Por Amália safatle
É de um caldo único que a sociedade vai conseguir criar novas formas de se organizar, com base em uma recombinação de tramas, em busca de objetivos comuns
Em Poemas Rupestres, Manoel de Barros escreve sobre o menino-manoel, que, por viver muitos anos dentro do mato, pegou um olhar de pássaro. Por forma que enxergava as coisas todas por igual, inominadas. / Água ainda não era a palavra água. / Pedra não era ainda a palavra pedra. / As palavras eram livres de gramática e podiam ficar em qualquer posição. / Por forma que o menino podia inaugurar. / Podia dar às pedras costumes de flor. Podia dar ao canto formato de sol. E assim redesenhar.
Que outra vida é essa que os meninos podem inaugurar? Em um poema mais adiante, Manoel pergunta: E agora / que fazer / com esta manhã desabrochada a pássaros? Sim, porque as possibilidades são do tamanho das manhãs. É como se o mundo abrisse janelas para a humanidade sair da enrascada em que meteu a todos.
Pedras, águas, flores são as primeiras a dar as pistas. Pergunte à natureza o que ela faria e terá as respostas. Por exemplo, produzir cimento valendo-se da tecnologia dos corais, desenvolvida e aperfeiçoada em bilhões de anos, sem poluição ou resíduos, sem impactos, sem patentes – um conhecimento livre e comum a todos.
Na palavra “comum” está mais uma senha para resolver problemas complexos. Natureza é o significado de comum levado às últimas conseqüências, uma vez que existe para todos e por todos. Compartilhar conhecimentos, criar e fortalecer relacionamentos em comunidades, cooperar – ou operar em rede – é o que a natureza não só faria, como faz. E é o que permeia boa parte dos casos apresentados e das vozes ouvidas nesta edição, que apontam formas e visões para a sociedade se reorganizar, alterar traços de seu desenho e se reprojetar diante de uma realidade pontuada por graves crises ambientais, sociais e econômicas.
Com isso, amplia-se o sentido de design. “Essa noção, que sempre foi muito tecnológica e business oriented (voltada para os negócios), também pode trazer soluções para temas como mobilidade, habitação, Educação, saúde”, diz Carla Cipolla, pesquisadora do Desis, um grupo da Universidade Federal do Rio de Janeiro que estuda o design de serviços e a inovação social em conjunto com a escola Politecnico de Milão – representada pelo especialista Ezio Manzini, orientador de Carla. “Enquanto o design de produtos dialoga sobretudo com o engenheiro, o de serviços interage com cientistas sociais, filósofos, psicólogos”, explica.
Mas o design pode ir ainda além do campo social. Envolver economistas, artistas, educadores, governantes, estudantes, blogueiros, ambientalistas, entre tantos outros. Para resolver problemas complexos, é hora de todos saírem de seus quadrados e se recombinarem em novas tramas, tendo em vista objetivos comuns.
Chips e corais
Como objeto de estudo no Brasil, na China e na Índia, Carla tem buscado experiências do que chama de atuação primária, ou seja, organizações que partam espontaneamente das bases, sem assistencialismo ou direcionamentos ditados de cima. Assim como os corais e toda a natureza se auto-organizaram por bilhões de anos e resultam de uma seleção natural dos acertos, a pesquisadora explica que o fato de se emergir da base significa que o “chip” já foi mil vezes testado na sociedade, e funciona.
A pesquisadora cita um exemplo, em Milão, que partiu da organização das mães imigrantes, ao criar, nas próprias casas, creches para compartilhar o cuidado dos filhos. Isso atende a diversas demandas, a da mãe que trabalha fora e precisa do serviço a preços acessíveis, e a das desempregadas que precisam de um meio de vida. São espaços que podem servir também às mães italianas. Isso com base em um relacionamento de confiança, e sem precisar construir novas creches, o que resultaria em impactos ambientais.
