O Brasil também é Cerrado, Caatinga, Pantanal, Pampa, litoral. Embora intricados na identidade dos brasileiros, e tão ou mais ameaçados do que a Amazônia, esses biomas ainda são ilustres desconhecidos
Por Flavia Pardini Fotos Bruno Bernardi
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A Amazônia está em todo lugar: nas manchetes dos jornais, na pauta de reuniões ministeriais, no centro de negociações internacionais, na boca do povo. Difícil localizar exatamente de onde vem o fascínio da grande floresta tropical úmida, se da percepção estrangeira de que se trata de um ativo da humanidade, se do fetiche que sua biodiversidade exerce sobre os homens ou se da perenidade de um discurso romântico que valoriza os lugares selvagens. Fato é que a Amazônia concentra população pequena se comparada à que se espalha pelos outros seis biomas, muitas vezes alheia à influência desses ecossistemas na identidade brasileira.
Muito além da Amazônia, o Brasil também é Cerrado, Caatinga, Pantanal, Pampa, Mata Atlântica e uma extensa Zona Costeira, embora as agruras de boa parte desses biomas, resultado de séculos de ocupação humana, pouco apareçam na mídia. E não são poucas: do desmatamento acelerado do Cerrado – estima- se que o ritmo seja duas vezes mais rápido do que na Amazônia (reportagem à pág. 24) – à transformação dos Campos Sulinos em monoculturas de eucalipto (pág. 42), passando pela desertificação da Caatinga (pág. 36), o assoreamento dos rios do Pantanal (pág. 30) e a ocupação desordenada do litoral (artigo à pág. 48).
A urgência, entretanto, recai sobre o que é percebido como “puro”. “Historicamente, quando se soma tudo o que foi feito, o bioma menos alterado é a Amazônia”, diz Carlos Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Tanto que, para o público internacional, a Amazônia representa o arquétipo do “selvagem”, avalia Erle Ellis, pesquisador da Universidade de Maryland, Baltimore County, e autor de um mapa dos biomas do mundo que leva em conta as alterações feitas pelo homem (reportagem à pág. 48).
“O olhar internacional não sabe da existência de nada no Brasil que não seja a Amazônia”, opina o biólogo Claudio Valladares Padua, vice-presidente do Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê), ONG que atua no Pontal do Paranapanema, em São Paulo. “Claro que há pesquisadores internacionais que conhecem o Brasil tão bem quanto os brasileiros, mas em geralos doadores de recursos das grandes ONGs só vêem a Amazônia. Naturalmente, canalizam os recursos para lá.”
“O carisma da floresta tropical é merecido, mas também é construído”, afi rma José Augusto Pádua, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “A imponência estética da floresta chama a atenção das pessoas e há também a questão da biodiversidade. Mas ela não deve ser um fetiche, não se deve fazer uma hierarquia dos biomas na qual a quantidade de biodiversidade determina se é importante ou não.”
De Lampião a Erico Verissimo
Relevante, na visão do historiador, é perceber que o homem molda a natureza, mas também é moldado por ela, e, assim, forja-se um território. Que o diga a cultura pecuária que percorre o Brasil e a identidade de nordestinos a gaúchos.
Trazido pelos portugueses, junto a galinhas, cavalos, porcos e outros animais desconhecidos da natureza local, o boi se transformou em “uma arma ecológica de ocupação do território”, segundo Pádua. Ele não gosta da floresta, cujo solo e o ambiente fechado dificultam a movimentação, mas de ecossistemas abertos, com menor densidade arbórea. E assim os colonizadores tocaram o gado para os cerrados e os campos, dando início a muito do que hoje se conhece das culturas regionais. “Nas áreas de pecuária na formação do Brasil há essa conjunção de ecologia e cultura”, afirma o historiador. “Na Caatinga tem a pecuária do Antônio Conselheiro, do Lampião, do cangaceiro, a conquista do sertão nordestino. No Cerrado, é a pecuária do Guimarães Rosa, o tipo humano dos Gerais. E lá no Pampa, a pecuária do Érico Veríssimo, da campanha gaúcha.” Todas brasileiras, cada uma com suas particularidades, entre elas as condições ecológicas. Mesmo na Amazônia, a pecuária tradicional só foi possível em áreas abertas como os campos naturais do Marajó e de Roraima. Apenas recentemente o homem passou a fazer o que nunca fez antes: retirar a floresta para introduzir o gado, valendose, para isso, de capital e tecnologia.
Ao examinar o misto de ecologia e cultura é possível traduzir os biomas para além de suas fisionomias, diz Pádua. “Há a tendência na História de tomar o território como uma coisa abstrata, vazia, arcabouço para a ação humana. Na verdade, é uma campos, dando início a muito do que hoje se conhece das culturas regionais.
