A União Européia, responsável pelo desfecho da reunião das partes da Convenção da ONU sobre Mudança Climática em Bali, em dezembro, é líder no assunto, mas não obterá compromissos antes da eleição nos Estados Unidos, diz Eduardo Viola, professor titular do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Depois, será preciso persuadir China e Índia a adotar metas de redução de emissões de gases de efeito estufa. O Brasil vem a reboque, preso a uma aliança com a vanguarda da energia suja. Perde a chance de ganhar soft power e encabeçar a transição para a economia de baixo carbono. Viola, entretanto, vê no processo de negociação a oportunidade histórica de criar instituições eficazes para o mundo globalizado.
Por Flavia Pardini
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A reunião das partes da Convenção do Clima, em dezembro em Bali, foi emocionalmente carregada e terminou com os EUA acatando o consenso internacional. O que sai de prático da reunião?
De prático, quase nada. O pontochave é chegar a um acordo global que permita efetivamente reduzir as emissões de carbono, que crescem 3% ao ano. Os únicos que fazem esforços de mitigação são a União Européia (UE) — 27 países — e o Japão. O resto, ou está fora das metas do Protocolo de Kyoto, ou está dentro, mas não cumpre as metas, como o Canadá, ou tem queda das emissões por razões que não o esforço de mitigação, como o colapso econômico nos anos 90 na Rússia. Países que representam apenas 20% das emissões globais — a UE e o Japão — têm um Estado de Direito de internalização da mitigação da mudança climática. O resto está em processo de contínuo crescimento de emissões, inclusive o Brasil.
Para que serviu a reunião, então?
Para consolidar a opinião pública internacional sobre a importância da mudança climática. Consolidou um caminho de mudança da administração Bush na percepção do problema; não na tomada de medidas concretas ou na mudança prática na posição americana, isso só vai acontecer com o próximo presidente dos EUA. Mas hoje a opinião pública mundial, que é sempre a população educada, diz: “A mudança climática é umaquestão central para a humanidade”. Ao mesmo tempo, estamos longe de construir uma nova arquitetura global de mitigação. Para isso é preciso um acordo entre os grandes emissores de carbono.
Foi aprovado um “mapa do caminho”. O que é?
Ele diz que, de um lado, os países desenvolvidos têm de fazer esforços mais concentrados para reduzir emissões e, de outro, os países de renda média, como o Brasil e a China, têm de fazer esforços para verificar e monitorar, também no caminho da mitigação da mudança climática. Esforço que nos últimos três anos o Brasil tem feito, mas que a China nem remotamente faz. O mapa diz: a partir de agora começam negociações práticas, concretas, para se chegar a um acordo no fim de 2009. O importante desta data é que envolve o próximo presidente dos EUA. A posição decisiva no mundo é a dos EUA, da China e da Índia, e da UE. São os super emissores, e deles apenas a UE tem Estado de Direito de mitigação da mudança climática. As emissões da China são as que mais rapidamente crescem, correspondentes ao crescimento da economia, muito intensiva em carbono, de baixa eficiência energética. Depois temos o círculo dos grandes emissores: Rússia, Brasil, Japão, México, África do Sul, Canadá, Austrália, Coréia do Sul, Indonésia, Arábia Saudita e Irã. Um acordo que envolvesse esses 15 países seria decisivo, porque representam 90% das emissões globais. Esse é o quadro real das relações internacionais. Muitas vezes a terminologia da ONU não ajuda, porque dá a entender que cada país tem importância igual e, obviamente, é totalmente diferente.
Há relatos de que o mapa indicou as porcentagens que os esforços devem atingir: redução das emissões de 25% a 40% sobre os níveis de 1990 até 2020 para os países desenvolvidos e redução das emissões globais em 50% até 2050. A reunião de Bali trouxe metas de compromisso?
Não. Isso é uma posição da UE, com grande liderança da (chanceler alemã) Angela Merkel. Em 2007, de início a Alemanha, depois toda a UE, definiu o limiar de emissões, o tamanho do esforço para que a mudança climática não atinja o nível perigoso, apenas se mantenha no nível incremental. O limite é: o aumento de temperatura não deve superar os 2 graus em relação a 1990 e, para isso, tem de haver uma redução até 2050 de aproximadamente 60% em relação às emissões do ano 2000. Só que elas aumentaram 3% ao ano, e crescemos quase 20% de 2000 até hoje. Esse é o tamanho do problema. A idéia da UE é que o mundo tem de fazer o esforço na direção primeiro da estabilização, que se deveria atingir em torno de 2020, e depois começar a curva de redução. Os países desenvolvidos teriam de reduzir de 25% a 40% até 2020. É o esforço que a UE propõe, corretamente. A UE está dizendo a verdade ao mundo — em relação ao que é preciso fazer para mitigar a mudança climática, não estou falando até onde a UE vai cumprir o que propõe. Os outros países não falam a verdade.
Mas esses percentuais estão colocados como meta?
Não, porque não há acordo. Um acordo global vai ser uma combinação do tamanho do país, as emissões per capita — em que os EUA estão muito mal — e a intensidade de carbono da economia — em que a China está muito mal. O Japão, por exemplo, tem a mais baixa intensidade de carbono do mundo. A economia japonesa produz, mais ou menos, 0,15 tonelada de carbono por mil dólares de PIB, enquanto a UE produz 0,30 e os EUA, 0,40. A economia brasileira produz quase 1 tonelada e a chinesa, pouco mais de 2. As intensidades mais altas são as de alguns países produtores de petróleo.
Nesse contexto de diferenças, a postura do G77 foi importante para o desfecho em Bali? Qual a estratégia dos países em desenvolvimento? Estão divididos?
