Projeto de lei que propõe flexibilização do Código Florestal reacende o antagonismo entre interesses do agronegócio e a necessidade de conservação dos biomas brasileiros. Fora da batalha legal, mecanismos de mercado podem ser capazes de conciliar esses dois pólos
Por Carolina Derivi
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Ambientalistas e ruralistas costumam brigar feito cão e gato. Tem sido assim desde que o primeiro ativista abraçou a primeira árvore e declarou guerra aos tratores e serras elétricas. No Brasil, país marcado por uma história de desenvolvimento baseada em ciclos agrícolas, a disputa é reflexo do trauma provocado por paradigmas em transição. Os mais recentes — e alarmantes — dados sobre o desmatamento na Amazônia mostram que a sociedade brasileira de forma geral ainda dá valor às terras de acordo com a sua produtividade.
Uma parcela minoritária insurge contra o velho paradigma e questiona as formas de ocupação, ao enxergar valor também na biodiversidade que essas terras abrigam. Essa nova força parte especialmente da sociedade civil organizada, ao mesmo tempo que os mercados internacionais começam a exigir certifi cados de que a produção tenha sido feita de maneira ambientalmente correta e socialmente justa. O choque entre as duas visões torna mais complexa a equação do uso do espaço no meio rural.
O mais novo round dessa história de confl itos é o Projeto de Lei nº 6424/05, de autoria do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que visa fl exibilizar as regras para recomposição fl orestal em propriedades rurais. O Código Florestal Brasileiro (Lei nº 4771/65) estabelece que todo proprietário deve manter um mínimo de vegetação nativa (80% do total da propriedade para o bioma Amazônia, 35% para o Cerrado dentro da Amazônia Legal — a Região Norte mais o estado de Mato Grosso e uma parte do Maranhão — e 20% para o restante do País) a título de Reserva Legal (RL). O que o projeto sugere é computar o plantio de palmáceas e espécies exóticas na RL, muitas das quais são oleaginosas usadas na produção de biodiesel. A idéia é garantir maior retorno fi nanceiro aos fazendeiros e, assim, estimular o cumprimento da lei. A proposta deixou muitas ONGs socioambientais de cabelo em pé neste fi m de ano. “Na prática, isso reduz a Reserva Legal e desvirtua a função do dispositivo, porque você tem na realidade uma área de produção. A Reserva Legal é fundamental para a manutenção da biodiversidade”, contesta Sérgio Leitão, coordenador de políticas públicas do Greenpeace. Em outubro passado, 13 entidades assinaram um manifesto contra o projeto, apelidado pelo Greenpeace de “Floresta Zero”.
“As pessoas ficam dizendo que o PL é contra a fl oresta, mas é o contrário. A nossa intenção é dar destinação econômica às áreas que já foram desmatadas, mas compensar em lugares onde ainda há fl oresta”, defende-se o senador Flexa Ribeiro. A lei permite compensação fora da propriedade, desde que dentro da mesma microbacia e do mesmo bioma. Apesar de tantas divergências, a oportunidade é propícia para discutir formas de efetivar uma das mais importantes peças da legislação ambiental, que desde a sua criação integra o campo das “leis que não pegam”.
Ao contrário do que se poderia esperar, o Código Florestal é mais antigo que a consciência ambiental. Desde 1934, a legislação obriga os fazendeiros a manter um percentual de mata em suas terras. Na época, entretanto, a medida visava apenas garantir estoques de madeira, para as fazendas e para a infra-estrutura do País. Mas com a ausência de fi scalização e medidas punitivas efi cientes, aliada aos incentivos governamentais para expansão da agropecuária, a regra foi sendo empurrada para debaixo do tapete.
Décadas depois, com a percepção do interesse público pela conservação da biodiversidade e, mais modernamente, dos serviços ambientais prestados pela vegetação nativa, tais como proteção do solo, equilíbrio do ciclo hidrológico etc., a lei cobrou sua conta: à obrigação de manter a Reserva Legal somou-se a de repor tudo o que havia sido ilegalmente desmatado (quadro abaixo).