“Nas áreas de pecuária na formação do Brasil há essa conjunção de ecologia e cultura”, afirma o historiador. “Na Caatinga tem a pecuária do Antônio Conselheiro, do Lampião, do cangaceiro, a conquista do sertão nordestino. No Cerrado, é a pecuária do Guimarães Rosa, o tipo humano dos Gerais. E lá no Pampa, a pecuária do Érico Veríssimo, da campanha gaúcha.” Todas brasileiras, cada uma com suas particularidades, entre elas as condições ecológicas.
Mesmo na Amazônia, a pecuária tradicional só foi possível em áreas abertas como os campos naturais do Marajó e de Roraima. Apenas recentemente o homem passou a fazer o que nunca fez antes: retirar a floresta para introduzir o gado, valendose, para isso, de capital e tecnologia.
Ao examinar o misto de ecologia e cultura é possível traduzir os biomas para além de suas fisionomias, diz Pádua. “Há a tendência na História de tomar o território como uma coisa abstrata, vazia, arcabouço para a ação humana. Na verdade, é uma realidade cheia de características próprias, fauna e flora próprias. No Brasil, a diversidade ecológica do território é muito importante para a dinâmica de ocupação.” Por outro lado, o homem deixa sua marca, nem sempre de destruição, lembra Pádua. A concentração de araucárias em regiões da Mata Atlântica, por exemplo, é apontada como resultado da dispersão pelo homem – de caçadores coletores a agricultores modernos – devido à grande utilidade da árvore e seu fruto. A mesma hipótese é aventada para a concentração de palmeiras de açaí na várzea amazônica.
Ilustres desconhecidos
Apontada como razão para conservar este ou aquele bioma, a biodiversidade é comum às regiões tropicais, mas elevada a potências quando se trata do Brasil. “O Cerrado é a savana mais rica em biodiversidade e biomassa do mundo, muito mais do que as africanas. A Caatinga é a única região que tem a expressão da biodiversidade semi-árida tropical”, cita Nobre.
Esses são também os biomas menos conhecidos, segundo a Síntese do Conhecimento Atual da Biodiversidade Brasileira, elaborada pelos ecólogos Thomas Lewinsohn e Paulo Inácio Prado e publicada pelo Ministério do Meio Ambiente em 2005. Baseada em entrevistas com especialistas, a síntese mostra que o conhecimento da diversidade de todos os biomas é inadequado. A exceção é a Mata Atlântica, não à toa, já que as regiões Sul e Sudeste concentram 80% dos pesquisadores e das coleções biológicas – estas tão mal distribuídas que apenas sete instituições, sendo cinco do Sul e Sudeste, abrigam metade das coleções consideradas representativas.
A Caatinga é o bioma menos conhecido, seguida do Pantanal. “Uma exceção inesperada são o Pinheiral e os Campos Sulinos, que, embora próximos às maiores concentrações de instituições e pesquisadores no Brasil, ainda oferecem lacunas de conhecimento preocupantes em vista da extensão de sua substituição agroflorestal”, escreveram Lewinsohn e Prado. A Região Norte parece-se mais com o Sul e Sudeste graças à “história antiga de convênios com instituições do Sul e Sudeste e, principalmente, do exterior”, aponta a síntese.
Um levantamento do cadastro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – que inclui bolsas de estudo concedidas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e fundações de amparo à pesquisa – mostra que a Amazônia domina as pesquisas em curso no País. No total, 434 grupos descrevem sua linha como referente à Amazônia, enquanto 173 dedicam-se ao Cerrado, 101 à Mata Atlântica, 49 ao Pantanal, 45 à Caatinga e 2 aos Campos Sulinos.
Talvez reflexo do desconhecimento da biodiversidade brasileira, Marcelo Ximenes Bizerril, da Universidade de Brasília, detectou que o fetiche de uma amostra dos alunos do ensino médio do Distrito Federal é a biodiversidade da África (pág. 28), ambiente provavelmente mais selvagem do que a floresta tropical no imaginário de quem vive logo ao sul da Amazônia.
Se dependesse só de ambientes selvagens, porém, a tão desejada biodiversidade talvez tivesse desaparecido, já que três quartos da superfície terrestre é ocupada pelo homem. Entretanto, estudos recentes revelam que mesmo na fragmentada paisagem da Mata Atlântica, se preservadas porções de mata nativa em uma matriz heterogênea de ambientes manejados pelo homem, é possível conservar boa parte da biodiversidade (Ensaio à pág. 56).
Paisagens saudáveis
Nem sempre é preciso extrair o homem para conservar a natureza. “É possívelocupar a Amazônia, a lei permite ocupar parte dela. Mas onde? Como? É preciso ter regras claras, não em escala grande, dizer 20% ou 80%, porque assim se trata tudo uniformemente”, diz Claudio Padua, referindo-se aos percentuais de reserva legal previstos pelo Código Florestal para diferentes biomas. “É preciso olhar em um grau mais fino da escala, fazer um zoneamento que seja um trabalho na paisagem.”