Eles se dividem muitíssimo. Não concordo com a afirmação de que o G77 (que representa os países em desenvolvimento na ONU) teve participação fundamental em Bali. É a posição oficial do Brasil, mas não a avaliação dos analistas mais sofisticados e independentes.
O que houve de fato?
A UE conseguiu pôr os EUA contra a parede. Os EUA, em ano eleitoral, estão divididos, mas a opinião pública já mudou. O governo Bush não representa mais a opinião pública americana. A UE trabalhou em uma aliança com os democratas. O principal candidato republicano, John McCain, é o mais pró-clima de seu partido. E os democratas, no momento, são muito pró-clima. A UE e os EUA formam o centro do sistema internacional de democracia de mercado, vitorioso da Guerra Fria, são aliados na Otan, sociedades com valores convergentes. Então a UE disse aos EUA: as reuniões que vocês propõem como alternativa são relevantes, mas se tornam uma fraude se vocês continuam com um discurso negativo. Ameaçou não participar e, se a UE não participa, a reunião do Havaí (entre os grandes emissores, proposta por Bush para fim de janeiro) não teria o menor impacto. Isso fez com que os EUA se aproximassem um pouco do mainstream da sociedade mundial. No G77, grande parte dos países, a começar pela China, rejeita a idéia de compromissos de redução. O mundo não vai mitigar a mudança climática se os países de renda média, particularmente a China, não assumirem posição de responsabilidade. A China tem posição quase tão irresponsável quanto a dos EUA, mas o problema é maior porque as emissões dos EUA crescem 0,5% ao ano e as das China, a 7%, 8%. Em Bali, houve avanço por causa da UE, que está liderando o mundo na questão do clima.
Com o que contribuíram os países em desenvolvimento?
Depende do país. A contribuição do Brasil são esforços institucionais, consistentes, pela primeira vez, para reduzir o desmatamento. Mas a posição em Bali foi muito fraca, atrasada em relação a uma visão menos presa à posição histórica do Brasil.
Por quê? O Brasil continua rejeitando metas de compromisso, mas avança na questão das florestas.
Continua negando porque é dependente, está em uma aliança histórica errada com o G77 e depende da China. A diplomacia brasileira hoje é uma diplomacia tributária da visão terceiro-mundista. Os principais aliados do Brasil na questão do clima são China, Índia e o G77. Quando deveriam ser a UE e o Japão, porque o Brasil tem posição favorável na transição para uma economia de baixo carbono. Dos grandes emissores, tem o menor custo de redução de emissões. Cerca de 50% das emissões brasileiras não têm nada a ver com o crescimento econômico, apenas com a tolerância e a acomodação a uma história de uso imediatista dos recursos naturais; 50% das emissões estão ligadas ao desmatamento na Amazônia, que praticamente não gera crescimento econômico, só destruição. O Brasil não precisaria parar todo o desmatamento, apenas o ilegal. Se o Estado de Direito fosse cumprido no Brasil, 80% do desmatamento na Amazônia desapareceria.
Por causa da reserva legal?
Exatamente, porque o desmatamento se faz ilegalmente. O ponto-chave é fazer o desmatamento com eficiência na conversão para fins nobres. Desmatar para fazer hidrelétricas — boas hidrelétricas, como provavelmente serão as do Rio Madeira, não a de Balbina, que é o modelo do desastre — é conversão nobre. Poderia desmatar para a agricultura de alta eficiência, desde que a terra seja boa, e o processo, regulado. Indústria de madeira sustentável, perfeito. Não é deixar a Amazônia como parque, mas ter Estado de Direito, uma política efetiva, racional, não para cessar a conversão, mas para fazê-la em escala pequena e com alta eficiência. De outro lado, o Brasil tem posição favorável, porque 85% da eletricidade vem da energia hidrelétrica. E o etanol de cana é ate agora o único biocombustível de alta eficiência.
Quem define a política brasileira?
A política é controlada pelo Itamaraty, historicamente. Na década de 90, o Brasil teve uma postura inteligente na negociação do Protocolo de Kyoto. Passou de uma idéia que não era viável, a do fundo de desenvolvimento limpo, para o mecanismo de desenvolvimento limpo. O MDL não é uma invenção brasileira como se pensa aqui. É uma invenção conjunta, brasileira e americana. O Brasil defendia não envolver mecanismos de mercado, e os EUA são os grandes defensores dos mecanismos de mercado em todas as áreas da mudança climática. Kyoto, com os mecanismos flexíveis de cap-and-trade, é uma vitória dos mecanismos de mercado, do mercado de carbono para mitigar a mudança climática. Em Kyoto, o Brasil postou-se contrário a estabelecer objetivos de redução, que seriam diferentes para os países de renda média. Se esses países não têm um Estado de Direito que leva a compromisso de redução, e se outros tiverem, todos os investimentos intensivos em carbono vão para lá, porque vivemos em uma economia globalizada. É por isso que o mundo tem de estar em um Estado de Direito de redução de emissões, o que não quer dizer que as reduções seriam iguais para todos. A combinação são metas globais e, ao mesmo tempo, diferenciadas: muito altas para os países desenvolvidos, médias para os países emergentes e de renda média, e muito baixas, de estabilização apenas, para os países pobres. Isso é complexo, porque há diferenças dentro dos blocos. A China tem de ir rapidamente para a estabilização e começar a reduzir emissões daqui a pouco, porque já é um país próspero. Como colocar no mesmo lugar a China — que tem renda per capita de 3,5 mil dólares anuais, satélites artificiais, mísseis intercontinentais e tecnologia sofisticadíssima — e a Bolívia ou a Mongólia, por exemplo? É um absurdo total. Mas a China defende isso, e o Brasil também!
Voltando às negociações de Kyoto, o Brasil defendeu que a questão das florestas ficasse de fora. Por quê?