Reserva Legal | De estoque de madeira à tentativa de conservação
1934 — É criado o primeiro Código Florestal Brasileiro. O conceito de “Reserva Florestal” nasce apenas com o intuito de garantir o estoque de madeira nas propriedades rurais. Tanto é assim que a lei permite que essa reserva seja constituída de mata nativa ou de fl orestas homogêneas, plantadas 1965 — O segundo Código Florestal estabelece limites de preservação de áreas nativas em 20% nas regiões Leste Meridional, Sul e parte do Centro-Oeste, e em 50% nas áreas ainda não desbravadas como a Região Norte e o Norte do Centro-Oeste 1989 — Surge o termo “Reserva Legal” (RL), com a Lei nº 7.803, que reforma o Código Florestal. Pela primeira vez a legislação trata a RL como interesse público, voltado para a conservação da biodiversidade. A intervenção nessas áreas fica condicionada à autorização do órgão ambiental. Também passa a ser obrigatória a averbação de RL nos registros de imóveis 1991 — A Lei de Política Agrícola (8.171) causa alvoroço no meio rural ao determinar a obrigatoriedade de reposição de mata nativa tanto para efeito de Reserva Legal quanto nas Áreas de Preservação Permanente (APP). A partir daí, mais de 60 medidas provisórias (MP) são editadas para orientar as regras de reposição 1995 — O desmatamento na Amazônia atinge 29 mil quilômetros quadrados, um recorde histórico. Em caráter emergencial, o presidente Fernando Henrique Cardoso edita medida provisória que eleva a área de RL no bioma Amazônia de 50% para 80% da área total das propriedades. A partir daí, a MP vem sendo reeditada sucessivamente
O resultado do endurecimento da legislação foi um fiasco que se sustenta até hoje. Embora não haja números precisos sobre o défi cit, um parecer publicado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP) em 2005 estima que menos de 10% das propriedades rurais no País mantêm a Reserva Legal e, ainda assim, as áreas estão freqüentemente abaixo do mínimo exigido por lei. Uma das principais críticas apresentadas no manifesto das ONGs é “a falta de vinculação da concessão de crédito à regularização ambiental das propriedades rurais”, uma responsabilidade que deveria ser do governo e dos bancos.
“Você paga Imposto de Renda?”, questiona o diretor da Fundação SOS Mata Atlântica, Mario Mantovani. “Eu pago. Acho muito caro. Mas, se eu não fi zer isso, estou perdido, vou sofrer um monte de restrições. O mesmo não acontece para o Código Florestal.” Recentemente, a entidade realizou um levantamento na região de Araçatuba (SP) para verifi car o status de cumprimento do Código. Concluiu que menos de 2% do registro dos imóveis têm Reserva Legal averbada, uma obrigação vigente desde 1989.
Do lado dos produtores rurais, as críticas à legislação dizem respeito aos altos custos de reposição da mata nativa. Segundo o consultor em sustentabilidade para o agronegócio José Carlos Pedreira, esses valores vão de R$ 600 a R$ 4 mil por hectare, dependendo do tipo de solo e de bioma. Mônika Bergamaschi, diretora da Associação Brasileira de Agribusiness (Abag), reclama: “Na Amazônia, por exemplo, teve toda aquela história de ‘integrar para não entregar’. As pessoas foram obrigadas a derrubar fl oresta no passado e agora são obrigadas a plantar de novo. O que a legislação faz é atribuir apenas ao proprietário um ônus que também é do governo e de toda a sociedade”.
Além disso, os ruralistas criticam a ausência de critérios técnicos para fundamentar os percentuais de Reserva Legal em cada bioma, conforme explica Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon):
“Realmente não houve uma determinação científi ca para esses números. Recentemente, estudos do LBA (Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia) demonstraram que um desmatamento acima de 30% da região poderia criar a retroalimentação negativa com mudança de clima e transformação da paisagem mais ampla. Mas na época em que se defi niu a Reserva Legal não se sabia disso. Para a Amazônia, foi uma decisão arbitrária e emergencial”, afi rma Barreto.
