Por Amália Safatle
A ciência cansa de dar argumentos. Mas só a emoção mesmo para nos envolver na defesa de um melhor relacionamento humano e com as demais formas de vida na Terra
Quando a índia Tuíra roçou a lâmina do facão em seu rosto, foi muito medo o que José sentiu.
José Antonio Muniz Lopes, então presidente da Eletronorte, no ano de 1989, e a advertência para que não se construísse uma usina hidrelétrica no Rio Xingu, que vinha a ser Belo Monte. Ao cabo de mais de 20 anos de um escrutínio técnico e científico sobre a barragem, de toda uma argumentação sobre vantagens e desvantagens econômicas, de todo o pesar e sopesar dos impactos do empreendimento e a certeza de que a polêmica história está longe de terminar, a imagem que mais pulsa é a de Tuíra, José e um facão.
Era o pavor sentido na pele de um e a apaixonada ação do outro, na defesa desbragada de sua aldeia, de seus antepassados, de sua natureza, de si mesma. Houve muita verdade aí.
José virou presidente da Eletrobrás, a hidrelétrica inicialmente batizada de “Kararaô” passou a se chamar Belo Monte, mas o grito de guerra que essa palavra indígena ecoa na língua Kayapó persiste, porque a emoção é indelével (1).
(1) Segundo estudo publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences, pessoas com problema de perda de memória esquecem fatos, mas não as emoções e sensações que eles provocaram.
Tamanha foi a pressão contrária, vinda de diversas alas da sociedade, que, na época, arquivou-se a ideia de pôr a usina no rio. Houve muita mobilização aí também.
Mas chega o ano de 2010 e o projeto acaba de ser licitado. As comunidades indígenas que serão profundamente afetadas por Belo Monte – a barragem, a secura, os desvios d’água, a morte de bichos e plantas, a alteração na dinâmica de ocupação humana de toda uma região, a profanação de uma terra que lhes é sagrada – avisam que vão à guerra se preciso for. A alma da palavra Kararaô, que paira desde antes da concepção do empreendimento, enfrentará uma sociedade regida por planos e interesses fortemente orientados por aspectos de ordem política, técnica e econômica (leia mais no artigo Um rio além de seus megawatts nesta edição).
O que será capaz de mobilizar as pessoas nos dias de hoje em torno de Belo Monte e outros embates? O que as faz levantar do sofá em razão do próximo, seja ele o vizinho ou o índio do Xingu, seja o questionável processo de licitação de Belo Monte, seja a população economicamente desfavorecida, a natureza toda, o equilíbrio fino da vida? Essa é uma discussão, sobretudo, ética, entendendo ética como costume, jeito de agir, passível de um julgamento sobre o bem e o mal que as ações de um provocam no outro.
O filósofo e professor da Unicamp Oswaldo Giacoia Junior, em recente artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, resgata o pensamento de Hans Jonas, para quem as éticas tradicionais – antropocêntricas e baseadas em uma concepção instrumental da tecnologia – não estavam à altura das consequências danosas do progresso tecnológico sobre as condições da vida humana na Terra e o futuro das novas gerações. “Jonas propõe uma ética para a civilização tecnológica, capaz de reconhecer para a natureza um direito próprio”, escreve Giacoia.
De fato, na sua aventura evolutiva pela Terra, o ser humano agigantou-se em desenvolvimento tecnológico e científico. Somos um sucesso sob esse ponto de vista. Não por acaso a sociedade moderna cultua e se identifica com os valores que um traço high-tech evoca, como mostra a reportagem Futurismo X futuro, nesta edição.
A ciência é brilhante em produzir dados cada vez mais irrefutáveis sobre o estrago humano sobre a vida no planeta. Grandes dramas sociais persistem e os ambientais se agravam, apesar de todo o acúmulo de riquezas desde os primórdios da civilização. Por que então todo esse conhecimento e essa imensa riqueza não se traduzem em melhora das condições socioambientais na mesma proporção? E o que falta para as pessoas se engajarem em torno de causas essenciais de modo que a realidade seja transformada?