Tem a ver com o Brasil se sentir impotente em relação a parar o desmatamento e com o fantasma da perda de soberania na Amazônia. O Brasil também é prisioneiro do próprio imaginário histórico: as queimadas são parte intrínseca da história do Brasil, o País se construiu com a agricultura de queimada, e isso criou uma cultura de tolerância ao desmatamento. Esses fatores levaram o Brasil a uma posição errada. Isso foi implicitamente reconhecido pelo Brasil em 2006 na COP de Nairóbi. Se Kyoto tivesse incluído o desmatamento evitado, seria um acordo mais avançado.
Agora o Brasil admite as florestas na negociação, mas rejeita o mecanismo de mercado.
Exatamente. A posição do Brasil em relação ao clima não é a de liderar, está subordinada a uma grande visão de política externa, muito forte no governo Lula. Isso no Ministério das Relações Exteriores, mas não na Fazenda ou no Banco Central, que são diferentes, pregam a modernidade, a economia de mercado. Na política externa, a posição é a favor de alianças Sul-Sul. O problema é manter a aliança com a China e a Índia, quando ela é totalmente obsoleta, particularmente na questão do clima. Como um país de eletricidade limpa se alia com os gigantes da energia suja? É um paradoxo impressionante! Japão, Alemanha, Suécia, Grã-Bretanha, Dinamarca são a vanguarda da energia limpa. E nos aliamos com a vanguarda da energia suja.
Parece que o governo brasileiro e a opinião pública encaravam a questão do clima como um tema menor para o Brasil até recentemente.
Sim. A grande mudança se deu, como no mundo todo, a partir de 2006, um ano decisivo, a partir da acumulação de eventos climáticos extremos, dos quais o mais famoso é o Katrina. E outros fatores, o avanço da ciência, o filme de Al Gore. O Brasil é parte desse curso, não é diferente. Países que já davam importância passaram a dar muito mais, os EUA, que tinham posição contrária, estão mudando. A China mudou também, em 2007.
O exemplo maior é a Austrália? Trocou de governo em grande parte para mudar a política climática e, de cara, assinou o Protocolo de Kyoto.
A mudança na Austrália anuncia o que vai ser a mudança americana. Não por aderir a Kyoto, a mudança americana vai vir pelo lado de liderar uma grande negociação global. A Austrália só pode seguir o mundo, os EUA são o centro do mundo. A mudança australiana é uma síntese do que aconteceu no mundo nos últimos dois anos e um prenúncio do que ainda vem. Voltando ao Brasil, o próprio Lula captou muito bem quão estratégico é para o País que haja uma economia global de biocombustíveis. A diplomacia do etanol é avançada do ponto de vista do interesse nacional, mas esquizofrênica, dissonante com a posição do Brasil de aliado da China e da Índia nas negociações de mudança climática. A diplomacia do etanol levaria totalmente à convergência com a UE e o Japão. O que o Brasil precisa para consolidar a política do etanol é garantir ao mundo que a transição para os biocombustíveis no Brasil, com efeitos mundiais, não vai ser feita no estilo da Indonésia: desmatar para cultivar dendê para fazer biodiesel. Isso não funciona. O Brasil tem terras agricultáveis vastíssimas, não precisa desmatar para produzir etanol. Mas os europeus podem dizer: você aumenta o etanol no Centro-Oeste e Sudeste e empurra a fronteira da soja e da pecuária para a Amazônia. Sim, mas isso se não se cumpre a lei. Se cumprir a lei, tem toda a reserva legal.
Há um projeto de lei em tramitação no Congresso que altera a reserva legal.
Sim, mas o esforço da (ministra do Meio Ambiente) Marina Silva nos últimos anos tem sido importante para — provavelmente, é difícil de afirmar definitivamente — reverter a tendência histórica. Até 2004, houve tolerância com o desmatamento. A partir de 2005 temos uma nova curva de inflexão no caminho da não-tolerância, embora a intensidade, a aceleração e o timing dessa curva seja difícil de afirmar no momento.
É possível tornar Kyoto efetivo em termos de mitigação ou é preciso lançar bases novas, como os EUA propõem com as reuniões dos maiores emissores?
O Protocolo cumpriu parcialmente sua missão histórica, contribuiu para a consciência sobre a mudança climática, a necessidade de mitigação, ensinou ao mundo o que é o mercado de carbono, mas só teve impacto de mitigação em uma pequena região do mundo: a UE e o Japão. O Protocolo não é o caminho consistente para mitigar a mudança climática, mas sim uma nova arquitetura que seja global mesmo. A arena principal vai ser o G8+5 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Rússia, EUA, Grã-Bretanha + África do Sul, Brasil, China, Índia, México), que é composto dos grandes emissores mundiais. A negociação real vai ser no G8+5, mas a decisão vai ser ratificada na Convenção do Clima. Reuniões como as que propõem os EUA no Havaí apontam nessa direção, mas sem a consistência do G8+5, que é uma estrutura consolidada, porém sem valor jurídico como a Convenção do Clima.
O que há por trás da iniciativa de Bush com a reunião do Havaí?
Primeiro, uma mudança de posição, a rendição de Bush à mudança da opinião pública americana e ao consenso mundial. Segundo, é um modo de criar uma estrutura simbólica de justificação. E, terceiro, cria a possibilidade de um avanço porque, ao contrário do que pensa o governo brasileiro, a realidade está aí, está na negociação entre os grandes emissores. O que Bush convoca é isso, só que a posição dele continua atrasada por não admitir a necessidade de metas de redução de emissões. Isso vai mudar com o novo presidente dos EUA, a partir de janeiro de 2009, antes, não. Hillary Clinton, Barack Obama ou John McCain vão, qualquer um deles, mudar significativamente a posição americana na arena mundial. Os três respondem a uma mentalidade e a constituencies que envolvem uma mudança muito forte da posição americana. Não chega a ser a mentalidade de Al Gore, mas é um salto em termos de responsabilidade global por parte dos EUA.