“Em um primeiro nível, a iniciativa é local, depois pode até ser objeto de uma política pública que incentive a prática”, diz Carla. Trata-se de um tipo de compartilhamento que, no Brasil, é mais freqüente nas classes mais baixas, diz Aguinaldo dos Santos, professor da Universidade Federal do Paraná, ao dar como exemplo o uso comum de máquinas de costura, de bicicletas, de máquinas de lavar roupa. Ainda que seja inicialmente uma resposta às privações, estreita laços comunitários, no mesmo espírito de “doação” que se tem, por exemplo, nos mutirões das favelas, citados por Claudio Prado, presidente do Laboratório Brasileiro de Cultura Digital, em entrevista nesta edição.
Já nas classes mais abonadas ou países ricos, o compartilhamento tem se movido pela preocupação em reduzir o consumo de recursos naturais e energéticos do planeta. O que, segundo Santos, começa a criar novos mercados, como condomínios verticais ou Horizontais com apelo de vendas justamente no uso conjunto de escritórios de trabalho, de lavanderia, de bicicletas. Isso modifica profundamente a natureza do que é vendido: não mais produtos, e sim serviços, ou suas funções finais – o que tem inclusive a capacidade de gerar mais empregos, observa.
Então, em vez de se tornar proprietário de um carro, compra-se transporte por meio do car-sharing, em que veículos disponíveis em diversos pontos da cidade podem ser usados ao longo do dia por um grande número de pessoas. Na Holanda, em vez de adquirir um laptop, é possível comprar o “uso” dele, um serviço vendido juntamente com o software, o treinamento para usá-lo e as atualizações. E assim por diante, em uma desmaterialização inteligente da economia.
A Embrart é a maior empresa do setor de embalagens do Paraná, mas deixou de oferecer esse produto: vende o serviço de proteção de conteúdo. “Com essa mudança, a empresa automaticamente passa a ter interesse em aumentar o ciclo de vida da embalagem e em reciclá-la, alterando a lógica de consumo”, diz Santos.
São exemplos que o professor enquadra em um terceiro nível evolutivo do design. O primeiro, com o qual inicialmente começou a trabalhar na UFPR, é o da reciclagem, que atua sobre os sintomas, e não a causa de problemas socioambientais. Nesse estágio, há uma intervenção sobre algo já existente, de modo a reduzir os impactos ao final do ciclo de vida. O segundo nível corresponde ao ecodesign, são produtos já concebidos de forma mais “resolvida”, para causar menos impacto, da origem ao descarte.
Já o quarto nível, que vai além da idéia de serviços e de desmaterialização da economia, trata-se da revisão do estilo de vida e de valores, de busca de felicidade e bem-estar. É criar outros laços e espaços de convivência, por exemplo, cozinhando com os amigos em casa em vez de ir a uma rede de fast-food. “É fazer pão com o meu filho no fogão a lenha, em vez de comprar comida congelada”, diz Santos. Ou seja, puro relacionamento.
Compartilhamento 2.0
No mundo natural, relacionamento significa que todo o sistema participa, formando um caldo único. Começa entre pares, que se ligam a outros, e então se formam comunidades, grupos, cadeias, ecossistemas.
A reportagem nessa edição mostra como a tecnologia peer to peer cria uma propícia plataforma para isso, à medida que horizontaliza o processamento e a distribuição de dados, e possibilita a cooperação livre entre os participantes, de modo a satisfazer aspirações em comum.
Também começa em duplas a grande “conversação” mundial promovida pelos encontros do Global Forum, em que pessoas de diversas regiões, idades e áreas de conhecimento compartilham idéias, experiências de vidas, visões e traçam ações na direção de uma sociedade mais sustentável. Esses encontros se valem da construção coletiva de um futuro que a maioria quer criar.
Que podem ser projetados no círculo de uma comunidade, de uma empresa, de uma organização, de uma cidade. A reportagem nesta edição mostra um futuro em que cidades crescem junto com florestas, em equilíbrio. Depois da tragédia ambiental que desabou sobre Santa Catarina, as autoridades falam em repensar a ocupação do solo, o plano diretor, os próprios municípios.