Segundo John Carter, produtor de soja em Mato Grosso e fundador da Aliança da Terra (uma iniciativa para sustentabilidade no agronegócio), a fatia de 80% para a Amazônia é “proibitiva”. “Depois que veio a medida provisória, em 95, quem respeitou a Reserva Legal em 50% passou a fi car ilegal. Isso não é justo. Ao menos no Mato Grosso, 80% é completamente inviável. Só faz provocar desobediência civil.” Para Carter, o percentual mais alto deveria valer apenas para novos desmatamentos.
É difícil dizer se a redução das áreas de Reserva Legal seria efi ciente para estimular o refl orestamento das propriedades, mas uma boa pista para essa hipótese está no estado de Rondônia. Assim como Mato Grosso, Rondônia é um dos estados amazônicos onde o desmatamento é mais severo. Lá restam 48% da vegetação nativa, praticamente restrita às unidades de conservação, enquanto a média para Amazônia Legal é de 83%. Desde 2006, um decreto estadual atrelado ao Zoneamento Econômico-Ecológico (ZEE) do estado determinou a redução de RL para 50% na chamada ‘Zona 1’, onde a atividade econômica é mais intensa.
Segundo Luiz Carlos Maretto, engenheiro fl orestal da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé (ONG local), a medida não teve nenhum retorno para o meio ambiente: “Isso veio a favorecer quem já destruiu a fl oresta, e fi cou no prejuízo a pessoa que foi correta. Até agora ninguém cumpriu a reposição”. A Secretaria Estadual de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) foi procurada, mas até o fechamento desta reportagem não designou ninguém que pudesse comentar a constatação de Maretto.
A utilização de plantações de palmáceas e espécies exóticas, de que trata o PL nº 6424/05, também apresenta problemas do ponto de vista ambiental. O mais evidente deles é que qualquer monocultura, ainda que intercalada com outras espécies vegetais, jamais poderia ser capaz de prover os mesmos benefícios ecológicos de um bioma nativo. Para Barreto, do Imazon, a proposta pode até ser interessante para recuperação do solo degradado, mas não para cumprir função de Reserva Legal. Recentemente, a ONG Conservação Internacional publicou um trabalho que analisa a proposta do PL com base na literatura científi ca. Comprovou que “espécies mais exigentes e geralmente consideradas indicadoras da qualidade ambiental desaparecem em ambientes artificiais”.
Além disso, aos ouvidos dos ambientalistas, o PL grita “biocombustíveis na Amazônia”. Há tempos o governo vem garantindo que não haverá plantação de culturas para produção de etanol ou biodiesel na região. O que se teme é que, com o aquecimento da demanda, o mercado de biocombustíveis possa se tornar um novo fator de desmatamento, assim como a soja e a pecuária. A menção específi ca a palmáceas no texto do PL, entre as quais se inclui o dendê, um dos insumos do biodiesel, reforça esse temor. “É um portão de boas-vindas para os biocombustíveis na região! Isso demonstra que o discurso do governo não corresponde à prática”, avalia Leitão, do Greenpeace.
Engrossando o caldo da polêmica
Depois de passar pelo crivo do Senado e da Comissão de Meio Ambiente da Câmara, o PL aportou na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, por pressão da bancada ruralista, e de lá saiu ainda mais controverso. “Nós tínhamos alcançado um entendimento com os setores ambientais do governo. Mas o projeto foi totalmente desvirtuado na Comissão de Agricultura. Quando retomarmos os trabalhos legislativos vai ser uma batalha”, diz Flexa Ribeiro. O Ministério do Meio Ambiente também foi procurado pela reportagem, mas, segundo sua assessoria, nenhum dos diretores estaria interessado em comentar o projeto porque ainda está em discussão no Congresso.