Até 2009 o mundo continua em banho-maria?
De toda maneira, o limite do Road Map de Bali é o fim de 2009. As negociações da Convenção do Clima vão ficar em banho-maria este ano, e a reunião do G8 pode ser importante. Não vai definir nada, mas preparar o caminho, mesmo porque em julho a situação nos EUA vai estar mais definida. A grande questão é a eleição nos EUA. Segundo, a capacidade conjunta de EUA e UE de persuadir e pressionar a China e a Índia a mudar de posição. Esse é o xadrez do mundo. Se a redução do desmatamento se consolida, então o Brasil estará em um curso muito bom, com grande autoridade. Quando mudar a posição dos EUA, o Brasil vai mudar, não há dúvida. É uma pena, pois o Brasil podia ter mudado antes, aumentando seu soft power . O poder de um país no sistema internacional é o da economia e o militar, o chamado hard power , e o prestígio, um poder político, difuso, o soft power . Os EUA perderam dramaticamente soft power durante a administração de Bush, e o novo presidente vai tentar recuperar. Se for o Obama, o impacto será gigantesco porque ele não pertence à elite tradicional americana.
Há incerteza quanto aos efeitos do aquecimento nos ciclos naturais. Há incerteza sobre o comportamento da economia, da população. Há pelo menos a certeza de que o mundo vai negociar uma saída para a questão?
Eu diria que existe a certeza de que o mundo vai fazer uma negociação séria nos próximos anos sobre a mitigação da mudança climática. Existe uma probabilidade média de que ela chegue a um resultado eficaz e eficiente. Há dois anos, eu teria dito que a probabilidade de uma negociação séria era baixa. Hoje é certeza.
Parece que, ao falar de clima, os países levam à mesa de negociação, pela primeira vez, o tema da eqüidade.
Sim, mas não só eqüidade. Se fosse pura eqüidade, o poder mundial não teria importância, todo mundo teria direito às mesmas emissões per capita. Isso não vai acontecer nunca. Se fosse só eficiência e política de poder, as potências nucleares se aliariam e imporiam o congelamento das emissões, todo mundo pára agora e pronto. Também não é isso. A redução das emissões vai ser baseada na combinação dos princípios de eqüidade e eficiência, com o poder diferencial no mundo e o princípio de capacidades. Os EUA jamais aceitarão o princípio de pura eqüidade, pois teriam de reduzir dramaticamente suas emissões. A UE também. À China convém o princípio de eqüidade, ao Brasil também, mas até certo ponto. No momento, se fosse puro per capita, a China seria penalizada. A maioria, os países pobres, seria a favor de pura eqüidade, inclusive porque se poderiam realocar indústrias dos EUA, China, Brasil para Bolívia, Peru, Congo. Agora, o princípio das capacidades é muito importante: o país que tem tecnologia e capacidade maior de produzir com baixa intensidade de carbono precisa ajudar os outros. Daí a responsabilidade do Japão: em termos de transferência de tecnologia, o esforço do Japão teria de ser maior do que o dos EUA, devido a sua alta capacidade.
Idealmente, discute-se o desenvolvimento e sua distribuição no mundo.
Sim, pela primeira vez. A mudança climática é uma espécie de síntese densa das múltiplas dimensões da globalização. Começou como uma questão ambiental, a convocatória da Conferência em 1979, a Convenção do Rio etc. Hoje não é mais ambiental, é uma síntese das principais dimensões da realidade global, do sistema internacional, da economia política global. É uma questão decisiva da economia, da energia, da segurança e do ambiente internacionais. Sintetiza o mundo. No século XXI, pelo menos o que dá para ver no início de 2008, há três questões- chave para a humanidade. A principal, na minha opinião, é a mudança climática. A segunda é a possibilidade de combinação do terrorismo com o uso de armas de destruição em massa, associada ao radicalismo islâmico. E a terceira, a estagnação e a degradação econômica, de qualidade de vida e de governança dos países pobres. Cada vez mais há a divisão em uma humanidade tecnológica e uma não tecnológica. Mas a mudança climática ameaça toda a humanidade, porque o princípio da civilização foi a estabilidade do clima, se ela se quebra, temos uma ameaça geral, produzida pela própria humanidade, não uma ameaça externa, como um asteróide.
É também uma oportunidade histórica?
É a oportunidade histórica de uma grande cooperação, ou seja, de a humanidade dar um salto na sua possibilidade de governança racional. A humanidade se globalizou profundamente, temos uma dissonância entre a intensidade da interdependência tecnológica, econômica e social e a precariedade da governança global, porque os mecanismos de coordenação, de cooperação interestatal são ainda pequenos. É o drama da ONU, que é o único que temos, mas é limitado, quase obsoleto, porque corresponde a um sistema internacional e o mundo é cada vez mais transnacional, há interdependência em todas as dimensões, gerada pela aceleração da globalização e pela transição da sociedade industrial para a sociedade do conhecimento. Não vamos criar um governo mundial, mas precisamos construir instituições globais de alta eficácia, como uma nova arquitetura global para mitigar a mudança climática. No outro momento de desafio histórico, a Guerra Fria, a humanidade mostrou capacidade de aprendizado, conseguiu regular a corrida armamentista, a construção de arsenais nucleares. Na crise dos mísseis cubanos de 1962, houve capacidade de negociar entre os dois grandes para evitar a destruição mútua. É o que me faz ser otimista. A dor é importante para aprender, mas não é preciso a dor absoluta, continuar caminhando até que passemos da mudança climática incremental para a catastrófica em 2040 ou 2050. Podemos mudar o rumo, mas só nos próximos dez anos. Em 2030 ou 2040, vai ser tarde, a ciência diz isso.