Emoção, emoção, emoção. Raiva, amor, indignação. Envolvimento desde a raiz dos cabelos, respondem, por meio de outras palavras, pessoas ouvidas nesta reportagem. No fórum promovido pelo Grupo Líderes Empresariais (Lide) em Manaus, o cineasta James Cameron, que se tornou referência recorrente no movimento da sustentabilidade, declarou:
– O IPCC nos deu um argumento racional perfeito (para combater as mudanças climáticas). Avatar era para criar uma resposta emocional, visceral, para combater emoção com emoção. Quando você vê a árvore caindo (uma das contundentes cenas do filme), fica triste e se sente moralmente escandalizado. E de repente você não é mais humano, é um Na’vi (habitante da fictícia Pandora). Essa é a mágica do cinema. E eu acho isso incrível. Os filmes nos permitem perseguir a verdade por um caminho de ficção.
O cinema e as demais manifestações da arte, assim como a publicidade, são os campos máximos de expressão do que a Filosofia chama de estética, ou seja, aquilo que envolve as percepções, as sensações, os sentimentos (mais sobre arte na reportagem O que te toca, desta edição).
É tudo o que move uma pessoa antes de qualquer racionalidade, pois a puxa pela emoção, sem dar a ela tempo para se agarrar às cordas do pensamento lógico. Quando percebe, já está capturada, assim como nas paixões. Gosta-se de alguém, de alguma coisa – ou alguma causa – e ponto. O desejo vence o medo. O apaixonado é sobretudo um ser corajoso, com toda a impetuosidade que o faz avançar e agir. Trocando a filosofia em miúdos, a estética (emoção) leva a uma ética (ação).
Alguns dos entrevistados, no entanto, apontam erros fundamentais de abordagem estética em muitas tentativas de enredar a sociedade. O primeiro erro é usar e abusar do medo. Cameron também falou disso: “Nós entramos em negação. Vivemos em um mecanismo mental baseado em medo. Medo de que o mundo está mudando, medo pelas nossas famílias, pela nossa segurança, medo de que o problema em si esteja numa escala avassaladora. Avatar foi feito para lutar contra a negação”.
As pessoas estão cansadas com o bombardeio da imagem de um ursopolar sobre uma pequena placa de gelo. Desoladora e distante, não pega mais “na veia” do que o filósofo e ensaísta Luiz Felipe Pondé chama de “ética e estética de bando”, na melhor linha darwinista. “O urso pode não emocionar mais, mas você se envolve, diariamente, no caminho do trabalho, com o crescimento das árvores na Marginal do Rio Pinheiros. Sempre ouço alguém comentando”, diz o professor e vice-diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em referência ao Projeto Pomar, em que se cultiva um jardim nas margens do rio. Isso porque o ser humano preocupa-se, basicamente, com o que está próximo. Seja em termos espaciais, seja em termos temporais:
– Se os darwinistas estiverem certos, somos tocados à medida que identificamos relações de bando. A tentativa de dizer, o tempo todo, que o planeta é a nossa casa não funciona. Somos uma espécie que passa por ameaças muito grandes e, talvez por questões de adaptação, nos preocupamos primeiro com o risco iminente, com aquilo que parece mais próximo. Se há milhares de pessoas morrendo de fome no Zimbábue, você não vai deixar de jantar e tomar seu vinho. Por isso, o uso exacerbado de técnicas apocalípticas para chocar as pessoas não resolve mais.
Além disso, o movimento da sustentabilidade desperdiça a oportunidade de usar a seu favor as mesmas técnicas publicitárias largamente utilizadas para estimular o consumismo e perpetuar o business as usual. “Este só pode ser combatido com o mesmo padrão de qualidade que foi usado para construí-lo”, afirma Victor Aquino, estudioso de Estética e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, onde chefia o Departamento de Relações Públicas.
É pouco eficiente, portanto, o governo propagandear, de uma forma pouco sedutora, os malefícios do tabagismo ou da bebida depois de a publicidade ter criado, por décadas e décadas, belíssimas campanhas de cigarro para as empresas (o tabagismo tem sido combatido especialmente por meio de restrições legais e repressão). Para Aquino, os governos mostram pouca inteligência quando não usam a publicidade para envolver a sociedade em causas voltadas ao bem público. E as ONGs, bem menos capitalizadas que o setor privado, não têm musculatura para entrar nesse páreo e lançar mão do poderoso aparato estético para envolver as pessoas.
Enquanto isso, a estética da publicidade – que está por toda parte, em propagandas e merchandising – constrói valores e modifica entendimentos. Por exemplo, ainda que se ressalte a importância dos direitos da mulher, a publicidade vai na contramão e ajuda a cristalizar, por meio dos comerciais de cerveja e tantos outros, a ideia da loira burra. E por aí vai. Como reagir? Onde está a contrapublicidade?