Entre as principais alterações aprovadas está a possibilidade de compensar o passivo ambiental em outra bacia hidrográfi ca e, em alguns casos, até mesmo em outro estado. “Esse dispositivo atende em cheio a interesses de estados como São Paulo, dividindo a federação em estados produtores e estados preservadores.” argumenta Mario Menezes, diretor-adjunto da Amigos da Terra — Amazônia Brasileira. Para ele, a medida livra os fazendeiros de reparar o passivo ambiental que desmantelou a Mata Atlântica e possibilita a compensação no Norte, onde a terra é mais barata. Alguns ambientalistas até concordam que permitir a compensação de Reserva Legal fora da propriedade é importante. Em última análise, isso pode atribuir valor econômico a remanescentes fl orestais mais vulneráveis e contribuir com a preservação do que resta dos biomas brasileiros. Mas, do ponto de vista dos sistemas ecológicos, pretender equivalência entre um pedaço de mata no Espírito Santo e outro no Pará é uma aberração.
É o que explica Renata Pardini, professora do Instituto de Biociências da USP e especialista em ecologia da paisagem: “O grande valor do Código Florestal é que ele leva em conta a espacialização. Ou seja, a gente tem de pensar a questão ecológica em escalas espaciais grandes. Você pode ter dois fragmentos do mesmo tamanho, do mesmo bioma, mas se eles estiverem em campos distintos a biodiversidade é completamente diferente”.
Outra proposta polêmica determina a soma das Áreas de Preservação Permanente (mata ciliar, topos de morros, nascentes de rios etc.) com os fragmentos de ecossistemas naturais para o cômputo fi nal da Reserva Legal. Atualmente, a legislação considera os dois tipos de reserva complementares, porém separados. A mudança representaria perda de 10% do tamanho da Reserva Legal, já que a fração representa a média da área ocupada por APPs nas propriedades rurais em todo o país.
Caminhos de conciliação
Apesar da evidente difi culdade em se fazer aplicar o Código Florestal, algumas iniciativas vêm apresentando bons resultados em promover a adesão dos produtores rurais a uma agenda de sustentabilidade. Essa tendência se deve principalmente à crescente exigência dos mercados internacionais pela observância de critérios socioambientais nas cadeias produtivas. “Hoje você tem setores do meio agrícola, como o de celulose, por exemplo, que não sobrevivem mais sem certifi cação”, garante Ricardo Rodrigues, professor do Departamento de Ciências Biológicas da Esalq.
É graças à demanda pela certifi cação, os chamados “selos verdes”, que Rodrigues vem sendo requisitado para coordenar projetos de adequação ao Código Florestal. A estratégia consiste em aproveitar áreas de baixa aptidão agrícola para recuperação fl orestal, onde também se aplicam o manejo de madeira e a exploração de plantas medicinais e frutíferas. Além disso, promove-se a ligação entre fragmentos de mata nativa na fazenda por meio de corredores ecológicos, aumentando a RL. O que eventualmente faltar para atingir o percentual mínimo é compensado fora da propriedade. “As pessoas perceberam que, comprando pequenas áreas naturais, conseguem fazer a compensação ambiental. Isso em ganho de mercado e marketing é muito mais signifi cativo que o lucro que se teria não fazendo a regularização”, diz Rodrigues.
Em Mato Grosso, a ONG The Nature Conservancy (TNC) lançou em dezembro do ano passado o projeto Soja Mais Verde. Trata-se de um fundo para regularização do setor no estado, com recursos da Associação dos Produtores de Soja do Mato Grosso (Aprosoja) e da própria TNC. As entidades entraram com US$ 1 milhão cada. A meta é chegar a US$ 15 milhões. O capital será investido em georreferenciamento e recuperação de APPs e RL em 3.500 propriedades ao longo de quatro anos.