A União Européia, responsável pelo desfecho da reunião das partes da Convenção da ONU sobre Mudança Climática em Bali, em dezembro, é líder no assunto, mas não obterá compromissos antes da eleição nos Estados Unidos, diz Eduardo Viola, professor titular do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Depois, será preciso persuadir China e Índia a adotar metas de redução de emissões de gases de efeito estufa. O Brasil vem a reboque, preso a uma aliança com a vanguarda da energia suja. Perde a chance de ganhar soft power e encabeçar a transição para a economia de baixo carbono. Viola, entretanto, vê no processo de negociação a oportunidade histórica de criar instituições eficazes para o mundo globalizado.
Por Flavia Pardini
A reunião das partes da Convenção do Clima, em dezembro em Bali, foi emocionalmente carregada e terminou com os EUA acatando o consenso internacional. O que sai de prático da reunião?
De prático, quase nada. O pontochave é chegar a um acordo global que permita efetivamente reduzir as emissões de carbono, que crescem 3% ao ano. Os únicos que fazem esforços de mitigação são a União Européia (UE) — 27 países — e o Japão. O resto, ou está fora das metas do Protocolo de Kyoto, ou está dentro, mas não cumpre as metas, como o Canadá, ou tem queda das emissões por razões que não o esforço de mitigação, como o colapso econômico nos anos 90 na Rússia. Países que representam apenas 20% das emissões globais — a UE e o Japão — têm um Estado de Direito de internalização da mitigação da mudança climática. O resto está em processo de contínuo crescimento de emissões, inclusive o Brasil.
Para que serviu a reunião, então?
Para consolidar a opinião pública internacional sobre a importância da mudança climática. Consolidou um caminho de mudança da administração Bush na percepção do problema; não na tomada de medidas concretas ou na mudança prática na posição americana, isso só vai acontecer com o próximo presidente dos EUA. Mas hoje a opinião pública mundial, que é sempre a população educada, diz: “A mudança climática é umaquestão central para a humanidade”. Ao mesmo tempo, estamos longe de construir uma nova arquitetura global de mitigação. Para isso é preciso um acordo entre os grandes emissores de carbono.
Foi aprovado um “mapa do caminho”. O que é?
Ele diz que, de um lado, os países desenvolvidos têm de fazer esforços mais concentrados para reduzir emissões e, de outro, os países de renda média, como o Brasil e a China, têm de fazer esforços para verificar e monitorar, também no caminho da mitigação da mudança climática. Esforço que nos últimos três anos o Brasil tem feito, mas que a China nem remotamente faz. O mapa diz: a partir de agora começam negociações práticas, concretas, para se chegar a um acordo no fim de 2009. O importante desta data é que envolve o próximo presidente dos EUA. A posição decisiva no mundo é a dos EUA, da China e da Índia, e da UE. São os super emissores, e deles apenas a UE tem Estado de Direito de mitigação da mudança climática. As emissões da China são as que mais rapidamente crescem, correspondentes ao crescimento da economia, muito intensiva em carbono, de baixa eficiência energética. Depois temos o círculo dos grandes emissores: Rússia, Brasil, Japão, México, África do Sul, Canadá, Austrália, Coréia do Sul, Indonésia, Arábia Saudita e Irã. Um acordo que envolvesse esses 15 países seria decisivo, porque representam 90% das emissões globais. Esse é o quadro real das relações internacionais. Muitas vezes a terminologia da ONU não ajuda, porque dá a entender que cada país tem importância igual e, obviamente, é totalmente diferente.
Há relatos de que o mapa indicou as porcentagens que os esforços devem atingir: redução das emissões de 25% a 40% sobre os níveis de 1990 até 2020 para os países desenvolvidos e redução das emissões globais em 50% até 2050. A reunião de Bali trouxe metas de compromisso?
Não. Isso é uma posição da UE, com grande liderança da (chanceler alemã) Angela Merkel. Em 2007, de início a Alemanha, depois toda a UE, definiu o limiar de emissões, o tamanho do esforço para que a mudança climática não atinja o nível perigoso, apenas se mantenha no nível incremental. O limite é: o aumento de temperatura não deve superar os 2 graus em relação a 1990 e, para isso, tem de haver uma redução até 2050 de aproximadamente 60% em relação às emissões do ano 2000. Só que elas aumentaram 3% ao ano, e crescemos quase 20% de 2000 até hoje. Esse é o tamanho do problema. A idéia da UE é que o mundo tem de fazer o esforço na direção primeiro da estabilização, que se deveria atingir em torno de 2020, e depois começar a curva de redução. Os países desenvolvidos teriam de reduzir de 25% a 40% até 2020. É o esforço que a UE propõe, corretamente. A UE está dizendo a verdade ao mundo — em relação ao que é preciso fazer para mitigar a mudança climática, não estou falando até onde a UE vai cumprir o que propõe. Os outros países não falam a verdade.
Mas esses percentuais estão colocados como meta?
Não, porque não há acordo. Um acordo global vai ser uma combinação do tamanho do país, as emissões per capita — em que os EUA estão muito mal — e a intensidade de carbono da economia — em que a China está muito mal. O Japão, por exemplo, tem a mais baixa intensidade de carbono do mundo. A economia japonesa produz, mais ou menos, 0,15 tonelada de carbono por mil dólares de PIB, enquanto a UE produz 0,30 e os EUA, 0,40. A economia brasileira produz quase 1 tonelada e a chinesa, pouco mais de 2. As intensidades mais altas são as de alguns países produtores de petróleo.
Nesse contexto de diferenças, a postura do G77 foi importante para o desfecho em Bali? Qual a estratégia dos países em desenvolvimento? Estão divididos?
