Baseada na colaboração e consentimento entre todos os participantes de uma organização, a sociocracia é um sistema de governança para a sustentabilidade, diz a consultora Tena Meadows O’Rear
Por Flavia Pardini
Página 22: O que é sociocracia, ou governança dinâmica?
Tena Meadows O’Rear: Sociocracia é um sistema de governança que tem uma estrutura e processos que operam dentro dessa estrutura. Foi criado na Holanda ao final da Segunda Guerra Mundial por Kees Boeke, um professor, e desenvolvido por um de seus alunos, Gerard Endenburg. Ele transformou a visão original de Boeke em uma série de processos que hoje conhecemos como sociocracia.
22: E se inspirou na cibernética?
TMO: Sim. Gerard é um engenheiro e a cibernética é a ciência do “direcionamento”, que nasceu durante a Segunda Guerra e se desenvolveu no período pós-guerra. Os princípios da cibernética não foram originalmente desenhados para os sistemas sociais, mas Gerard aplicou-os a esses sistemas, em uma conexão brilhante. Ele pensou: talvez as pessoas possam organizar-se de tal maneira que a dinâmica de poder existente em cada grupo deixe de funcionar como “eu tenho poder e você não” ou “se eu ganho mais poder, você perde”, e passem a usar um sistema cujo foco é o poder de direcionamento em vez de acumular ou abrir mão do poder. É uma questão de direcionar, porque o poder está sempre presente em qualquer organização de pessoas.
22: Direcionar para que ou onde?
TMO: Para um objetivo comum. Há várias pessoas boas que se juntam para tentar fazer coisas boas no mundo. Pode haver o problema de que o objetivo, o produto ou serviço que esse grupo está tentando ter como resultado de seus esforços, não esteja tão claro para todos. Quando não está claro para as pessoas, de maneira bem prática, porque estão ali, ou o que esperam produzir, então não há processo decisório no mundo que ajude a lidar com os conflitos que emergem. Portanto, o objetivo é a primeira coisa, pois significa o entendimento comum para o grupo. A partir daí, é uma questão de usar uma série de procedimentos altamente disciplinados para permitir que o grupo se mova consistentemente em direção àquele objetivo.
22: Como estão estruturados esses processos e procedimentos?
TMO: Trata-se de uma estrutura em círculos que é usada para a tomada de decisão dentro da organização, assim como para medir os processos da organização. A estrutura hierárquica tradicional é usada para o “fazer”, a operação. Na estrutura hierárquica há um chefe e a missão dele é ter certeza de que o trabalho vai ser feito. Mas na sociocracia o chefe trabalha sob as limitações impostas pelo círculo: ele é um integrante do círculo, igual a qualquer outro. A voz dele não pesa mais na hora de tomar decisões ou medir resultados.
22: Os círculos estão estruturados em diferentes níveis.
TMO: Correto. Em uma organização que usa a hierarquia, pode-se simplesmente formar um círculo para cada nível hierárquico. Assim, em uma empresa, por exemplo, cada funcionário pertence a pelo menos um círculo.
22: Dentro dos círculos, as decisões são tomadas por consentimento, e não por consenso. Por quê?
TMO: Na sociocracia temos a idéia de consentimento, que significa que tomamos decisões que caem dentro do que chamamos de “nível de tolerância” de todos. Em outras palavras, todo mundo pode viver com aquela decisão. Não é a favorita de todo mundo, ou mesmo a preferida de todo mundo, mas é uma decisão com a qual todos podem viver. Em contraste, há muitas organizações que usam o consenso, o que significa que todo mundo concorda. A diferença é que, com essa definição de consenso, a tomada de decisão pode ser um processo exaustivo e levar um longo tempo para que se chegue ao ponto de um acordo.