Segundo a coordenadora nacional da TNC, Ana Cristina Barros, o projeto é um empurrão que se pretende auto-sustentável no futuro: “Quando o mecanismo não existe, você tem um custo inicial de transação. Mas a gente espera que, com o tempo, esses custos sejam incorporados pela própria cadeia produtiva. O consumidor e os intermediários podem pagar um pouco mais pelo valor agregado e pela vantagem competitiva. Aos poucos, o que se vê é esse ônus se transformando numa oportunidade de negócio. Mas não majoritariamente, claro. Se fosse, a discussão no Congresso seria muito mais fácil…”
Projeto de lei que propõe flexibilização do Código Florestal reacende o antagonismo entre interesses do agronegócio e a necessidade de conservação dos biomas brasileiros. Fora da batalha legal, mecanismos de mercado podem ser capazes de conciliar esses dois pólos
Por Carolina Derivi
Ambientalistas e ruralistas costumam brigar feito cão e gato. Tem sido assim desde que o primeiro ativista abraçou a primeira árvore e declarou guerra aos tratores e serras elétricas. No Brasil, país marcado por uma história de desenvolvimento baseada em ciclos agrícolas, a disputa é reflexo do trauma provocado por paradigmas em transição. Os mais recentes — e alarmantes — dados sobre o desmatamento na Amazônia mostram que a sociedade brasileira de forma geral ainda dá valor às terras de acordo com a sua produtividade.
Uma parcela minoritária insurge contra o velho paradigma e questiona as formas de ocupação, ao enxergar valor também na biodiversidade que essas terras abrigam. Essa nova força parte especialmente da sociedade civil organizada, ao mesmo tempo que os mercados internacionais começam a exigir certifi cados de que a produção tenha sido feita de maneira ambientalmente correta e socialmente justa. O choque entre as duas visões torna mais complexa a equação do uso do espaço no meio rural.
O mais novo round dessa história de confl itos é o Projeto de Lei nº 6424/05, de autoria do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que visa fl exibilizar as regras para recomposição fl orestal em propriedades rurais. O Código Florestal Brasileiro (Lei nº 4771/65) estabelece que todo proprietário deve manter um mínimo de vegetação nativa (80% do total da propriedade para o bioma Amazônia, 35% para o Cerrado dentro da Amazônia Legal — a Região Norte mais o estado de Mato Grosso e uma parte do Maranhão — e 20% para o restante do País) a título de Reserva Legal (RL). O que o projeto sugere é computar o plantio de palmáceas e espécies exóticas na RL, muitas das quais são oleaginosas usadas na produção de biodiesel. A idéia é garantir maior retorno fi nanceiro aos fazendeiros e, assim, estimular o cumprimento da lei. A proposta deixou muitas ONGs socioambientais de cabelo em pé neste fi m de ano. “Na prática, isso reduz a Reserva Legal e desvirtua a função do dispositivo, porque você tem na realidade uma área de produção. A Reserva Legal é fundamental para a manutenção da biodiversidade”, contesta Sérgio Leitão, coordenador de políticas públicas do Greenpeace. Em outubro passado, 13 entidades assinaram um manifesto contra o projeto, apelidado pelo Greenpeace de “Floresta Zero”.
“As pessoas ficam dizendo que o PL é contra a fl oresta, mas é o contrário. A nossa intenção é dar destinação econômica às áreas que já foram desmatadas, mas compensar em lugares onde ainda há fl oresta”, defende-se o senador Flexa Ribeiro. A lei permite compensação fora da propriedade, desde que dentro da mesma microbacia e do mesmo bioma. Apesar de tantas divergências, a oportunidade é propícia para discutir formas de efetivar uma das mais importantes peças da legislação ambiental, que desde a sua criação integra o campo das “leis que não pegam”.
Ao contrário do que se poderia esperar, o Código Florestal é mais antigo que a consciência ambiental. Desde 1934, a legislação obriga os fazendeiros a manter um percentual de mata em suas terras. Na época, entretanto, a medida visava apenas garantir estoques de madeira, para as fazendas e para a infra-estrutura do País. Mas com a ausência de fi scalização e medidas punitivas efi cientes, aliada aos incentivos governamentais para expansão da agropecuária, a regra foi sendo empurrada para debaixo do tapete.
Décadas depois, com a percepção do interesse público pela conservação da biodiversidade e, mais modernamente, dos serviços ambientais prestados pela vegetação nativa, tais como proteção do solo, equilíbrio do ciclo hidrológico etc., a lei cobrou sua conta: à obrigação de manter a Reserva Legal somou-se a de repor tudo o que havia sido ilegalmente desmatado (quadro abaixo).