Eles se dividem muitíssimo. Não concordo com a afirmação de que o G77 (que representa os países em desenvolvimento na ONU) teve participação fundamental em Bali. É a posição oficial do Brasil, mas não a avaliação dos analistas mais sofisticados e independentes.
O que houve de fato?
A UE conseguiu pôr os EUA contra a parede. Os EUA, em ano eleitoral, estão divididos, mas a opinião pública já mudou. O governo Bush não representa mais a opinião pública americana. A UE trabalhou em uma aliança com os democratas. O principal candidato republicano, John McCain, é o mais pró-clima de seu partido. E os democratas, no momento, são muito pró-clima. A UE e os EUA formam o centro do sistema internacional de democracia de mercado, vitorioso da Guerra Fria, são aliados na Otan, sociedades com valores convergentes. Então a UE disse aos EUA: as reuniões que vocês propõem como alternativa são relevantes, mas se tornam uma fraude se vocês continuam com um discurso negativo. Ameaçou não participar e, se a UE não participa, a reunião do Havaí (entre os grandes emissores, proposta por Bush para fim de janeiro) não teria o menor impacto. Isso fez com que os EUA se aproximassem um pouco do mainstream da sociedade mundial. No G77, grande parte dos países, a começar pela China, rejeita a idéia de compromissos de redução. O mundo não vai mitigar a mudança climática se os países de renda média, particularmente a China, não assumirem posição de responsabilidade. A China tem posição quase tão irresponsável quanto a dos EUA, mas o problema é maior porque as emissões dos EUA crescem 0,5% ao ano e as das China, a 7%, 8%. Em Bali, houve avanço por causa da UE, que está liderando o mundo na questão do clima.
Com o que contribuíram os países em desenvolvimento?
Depende do país. A contribuição do Brasil são esforços institucionais, consistentes, pela primeira vez, para reduzir o desmatamento. Mas a posição em Bali foi muito fraca, atrasada em relação a uma visão menos presa à posição histórica do Brasil.
Por quê? O Brasil continua rejeitando metas de compromisso, mas avança na questão das florestas.
Continua negando porque é dependente, está em uma aliança histórica errada com o G77 e depende da China. A diplomacia brasileira hoje é uma diplomacia tributária da visão terceiro-mundista. Os principais aliados do Brasil na questão do clima são China, Índia e o G77. Quando deveriam ser a UE e o Japão, porque o Brasil tem posição favorável na transição para uma economia de baixo carbono. Dos grandes emissores, tem o menor custo de redução de emissões. Cerca de 50% das emissões brasileiras não têm nada a ver com o crescimento econômico, apenas com a tolerância e a acomodação a uma história de uso imediatista dos recursos naturais; 50% das emissões estão ligadas ao desmatamento na Amazônia, que praticamente não gera crescimento econômico, só destruição. O Brasil não precisaria parar todo o desmatamento, apenas o ilegal. Se o Estado de Direito fosse cumprido no Brasil, 80% do desmatamento na Amazônia desapareceria.
Por causa da reserva legal?
Exatamente, porque o desmatamento se faz ilegalmente. O ponto-chave é fazer o desmatamento com eficiência na conversão para fins nobres. Desmatar para fazer hidrelétricas — boas hidrelétricas, como provavelmente serão as do Rio Madeira, não a de Balbina, que é o modelo do desastre — é conversão nobre. Poderia desmatar para a agricultura de alta eficiência, desde que a terra seja boa, e o processo, regulado. Indústria de madeira sustentável, perfeito. Não é deixar a Amazônia como parque, mas ter Estado de Direito, uma política efetiva, racional, não para cessar a conversão, mas para fazê-la em escala pequena e com alta eficiência. De outro lado, o Brasil tem posição favorável, porque 85% da eletricidade vem da energia hidrelétrica. E o etanol de cana é ate agora o único biocombustível de alta eficiência.
Quem define a política brasileira?
A política é controlada pelo Itamaraty, historicamente. Na década de 90, o Brasil teve uma postura inteligente na negociação do Protocolo de Kyoto. Passou de uma idéia que não era viável, a do fundo de desenvolvimento limpo, para o mecanismo de desenvolvimento limpo. O MDL não é uma invenção brasileira como se pensa aqui. É uma invenção conjunta, brasileira e americana. O Brasil defendia não envolver mecanismos de mercado, e os EUA são os grandes defensores dos mecanismos de mercado em todas as áreas da mudança climática. Kyoto, com os mecanismos flexíveis de cap-and-trade, é uma vitória dos mecanismos de mercado, do mercado de carbono para mitigar a mudança climática. Em Kyoto, o Brasil postou-se contrário a estabelecer objetivos de redução, que seriam diferentes para os países de renda média. Se esses países não têm um Estado de Direito que leva a compromisso de redução, e se outros tiverem, todos os investimentos intensivos em carbono vão para lá, porque vivemos em uma economia globalizada. É por isso que o mundo tem de estar em um Estado de Direito de redução de emissões, o que não quer dizer que as reduções seriam iguais para todos. A combinação são metas globais e, ao mesmo tempo, diferenciadas: muito altas para os países desenvolvidos, médias para os países emergentes e de renda média, e muito baixas, de estabilização apenas, para os países pobres. Isso é complexo, porque há diferenças dentro dos blocos. A China tem de ir rapidamente para a estabilização e começar a reduzir emissões daqui a pouco, porque já é um país próspero. Como colocar no mesmo lugar a China — que tem renda per capita de 3,5 mil dólares anuais, satélites artificiais, mísseis intercontinentais e tecnologia sofisticadíssima — e a Bolívia ou a Mongólia, por exemplo? É um absurdo total. Mas a China defende isso, e o Brasil também!
Voltando às negociações de Kyoto, o Brasil defendeu que a questão das florestas ficasse de fora. Por quê?