Relacionamento, antes de tudo
Pondé sugere tomar três outras abordagens na estética da sustentabilidade. Uma delas é ampliar o entendimento desse conceito, trazendo-o para mais perto das próprias relações pessoais. A seu ver, há muito tempo martela-se o discurso de que o indivíduo deve ser livre, autônomo, cuidar de si mesmo. “Aí todo mundo fica sozinho, desesperado, não consegue se relacionar com o outro. No trabalho que faço com meus alunos, eles percebem que as relações humanas são passíveis de erosão, assim como o solo, assim como a floresta… uma coisa se liga à outra.” Para o professor, há um ethos que a modernização destruiu. A conduta humana que leva à devastação das florestas e à decadência da sociedade é objeto de lamento desde o movimento romântico, nos séculos XVIII e XIX.
A questão dos relacionamentos também é um dos temas de estudo de Vitória Mendonça de Barros, uma das coordenadoras do Centro de Educação Transdisciplinar (Cetrans). De maneira simplificada, ela explica que, entre agir movido pela própria vontade ou pela vontade do outro – seja o outro o marido, filhos, amigos, seja um desconhecido -, surge um terceiro elemento: “Você não é você, e você não é o outro, mas sim o fruto de uma relação entre você e o outro. É sempre uma relação que se estabelece antes mesmo do nascimento, quando a gente se relaciona com a nossa mãe”.
O filósofo Emmanuel Lévinas afirmava: “Você é refém do outro que te olha”. Para Vitória, esse pensador judeo-lituano naturalizado francês vivenciou uma situação tão extrema ao sobreviver ao Holocausto que adquiriu um imenso senso de urgência. Para ele, o agir vem antes mesmo do ser. Vertendo para termos filosóficos, a Ética vem antes da Ontologia. Assim, antes de saber o que é o ser, você precisa saber como se colocar diante do ser. Ou seja, como relacionar-se.
A segunda proposta estética de Pondé é combater o que ele chama de infantilização e uso da ideia do “politicamente correto” na abordagem da sustentabilidade. Basicamente, tratar as pessoas como adultas e imperfeitas:
– Às vezes me parece que a discussão ambiental fica um pouco maniqueísta e ingênua, e com isso ela perde a oportunidade de tocar as pessoas de maneira verdadeira. Não adianta dizer que você é ou deve ser superlegal. Faz parte do ser humano, assim como da natureza, uma certa monstruosidade, uma incoerência. Claro que devemos ser morais, ao contrário dos outros bichos. Mas não adianta higienizar a natureza e o ser humano. Se você estiver muito apertado, você se vende. Depende do preço e do contexto. Não que devamos deitar no berço da imperfeição, mas é o erro que humaniza. Tenho certeza que o politicamente correto é uma vertente do fascismo.
E a terceira proposta é descobrir o campo de significado da sustentabilidade, que a seu ver não está nem no endeusamento da natureza nem no utilitarismo, que coloca o meio ambiente a serviço do homem e sob sua dominação (Clóvis de Barros Filho, em entrevista, desta edição, afirma que a sustentabilidade tem se alinhado à ideia utilitarista).
Para filósofos gregos como Platão e Aristóteles, a natureza (physis) referia-se a algo concreto (plantas, animais), mas dependia de algo sobrenatural (metaphysis) e essencial, relacionado a ideias e princípios cosmológicos, diz Amós Nascimento, professor de Filosofia Ética e Estética Ambiental na Universidade de Washington, em Seattle.
Mas, no processo de revolução científica, entre os séculos XV e XVIII, os termos natureza e filosofia natural ganharam novo sentido, mais empírico, levando às Ciências Naturais. Isaac Newton considerava-se filósofo natural, assim como Galileu Galilei e René Descartes. Eles propuseram uma visão dualista na qual a natureza é separada da essência humana e vista como algo objetivante e objetivável por meio de experimentos.
Descartes radicalizou esse dualismo entre a “coisa pensante” e a “coisa pensada”, separando a alma e a mente do corpo e justificando, assim, a possibilidade de experimentos em seres humanos: após a morte, já sem alma, o cadáver podia ser dissecado – um processo necessário para o desenvolvimento da medicina.
Sob essa mesma premissa, explica Nascimento, dá-se todo o desenvolvimento científico nas ciências naturais, inclusive da Biologia e da Ecologia, o avanço tecnológico que caracteriza a modernidade, e daí os problemas por ela gerados – a superexploração de recursos naturais e dos recursos humanos, como escravidão, genocídio e experimentos biotecnológicos.