Reserva Legal | De estoque de madeira à tentativa de conservação
1934 — É criado o primeiro Código Florestal Brasileiro. O conceito de “Reserva Florestal” nasce apenas com o intuito de garantir o estoque de madeira nas propriedades rurais. Tanto é assim que a lei permite que essa reserva seja constituída de mata nativa ou de fl orestas homogêneas, plantadas 1965 — O segundo Código Florestal estabelece limites de preservação de áreas nativas em 20% nas regiões Leste Meridional, Sul e parte do Centro-Oeste, e em 50% nas áreas ainda não desbravadas como a Região Norte e o Norte do Centro-Oeste 1989 — Surge o termo “Reserva Legal” (RL), com a Lei nº 7.803, que reforma o Código Florestal. Pela primeira vez a legislação trata a RL como interesse público, voltado para a conservação da biodiversidade. A intervenção nessas áreas fica condicionada à autorização do órgão ambiental. Também passa a ser obrigatória a averbação de RL nos registros de imóveis 1991 — A Lei de Política Agrícola (8.171) causa alvoroço no meio rural ao determinar a obrigatoriedade de reposição de mata nativa tanto para efeito de Reserva Legal quanto nas Áreas de Preservação Permanente (APP). A partir daí, mais de 60 medidas provisórias (MP) são editadas para orientar as regras de reposição 1995 — O desmatamento na Amazônia atinge 29 mil quilômetros quadrados, um recorde histórico. Em caráter emergencial, o presidente Fernando Henrique Cardoso edita medida provisória que eleva a área de RL no bioma Amazônia de 50% para 80% da área total das propriedades. A partir daí, a MP vem sendo reeditada sucessivamente
O resultado do endurecimento da legislação foi um fiasco que se sustenta até hoje. Embora não haja números precisos sobre o défi cit, um parecer publicado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP) em 2005 estima que menos de 10% das propriedades rurais no País mantêm a Reserva Legal e, ainda assim, as áreas estão freqüentemente abaixo do mínimo exigido por lei. Uma das principais críticas apresentadas no manifesto das ONGs é “a falta de vinculação da concessão de crédito à regularização ambiental das propriedades rurais”, uma responsabilidade que deveria ser do governo e dos bancos.
“Você paga Imposto de Renda?”, questiona o diretor da Fundação SOS Mata Atlântica, Mario Mantovani. “Eu pago. Acho muito caro. Mas, se eu não fi zer isso, estou perdido, vou sofrer um monte de restrições. O mesmo não acontece para o Código Florestal.” Recentemente, a entidade realizou um levantamento na região de Araçatuba (SP) para verifi car o status de cumprimento do Código. Concluiu que menos de 2% do registro dos imóveis têm Reserva Legal averbada, uma obrigação vigente desde 1989.
Do lado dos produtores rurais, as críticas à legislação dizem respeito aos altos custos de reposição da mata nativa. Segundo o consultor em sustentabilidade para o agronegócio José Carlos Pedreira, esses valores vão de R$ 600 a R$ 4 mil por hectare, dependendo do tipo de solo e de bioma. Mônika Bergamaschi, diretora da Associação Brasileira de Agribusiness (Abag), reclama: “Na Amazônia, por exemplo, teve toda aquela história de ‘integrar para não entregar’. As pessoas foram obrigadas a derrubar fl oresta no passado e agora são obrigadas a plantar de novo. O que a legislação faz é atribuir apenas ao proprietário um ônus que também é do governo e de toda a sociedade”.
Além disso, os ruralistas criticam a ausência de critérios técnicos para fundamentar os percentuais de Reserva Legal em cada bioma, conforme explica Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon):
“Realmente não houve uma determinação científi ca para esses números. Recentemente, estudos do LBA (Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia) demonstraram que um desmatamento acima de 30% da região poderia criar a retroalimentação negativa com mudança de clima e transformação da paisagem mais ampla. Mas na época em que se defi niu a Reserva Legal não se sabia disso. Para a Amazônia, foi uma decisão arbitrária e emergencial”, afi rma Barreto.