Tem a ver com o Brasil se sentir impotente em relação a parar o desmatamento e com o fantasma da perda de soberania na Amazônia. O Brasil também é prisioneiro do próprio imaginário histórico: as queimadas são parte intrínseca da história do Brasil, o País se construiu com a agricultura de queimada, e isso criou uma cultura de tolerância ao desmatamento. Esses fatores levaram o Brasil a uma posição errada. Isso foi implicitamente reconhecido pelo Brasil em 2006 na COP de Nairóbi. Se Kyoto tivesse incluído o desmatamento evitado, seria um acordo mais avançado.
Agora o Brasil admite as florestas na negociação, mas rejeita o mecanismo de mercado.
Exatamente. A posição do Brasil em relação ao clima não é a de liderar, está subordinada a uma grande visão de política externa, muito forte no governo Lula. Isso no Ministério das Relações Exteriores, mas não na Fazenda ou no Banco Central, que são diferentes, pregam a modernidade, a economia de mercado. Na política externa, a posição é a favor de alianças Sul-Sul. O problema é manter a aliança com a China e a Índia, quando ela é totalmente obsoleta, particularmente na questão do clima. Como um país de eletricidade limpa se alia com os gigantes da energia suja? É um paradoxo impressionante! Japão, Alemanha, Suécia, Grã-Bretanha, Dinamarca são a vanguarda da energia limpa. E nos aliamos com a vanguarda da energia suja.
Parece que o governo brasileiro e a opinião pública encaravam a questão do clima como um tema menor para o Brasil até recentemente.
Sim. A grande mudança se deu, como no mundo todo, a partir de 2006, um ano decisivo, a partir da acumulação de eventos climáticos extremos, dos quais o mais famoso é o Katrina. E outros fatores, o avanço da ciência, o filme de Al Gore. O Brasil é parte desse curso, não é diferente. Países que já davam importância passaram a dar muito mais, os EUA, que tinham posição contrária, estão mudando. A China mudou também, em 2007.
O exemplo maior é a Austrália? Trocou de governo em grande parte para mudar a política climática e, de cara, assinou o Protocolo de Kyoto.
A mudança na Austrália anuncia o que vai ser a mudança americana. Não por aderir a Kyoto, a mudança americana vai vir pelo lado de liderar uma grande negociação global. A Austrália só pode seguir o mundo, os EUA são o centro do mundo. A mudança australiana é uma síntese do que aconteceu no mundo nos últimos dois anos e um prenúncio do que ainda vem. Voltando ao Brasil, o próprio Lula captou muito bem quão estratégico é para o País que haja uma economia global de biocombustíveis. A diplomacia do etanol é avançada do ponto de vista do interesse nacional, mas esquizofrênica, dissonante com a posição do Brasil de aliado da China e da Índia nas negociações de mudança climática. A diplomacia do etanol levaria totalmente à convergência com a UE e o Japão. O que o Brasil precisa para consolidar a política do etanol é garantir ao mundo que a transição para os biocombustíveis no Brasil, com efeitos mundiais, não vai ser feita no estilo da Indonésia: desmatar para cultivar dendê para fazer biodiesel. Isso não funciona. O Brasil tem terras agricultáveis vastíssimas, não precisa desmatar para produzir etanol. Mas os europeus podem dizer: você aumenta o etanol no Centro-Oeste e Sudeste e empurra a fronteira da soja e da pecuária para a Amazônia. Sim, mas isso se não se cumpre a lei. Se cumprir a lei, tem toda a reserva legal.
Há um projeto de lei em tramitação no Congresso que altera a reserva legal.
Sim, mas o esforço da (ministra do Meio Ambiente) Marina Silva nos últimos anos tem sido importante para — provavelmente, é difícil de afirmar definitivamente — reverter a tendência histórica. Até 2004, houve tolerância com o desmatamento. A partir de 2005 temos uma nova curva de inflexão no caminho da não-tolerância, embora a intensidade, a aceleração e o timing dessa curva seja difícil de afirmar no momento.
É possível tornar Kyoto efetivo em termos de mitigação ou é preciso lançar bases novas, como os EUA propõem com as reuniões dos maiores emissores?
O Protocolo cumpriu parcialmente sua missão histórica, contribuiu para a consciência sobre a mudança climática, a necessidade de mitigação, ensinou ao mundo o que é o mercado de carbono, mas só teve impacto de mitigação em uma pequena região do mundo: a UE e o Japão. O Protocolo não é o caminho consistente para mitigar a mudança climática, mas sim uma nova arquitetura que seja global mesmo. A arena principal vai ser o G8+5 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Rússia, EUA, Grã-Bretanha + África do Sul, Brasil, China, Índia, México), que é composto dos grandes emissores mundiais. A negociação real vai ser no G8+5, mas a decisão vai ser ratificada na Convenção do Clima. Reuniões como as que propõem os EUA no Havaí apontam nessa direção, mas sem a consistência do G8+5, que é uma estrutura consolidada, porém sem valor jurídico como a Convenção do Clima.
O que há por trás da iniciativa de Bush com a reunião do Havaí?
Primeiro, uma mudança de posição, a rendição de Bush à mudança da opinião pública americana e ao consenso mundial. Segundo, é um modo de criar uma estrutura simbólica de justificação. E, terceiro, cria a possibilidade de um avanço porque, ao contrário do que pensa o governo brasileiro, a realidade está aí, está na negociação entre os grandes emissores. O que Bush convoca é isso, só que a posição dele continua atrasada por não admitir a necessidade de metas de redução de emissões. Isso vai mudar com o novo presidente dos EUA, a partir de janeiro de 2009, antes, não. Hillary Clinton, Barack Obama ou John McCain vão, qualquer um deles, mudar significativamente a posição americana na arena mundial. Os três respondem a uma mentalidade e a constituencies que envolvem uma mudança muito forte da posição americana. Não chega a ser a mentalidade de Al Gore, mas é um salto em termos de responsabilidade global por parte dos EUA.