Enquanto isso, com a definição sociocrática de consentimento, o que procuramos é uma decisão que se encaixe no “nível de tolerância” de todos. Depois aplicamos os processos de mensuração de maneira muito metódica para medir os resultados das decisões, e usamos os dados da mensuração para realimentar o processo de decisão. Isso significa que nossas decisões são constantemente avaliadas e que os dados da avaliação servem para tomar decisões cada vez melhores.
O resultado é que não precisamos tomar decisões perfeitas, precisamos apenas decidir de uma maneira que funcione e com a qual todos podem viver. Não precisamos alcançar a perfeição, a natureza não faz isso, ela faz muitos experimentos para chegar cada vez mais perto de um ecossistema que sobrevive, que floresce, que é resiliente.
22: A senhora diz que a sociocracia é um sistema de governança para a sustentabilidade. Por quê?
TMO: Porque acredito que os princípios da sociocracia, e seus processos, estão baseados de maneira muito fundamental em leis naturais, na própria natureza. Por exemplo, no mundo natural vemos muitos exemplos de colaboração. Podemos olhar a natureza por meio das lentes da competição ou da colaboração. O livro Biomimicry, de Janine Benus, por exemplo, chama nossa atenção para a percepção do mundo natural como um grande processo cooperativo. E eu acredito que a sociocracia está fundamentada nesse fenômeno natural.
22: Há quem diga que as empresas são as últimas organizações autocráticas no mundo ocidental. Como a sociocracia pode ajudá-las a incorporar a sustentabilidade?
TMO: Toda e qualquer empresa usa dados resultantes de um processo de mensuração para avaliar sua performance, e aposto que você sabe de que dados estamos falando. Claro que é o bottom line, as finanças. As empresas estão sempre medindo seu próprio sucesso, elas entendem esse conceito, e mudam sua direção com base nos dados resultantes da mensuração.
Para caminhar em direção à sustentabilidade, trata-se de expandir os critérios de mensuração. Os dados financeiros são informações muito válidas que resultam desse processo. Se a empresa não for sustentável financeiramente, vai desmoronar. Entretanto, podemos adicionar critérios de mensuração para que reflitam, por exemplo, o quanto a empresa preserva seu fluxo de recursos. Isso significa que ela vai precisar olhar para seu impacto ambiental para ver se em cinco ou sete gerações esses recursos ainda estarão lá. Isso é sustentabilidade.
22: Uma empresa que decida usar a sociocracia para guiar esse processo precisa estar também pronta a desmontar as estruturas de poder existentes.
TMO: Sim. A sociocracia é baseada no conceito de renovação contínua. Uma empresa, assim como um organismo, tem que estar pronta para se adaptar às suas mudanças internas e às mudanças externas em seu ambiente para que possa ser sustentável. Isso significa que não podemos nos manter ligados à maneira anterior de fazer as coisas somente porque é assim que sempre fizemos. Temos que nos abrir às adaptações que nos tornem uma organização mais sustentável.
Muitas empresas que fizeram isso descobriram que é possível economizar enormes quantias de dinheiro porque estão abertas a considerar maneiras mais sustentáveis de trabalhar, não só em termos de seus processos produtivos, mas também em termos de como interagem. As empresas que aprendem a aproveitar a criatividade inerente à organização como um todo para tomar decisões, e não simplesmente contar com a criatividade das pessoas que estão no topo, estas são as empresas que estão realmente florescendo.
22: Como uma empresa adota a sociocracia? É preciso haver consentimento de todos?
TMO: Para começar é preciso oferecer treinamento para todas as pessoas envolvidas…
22: Então a decisão vem de cima?
TMO: Vem de cima. A empresa tem que tomar uma decisão: queremos adotar a sociocracia, ou tentar em um departamento específico, como uma experiência, para ver como funciona e, a partir daí, aprender e decidir se adotamos para a empresa toda ou não. Mas é chave que o começo seja treinar todo mundo para que todos possam estar informados para tomar uma decisão sobre adotar ou não o sistema.
22: Qual a diferença entre a sociocracia e os sistemas tradicionais de governança corporativa que se tornaram populares depois de escândalos como os da Enron para garantir a transparência e a eqüidade entre os acionistas?