Segundo John Carter, produtor de soja em Mato Grosso e fundador da Aliança da Terra (uma iniciativa para sustentabilidade no agronegócio), a fatia de 80% para a Amazônia é “proibitiva”. “Depois que veio a medida provisória, em 95, quem respeitou a Reserva Legal em 50% passou a fi car ilegal. Isso não é justo. Ao menos no Mato Grosso, 80% é completamente inviável. Só faz provocar desobediência civil.” Para Carter, o percentual mais alto deveria valer apenas para novos desmatamentos.
É difícil dizer se a redução das áreas de Reserva Legal seria efi ciente para estimular o refl orestamento das propriedades, mas uma boa pista para essa hipótese está no estado de Rondônia. Assim como Mato Grosso, Rondônia é um dos estados amazônicos onde o desmatamento é mais severo. Lá restam 48% da vegetação nativa, praticamente restrita às unidades de conservação, enquanto a média para Amazônia Legal é de 83%. Desde 2006, um decreto estadual atrelado ao Zoneamento Econômico-Ecológico (ZEE) do estado determinou a redução de RL para 50% na chamada ‘Zona 1’, onde a atividade econômica é mais intensa.
Segundo Luiz Carlos Maretto, engenheiro fl orestal da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé (ONG local), a medida não teve nenhum retorno para o meio ambiente: “Isso veio a favorecer quem já destruiu a fl oresta, e fi cou no prejuízo a pessoa que foi correta. Até agora ninguém cumpriu a reposição”. A Secretaria Estadual de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) foi procurada, mas até o fechamento desta reportagem não designou ninguém que pudesse comentar a constatação de Maretto.
A utilização de plantações de palmáceas e espécies exóticas, de que trata o PL nº 6424/05, também apresenta problemas do ponto de vista ambiental. O mais evidente deles é que qualquer monocultura, ainda que intercalada com outras espécies vegetais, jamais poderia ser capaz de prover os mesmos benefícios ecológicos de um bioma nativo. Para Barreto, do Imazon, a proposta pode até ser interessante para recuperação do solo degradado, mas não para cumprir função de Reserva Legal. Recentemente, a ONG Conservação Internacional publicou um trabalho que analisa a proposta do PL com base na literatura científi ca. Comprovou que “espécies mais exigentes e geralmente consideradas indicadoras da qualidade ambiental desaparecem em ambientes artificiais”.
Além disso, aos ouvidos dos ambientalistas, o PL grita “biocombustíveis na Amazônia”. Há tempos o governo vem garantindo que não haverá plantação de culturas para produção de etanol ou biodiesel na região. O que se teme é que, com o aquecimento da demanda, o mercado de biocombustíveis possa se tornar um novo fator de desmatamento, assim como a soja e a pecuária. A menção específi ca a palmáceas no texto do PL, entre as quais se inclui o dendê, um dos insumos do biodiesel, reforça esse temor. “É um portão de boas-vindas para os biocombustíveis na região! Isso demonstra que o discurso do governo não corresponde à prática”, avalia Leitão, do Greenpeace.
Engrossando o caldo da polêmica
Depois de passar pelo crivo do Senado e da Comissão de Meio Ambiente da Câmara, o PL aportou na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, por pressão da bancada ruralista, e de lá saiu ainda mais controverso. “Nós tínhamos alcançado um entendimento com os setores ambientais do governo. Mas o projeto foi totalmente desvirtuado na Comissão de Agricultura. Quando retomarmos os trabalhos legislativos vai ser uma batalha”, diz Flexa Ribeiro. O Ministério do Meio Ambiente também foi procurado pela reportagem, mas, segundo sua assessoria, nenhum dos diretores estaria interessado em comentar o projeto porque ainda está em discussão no Congresso.