Até 2009 o mundo continua em banho-maria?
De toda maneira, o limite do Road Map de Bali é o fim de 2009. As negociações da Convenção do Clima vão ficar em banho-maria este ano, e a reunião do G8 pode ser importante. Não vai definir nada, mas preparar o caminho, mesmo porque em julho a situação nos EUA vai estar mais definida. A grande questão é a eleição nos EUA. Segundo, a capacidade conjunta de EUA e UE de persuadir e pressionar a China e a Índia a mudar de posição. Esse é o xadrez do mundo. Se a redução do desmatamento se consolida, então o Brasil estará em um curso muito bom, com grande autoridade. Quando mudar a posição dos EUA, o Brasil vai mudar, não há dúvida. É uma pena, pois o Brasil podia ter mudado antes, aumentando seu soft power . O poder de um país no sistema internacional é o da economia e o militar, o chamado hard power , e o prestígio, um poder político, difuso, o soft power . Os EUA perderam dramaticamente soft power durante a administração de Bush, e o novo presidente vai tentar recuperar. Se for o Obama, o impacto será gigantesco porque ele não pertence à elite tradicional americana.
Há incerteza quanto aos efeitos do aquecimento nos ciclos naturais. Há incerteza sobre o comportamento da economia, da população. Há pelo menos a certeza de que o mundo vai negociar uma saída para a questão?
Eu diria que existe a certeza de que o mundo vai fazer uma negociação séria nos próximos anos sobre a mitigação da mudança climática. Existe uma probabilidade média de que ela chegue a um resultado eficaz e eficiente. Há dois anos, eu teria dito que a probabilidade de uma negociação séria era baixa. Hoje é certeza.
Parece que, ao falar de clima, os países levam à mesa de negociação, pela primeira vez, o tema da eqüidade.
Sim, mas não só eqüidade. Se fosse pura eqüidade, o poder mundial não teria importância, todo mundo teria direito às mesmas emissões per capita. Isso não vai acontecer nunca. Se fosse só eficiência e política de poder, as potências nucleares se aliariam e imporiam o congelamento das emissões, todo mundo pára agora e pronto. Também não é isso. A redução das emissões vai ser baseada na combinação dos princípios de eqüidade e eficiência, com o poder diferencial no mundo e o princípio de capacidades. Os EUA jamais aceitarão o princípio de pura eqüidade, pois teriam de reduzir dramaticamente suas emissões. A UE também. À China convém o princípio de eqüidade, ao Brasil também, mas até certo ponto. No momento, se fosse puro per capita, a China seria penalizada. A maioria, os países pobres, seria a favor de pura eqüidade, inclusive porque se poderiam realocar indústrias dos EUA, China, Brasil para Bolívia, Peru, Congo. Agora, o princípio das capacidades é muito importante: o país que tem tecnologia e capacidade maior de produzir com baixa intensidade de carbono precisa ajudar os outros. Daí a responsabilidade do Japão: em termos de transferência de tecnologia, o esforço do Japão teria de ser maior do que o dos EUA, devido a sua alta capacidade.
Idealmente, discute-se o desenvolvimento e sua distribuição no mundo.
Sim, pela primeira vez. A mudança climática é uma espécie de síntese densa das múltiplas dimensões da globalização. Começou como uma questão ambiental, a convocatória da Conferência em 1979, a Convenção do Rio etc. Hoje não é mais ambiental, é uma síntese das principais dimensões da realidade global, do sistema internacional, da economia política global. É uma questão decisiva da economia, da energia, da segurança e do ambiente internacionais. Sintetiza o mundo. No século XXI, pelo menos o que dá para ver no início de 2008, há três questões- chave para a humanidade. A principal, na minha opinião, é a mudança climática. A segunda é a possibilidade de combinação do terrorismo com o uso de armas de destruição em massa, associada ao radicalismo islâmico. E a terceira, a estagnação e a degradação econômica, de qualidade de vida e de governança dos países pobres. Cada vez mais há a divisão em uma humanidade tecnológica e uma não tecnológica. Mas a mudança climática ameaça toda a humanidade, porque o princípio da civilização foi a estabilidade do clima, se ela se quebra, temos uma ameaça geral, produzida pela própria humanidade, não uma ameaça externa, como um asteróide.
É também uma oportunidade histórica?
É a oportunidade histórica de uma grande cooperação, ou seja, de a humanidade dar um salto na sua possibilidade de governança racional. A humanidade se globalizou profundamente, temos uma dissonância entre a intensidade da interdependência tecnológica, econômica e social e a precariedade da governança global, porque os mecanismos de coordenação, de cooperação interestatal são ainda pequenos. É o drama da ONU, que é o único que temos, mas é limitado, quase obsoleto, porque corresponde a um sistema internacional e o mundo é cada vez mais transnacional, há interdependência em todas as dimensões, gerada pela aceleração da globalização e pela transição da sociedade industrial para a sociedade do conhecimento. Não vamos criar um governo mundial, mas precisamos construir instituições globais de alta eficácia, como uma nova arquitetura global para mitigar a mudança climática. No outro momento de desafio histórico, a Guerra Fria, a humanidade mostrou capacidade de aprendizado, conseguiu regular a corrida armamentista, a construção de arsenais nucleares. Na crise dos mísseis cubanos de 1962, houve capacidade de negociar entre os dois grandes para evitar a destruição mútua. É o que me faz ser otimista. A dor é importante para aprender, mas não é preciso a dor absoluta, continuar caminhando até que passemos da mudança climática incremental para a catastrófica em 2040 ou 2050. Podemos mudar o rumo, mas só nos próximos dez anos. Em 2030 ou 2040, vai ser tarde, a ciência diz isso.
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