E, ao levar em conta a presença e a ação humana em todos os biomas, atentar para a importância dos serviços ambientais para a sobrevivência do próprio homem. Hoje, por exemplo, só a Amazônia conta com o monitoramento sistemático, ano a ano, das mudanças na cobertura vegetal, que resultam em emissões de gases de efeito estufa e contribuem para o aquecimento global – que por sua vez pode alterar as características dos biomas (quadro na página ao lado). Apesar do alto custo, Nobre acredita que em cinco anos o Inpe contará com sistema semelhante para cada um dos biomas brasileiros.
“É preciso que haja muita regulação, controle sobre a ação humana na paisagem”, concorda José Augusto Pádua. “O critério não deve ser preservar o puro, mas construir e manter paisagens ecologicamente saudáveis, entrar em um nível mais profundo, estrutural, cuidar da circulação de água, da capacidade de reprodução dos solos e da biodiversidade.”
A Paisagem como herança
Da implicância com o sertão a espaços agrários, um legado para o futuro
A paisagem é uma herança em todo o sentido da palavra: de processos fi siográficos e biológicos, e patrimônio coletivo dos povos que a receberam como território de atuação de suas comunidades. Com base nessa premissa, Aziz Ab’Sáber, um dos geógrafos mais respeitados do País, elaborou um estudo sobre os biomas brasileiros, por ele chamados de “domínios de natureza” – classificados em seis, além de faixas de transição (mapa acima).
Os Domínios de Natureza no Brasil – potencialidades paisagísticas, continuamente reeditado desde 2003, é uma das referências para entender as complexas relações entre os aspectos físicos de cada bioma e as variáveis humanas que os transformam.
Para isso Ab’Sáber remete ao cientista político Walder de Góes, que já em 1973 escreveu: “Nem o ecologismo nem o economismo. O ponto de equilíbrio será encontrado na planificação racional que compatibilize os objetivos de crescimento da economia com a proteção e o desenvolvimento da constelação de recursos naturais”. Na visão do geógrafo, nunca houve tanta oportunidade “quanto no fim do terceiro quartel do século XX” para trabalhar no sentido de evitar a descapitalização de velhas heranças da natureza.
Entretanto, a supressão da vegetação em troca de grandes espaços agrários tem sido até hoje a fórmula experimentada pelos países tropicais em vias de desenvolvimento – salvo exemplos como o da cultura de cacau sombreada pela Mata Atlântica, no Sul da Bahia.
Tal processo de transformação teria começado já a partir de observadores estrangeiros: habituados às fortes diferenças de paisagens em curtos espaços no território europeu, consideraram monótonas as grandes extensões dos biomas brasileiros, sem muita sensibilidade para perceber as sutis variações de padrões paisagísticos e ecológicos. Para Ab’Sáber, ainda “há como que uma implicância atávica pelos sertões florestados extensivos que dificultaram a vida dos primeiros povoadores”. Ao mesmo tempo, aprenderam-se com rapidez as técnicas de desmate e queimada, para fazer a grande “limpeza” na paisagem, e também na sua herança. – por Amália Safatle
Em um mundo mais quente
O cerrado cresceria, a floresta encolheria e um semideserto nasceria
A área de um bioma agrega comunidades semelhantes de plantas e animais e é determinada pelo clima e pelas condições do solo. “Para ter floresta tropical é preciso ser quente e ter água no solo durante todo o ano”, explica Carlos Nobre, do Inpe. As savanas tropicais, como o Cerrado, gostam de calor e longas estações secas. O clima úmido e o relevo diversificado explicam as variações na vegetação da Mata Atlântica – floresta subtropical que originalmente se estendia pela costa, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, e entrava para o interior, chegando ao Paraguai e à Argentina. Floresta tropical seca, a Caatinga se adaptou ao parco regime de chuvas e ao solo pedregoso do Nordeste. A qualidade dos solos é o que determina a região dominada pelo Pampa, ou Campos Sulinos, cujas características climáticas por si só permitiriam a formação da mata subtropical, na visão de alguns especialistas.
Mudanças no clima, portanto, afetam diretamente os biomas – no caso brasileiro, boa parte do território povoado. Daí a grande preocupação com as previsões de aquecimento devido às emissões de gases de efeito estufa pelas atividades humanas. “O bioma amazônico é muito sensível, o Semi-árido também”, informa Nobre, acrescentando que a tendência é parte da floresta transformar-se em savana e da Caatinga tornar-se um semideserto. O Cerrado seria beneficiado, podendo estender-se mais ao Sul, mas com o risco de perder biodiversidade. A Mata Atlântica poderia se expandir para regiões mais úmidas do Pampa, enquanto no Nordeste o que resta da floresta subtropical correria o risco de desaparecer.
As pesquisas não permitem ainda prever com segurança as alterações na precipitação de chuvas. Nobre informa que vários grupos estudam o assunto, mas arrisca que a maior probabilidade é de mudanças no padrão de chuvas no Sul – Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Uruguai e Norte da Argentina – do que no Sudeste ou Centro-Oeste do Brasil. Apenas com previsões mais detalhadas para o ciclo hidrológico será possível indicar o que pode ocorrer com o Pantanal, que guarda as características do Cerrado, mas é periodicamente inundado, diz o pesquisador.