Entre as principais alterações aprovadas está a possibilidade de compensar o passivo ambiental em outra bacia hidrográfi ca e, em alguns casos, até mesmo em outro estado. “Esse dispositivo atende em cheio a interesses de estados como São Paulo, dividindo a federação em estados produtores e estados preservadores.” argumenta Mario Menezes, diretor-adjunto da Amigos da Terra — Amazônia Brasileira. Para ele, a medida livra os fazendeiros de reparar o passivo ambiental que desmantelou a Mata Atlântica e possibilita a compensação no Norte, onde a terra é mais barata. Alguns ambientalistas até concordam que permitir a compensação de Reserva Legal fora da propriedade é importante. Em última análise, isso pode atribuir valor econômico a remanescentes fl orestais mais vulneráveis e contribuir com a preservação do que resta dos biomas brasileiros. Mas, do ponto de vista dos sistemas ecológicos, pretender equivalência entre um pedaço de mata no Espírito Santo e outro no Pará é uma aberração.
É o que explica Renata Pardini, professora do Instituto de Biociências da USP e especialista em ecologia da paisagem: “O grande valor do Código Florestal é que ele leva em conta a espacialização. Ou seja, a gente tem de pensar a questão ecológica em escalas espaciais grandes. Você pode ter dois fragmentos do mesmo tamanho, do mesmo bioma, mas se eles estiverem em campos distintos a biodiversidade é completamente diferente”.
Outra proposta polêmica determina a soma das Áreas de Preservação Permanente (mata ciliar, topos de morros, nascentes de rios etc.) com os fragmentos de ecossistemas naturais para o cômputo fi nal da Reserva Legal. Atualmente, a legislação considera os dois tipos de reserva complementares, porém separados. A mudança representaria perda de 10% do tamanho da Reserva Legal, já que a fração representa a média da área ocupada por APPs nas propriedades rurais em todo o país.
Caminhos de conciliação
Apesar da evidente difi culdade em se fazer aplicar o Código Florestal, algumas iniciativas vêm apresentando bons resultados em promover a adesão dos produtores rurais a uma agenda de sustentabilidade. Essa tendência se deve principalmente à crescente exigência dos mercados internacionais pela observância de critérios socioambientais nas cadeias produtivas. “Hoje você tem setores do meio agrícola, como o de celulose, por exemplo, que não sobrevivem mais sem certifi cação”, garante Ricardo Rodrigues, professor do Departamento de Ciências Biológicas da Esalq.
É graças à demanda pela certifi cação, os chamados “selos verdes”, que Rodrigues vem sendo requisitado para coordenar projetos de adequação ao Código Florestal. A estratégia consiste em aproveitar áreas de baixa aptidão agrícola para recuperação fl orestal, onde também se aplicam o manejo de madeira e a exploração de plantas medicinais e frutíferas. Além disso, promove-se a ligação entre fragmentos de mata nativa na fazenda por meio de corredores ecológicos, aumentando a RL. O que eventualmente faltar para atingir o percentual mínimo é compensado fora da propriedade. “As pessoas perceberam que, comprando pequenas áreas naturais, conseguem fazer a compensação ambiental. Isso em ganho de mercado e marketing é muito mais signifi cativo que o lucro que se teria não fazendo a regularização”, diz Rodrigues.
Em Mato Grosso, a ONG The Nature Conservancy (TNC) lançou em dezembro do ano passado o projeto Soja Mais Verde. Trata-se de um fundo para regularização do setor no estado, com recursos da Associação dos Produtores de Soja do Mato Grosso (Aprosoja) e da própria TNC. As entidades entraram com US$ 1 milhão cada. A meta é chegar a US$ 15 milhões. O capital será investido em georreferenciamento e recuperação de APPs e RL em 3.500 propriedades ao longo de quatro anos.
Segundo a coordenadora nacional da TNC, Ana Cristina Barros, o projeto é um empurrão que se pretende auto-sustentável no futuro: “Quando o mecanismo não existe, você tem um custo inicial de transação. Mas a gente espera que, com o tempo, esses custos sejam incorporados pela própria cadeia produtiva. O consumidor e os intermediários podem pagar um pouco mais pelo valor agregado e pela vantagem competitiva. Aos poucos, o que se vê é esse ônus se transformando numa oportunidade de negócio. Mas não majoritariamente, claro. Se fosse, a discussão no Congresso seria muito mais fácil…”
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