TMO: Para evitar a corrupção há a idéia de ter supervisores que não estejam envolvidos no processo. Essa estrutura tem intenções muito boas. Entretanto, eu me pergunto se há oportunidade adequada para aproveitar a criatividade de todas as partes da organização. Também me pergunto se não emergem problemas de comunicação, dadas todas as separações necessárias na estrutura interna da organização. Na sociocracia temos um sistema muito bem definido de ligações entre um nível de uma empresa e o nível seguinte.
E temos o conceito da auditoria sociocrática, que é semelhante a uma auditoria financeira, um processo no qual uma pessoa externa à organização, um expert, é trazido para auditar se o processo sociocrático está sendo executado com integridade em toda a organização. A Enron é o pesadelo de todo mundo, garanto que eles não estavam organizados sociocraticamente.
No sistema deles obviamente não havia um processo suficiente de mensuração que desse voz às várias partes da organização. Assim como a natureza é movida a luz do sol, a sociocracia é movida a transparência, há abertura em todos os cantos da organização, interna e externamente. A capacidade de manter informação secreta, em algum canto, ou de não disponibilizá-la aos funcionários, simplesmente não seria possível em uma organização sociocrática.
22: Há exemplos de empresas que adotaram a sociocracia? Quão bem sucedidas são?
TMO: Há um departamento dentro da Shell Oil que adotou a sociocracia e um dos resultados que eles tiveram foi a redução de 30% no número de reuniões. Isso porque a comunicação se tornou tão direta e o processo de tomada de decisão, tão eficiente, que puderam liberar mais tempo para a produção. Em vez de falar, em uma reunião, sobre o que fazer, trata-se de fazer. Eu trabalho para o United States Green Building Council, meu maior cliente nos Estados Unidos, e várias das filiais do conselho ao redor do país estão adotando a sociocracia. Viram nela um tremendo ganho em eficiência no processo de decisão.
22: Se é tão eficiente, por que a sociocracia não é mais freqüente nas organizações?
TMO: É um sistema relativamente novo, foi desenvolvido nos últimos 30, 40 anos. Acredito que é a próxima evolução em relação à democracia, e estou voando o mais rápido que posso ao redor do mundo para falar sobre ela.
22: O sistema pode ser usado por governos ou em uma escala global?
TMO: Pode. Uma colega de Montreal acaba de ser convidada a ir a Reunião (território francês no Oceano Índico, vizinho às Ilhas Maurício) para trabalhar com uma parte da estrutura governamental de lá para introduzir a sociocracia. Isso é muito animador, mas ainda não aconteceu, então não posso relatar os resultados, é um processo em desenvolvimento. Mas é um sinal de que há interesse na esfera governamental, assim como a intenção de se treinar para adotar o sistema. Vamos ver como a coisa cresce a partir daí. É realmente uma visão muito bonita a de que um governo possa se conectar com o povo de uma maneira totalmente nova, e mais significativa, do que simplesmente “o povo vota de vez em quando”.
22: Por que, no fim das contas, faz diferença a maneira que tomamos decisões como um grupo?
TMO: Há muitas pessoas no mundo que estão conscientes dos problemas agudos que enfrentamos com a mudança climática, a distribuição assimétrica de recursos e outros problemas enormes. E muitas pessoas estão tentando trabalhar, por meio de ONGs e todos os tipos de organização, para fazer a diferença. Muito freqüentemente é o processo que usam que bloqueia sua capacidade de realmente fazer um bom trabalho pelo mundo.
O processo que adotam é crucial para que alcancem seu objetivo, e se o processo é rancoroso, se há brigas e experiências negativas para as pessoas, então não seremos capazes de colher a energia dessas pessoas de modo a alcançar as mudanças positivas que precisamos. A sociocracia oferece uma maneira de direcionar esse poder em direção ao objetivo, que é salvar nossa espécie, preservar o planeta.