essa nova classe C, que hoje corresponde a quase 90 milhões de brasileiros e 50% da renda nacional. É possível que sigam premiando as políticas bem-sucedidas em aumentar o poder de consumo. Mas também é possível que, uma vez acostumados à nova situação econômica, incorporem os valores daquela parcela da classe média que se volta para atributos imateriais.
Para José Eli da Veiga, ainda que a população brasileira não esteja preparada para discutir alternativas de desenvolvimento, nenhum presidente eleito poderá evitar essas questões, no mínimo, pressionado pelo mercado internacional. Como quase tudo em matéria de sustentabilidade, trata-se de uma aposta. A de que não se pode escapar do futuro.
Ricardo Abramovay explica por que o debate sobre a qualidade do crescimento é tão profícuo entre as empresas, mas não no interior dos governos. Ouça aqui o trecho da entrevista.
Assista aqui ao vídeo do debate entre José Eli da Veiga e André Lara Resende, no lançamento do livro “O que os economistas pensam sobre sustentabilidade”, de Ricardo Arnt.