Por que o redesenho não foi proposto antes de tantas mortes, e construído coletivamente, entre moradores e autoridades? É nessas construções coletivas que o eu se transforma em nós – quem sabe o mesmo nós do poderoso Yes, we can. Também são situações em que todos podem exercer seu protagonismo.
Poucas organizações desenvolveram a noção de protagonismo pessoal como o Museu da Pessoa. O nome já denuncia, e o sobrenome reforça: Rede Internacional de Histórias de Vida. Parte do princípio de que todo ser humano, anônimo ou célebre, tem o direito de eternizar sua história e integrá-la à memória social.
Quando nasceu, em 1991, não havia internet, mas já existia a aspiração de usar plataformas digitais, e então a entidade registrava as histórias das pessoas em CD-ROM. “O museu conceitualmente nasceu 2.0, com o espírito de que a história de um inspira a do outro”, diz a fundadora, Karen Worcman.
Karen mal podia imaginar que anos depois a tecnologia permitiria a criação e propagação de histórias de vida, de forma totalmente interativa, por meio dos blogs. “A proposta do museu, quando o criamos, acabou acontecendo”, diz. E fora dele. Por isso, todo o desenvolvimento da internet tem levado a entidade, diz ela, a uma discussão interna sobre seu sentido e seu papel.
Tudo e nada
Uma conclusão, diz Karen, é que cabe ao museu agora exercer papéis de mediação e curadoria. “O democrático e o colaborativo proporcionados pelo 2.0 não necessariamente são interessantes”, pondera Karen. A seu ver, quando todo mundo passa a ser gerador de conteúdo, somente mediações permitem criar uma narrativa a partir das histórias, em contraponto à fragmentação do saber e do conhecimento. “Isso porque tudo e nada são praticamente a mesma coisa.”
Como diz o historiador Nicolau Sevcenko, em entrevista nesta edição, as tecnologias não são ruins ou boas, o que importa é o uso que se faz delas. A princípio, a world wide web, como espaço imaterial, proporciona a todos direitos iguais de ocupação, como enfatiza Prado, do Laboratório Brasileiro de Cultura Digital, o que subverte valores da sociedade de consumo.
Mas isso até que outras forças entrem em cena, ressalva o historiador: “Embora constitua ferramenta da maior importância para uma democracia expandida, a internet é afetada pela publicidade, com uma agressividade nunca vista antes”. Quem tem maior poder econômico acaba comprando maior visibilidade e acesso. De qualquer forma, a internet traz nas bases um conceito transformador, ao permitir, de um jeito simples, a livre expressão de qualquer pessoa, de qualquer parte.
Esse mesmo espírito habita as rodas dos saraus literários e artísticos realizados em cidades como São Paulo. São eventos culturais que brotam sem projeto, editalou Lei Rouanet. Podem nascer no apartamento de um artista e ganhar as ruas, em movimento contrário ao da crescente privatização do espaço público – fenômeno que tem corrompido a própria idéia de democracia, como diz Sevcenko.
Somente em espaços comuns e abertos para as manifestações a arte pode propor redesenhos e transformações na sociedade, por meio da representação e da interação popular. Na política, o redesenho também implica combater a estrutura piramidal,diz a vereadora (com mandato até 31 de dezembro) Soninha Francine (leia mais na entrevista). Ela, que concorreu pelo PPS à prefeitura de São Paulo nas últimas eleições, visualiza novas formas de organização política, em sintonia com os movimentos sociais, que caminham em direção às causas nas quais acreditam, em vez de se moverem apenas na busca da vitória sobre o adversário.
Essa idéia de cooperação, em vez da de competição, está até nos radares da dança contemporânea. Ao mesmo tempo reflexo das angústias atuais e projeção daquilo que se anseia, a arte entende que as hierarquias não cabem mais. É desnecessário, por exemplo, que as artes plásticas imponham-se sobre a dança ou vice-versa. O que surgirá desse redesenho é uma incógnita, o importante é que o público seja instigado. Instigado para inaugurar.