Para Nascimento, esse ideário influencia a concepção de natureza da classe média no Brasil e justifica práticas cotidianas como a dedetização das casas, cobrir o quintal com cimento, controlar a temperatura com ar condicionado, consumir água engarrafada, valorizar o carro em vez de usar o transporte público etc. “Enfim, a filosofia moderna justifica essa visão. Somos todos modernos”, diz.
Entre a concepção metafísica e a utilitária, Luiz Felipe Pondé propõe a visão da natureza como ela é: linda, mas que te come vivo. É vida e morte, maternal e cruel, Gaia e Medeia. Nesse sentido, sua estética não pode somente remeter a árvores belas e a uma paisagem verdinha, ela é também chocante (2), ela é também deserto.
(2) A estética do feio e do horroroso também é uma poderosa forma de mobilização e engajamento e de apresentar uma ideia diferente, contra a corrente. O movimento punk, por exemplo, utiliza-se disso. O próprio jornalismo busca imagens fortes e chocantes para chamar a atenção e convidar a sociedade a reagir contra algo que não vai bem.
“Taí um elemento presente na tradição filosófica e religiosa ocidental que nunca vi ser explorado no bom sentido pelo movimento ambiental: a relação entre homem e deserto, que ensina como você é frágil e efêmero”, diz. Para ele, o deserto só aparece com uma conotação ruim – desertificação, deserto verde etc. Mas é um dos elementos mais carregados de sentido cósmico, seja para pagão, judeu, cristão, seja para muçulmano, por ser um lugar onde se vê a verdade: aquela em que você morre e o deserto continua.
Sertão e Floresta Negra
Se o sertão está em toda parte, como diz o personagem Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, ele está na gente mesmo. Mais próximo do que se imagina. Não é objeto, como pensariam Descartes e Galileu, mas sujeito, sob uma perspectiva que muda tudo.
Amós Nascimento tem uma intuição a respeito do tema. Não é algo que ele possa comprovar antes de se lançar em uma pesquisa a fundo, mas vale a suposição. Segundo ele, muita gente no Brasil estuda o filósofo Martin Heidegger, considerado um dos maiores pensadores do século XX, mas não percebe a genialidade com a qual ele conecta questões ambientais e dados ou expressões do cotidiano para realçar sua dimensão filosófica.
Há livros e livros sobre o significado da expressão filosófica Dasein – muitas vezes traduzida como existência, presença -, quando, para Nascimento, a tradução mais simples é “tá’ li”, desse jeito caipira mesmo:
– Também se fala de Lichtung, mas sem conectar a expressão à simples ideia de “clareira” na Floresta Negra (região da Alemanha onde Heidegger nasceu e viveu). Heidegger também usa a expressão Holzwege, mas, que eu saiba, somente um filósofo austríaco exilado no Brasil, Vilém Flusser, conectou esse termo a outra palavra do campo: “veredas”. Ou, se quiserem, caminho da roça! Isso nos leva a Guimarães Rosa. Não posso ler o Rosa sem pensar como ele realiza esse processo de modo similar a Heidegger. Pega expressões simples do cotidiano, empregadas por jagunços analfabetos e mostra o seu profundo sentido filosófico. Logo de início: “Nonada!” O que é isso? Um erro de português na fala jagunça, escrito no começo de Grande Sertão: Veredas, e sobre cujo significado livros e mais livros têm sido escritos, conectando o seu sentido à ideia de niilismo, a Friedrich Nietzsche e aos gregos.
Portanto, para Nascimento, Rosa faz com o português o que Heidegger fez com o alemão, casando filosofia com natureza e, mais que isso, mostrando como esta é parte incrustada do pensar, sentir e agir humano. Há várias evidências e coincidências entre os autores: Rosa nasceu em Cordisburgo (MG), cidade de influência alemã, aprendeu o alemão ainda criança, registrou essa fascinação por escrito. Viveu na Alemanha como cônsul brasileiro justamente no período em que Heidegger era o filósofo-mor da germanidade, e confessou em entrevistas as conexões de seu pensamento com a história e a filosofia alemãs. “Mas isso é uma conjectura, e poderíamos parar por aqui”, diz.
Guimarães Rosa era tão cioso dos significados estéticos que grafava dansa, assim, com “s”. Pois o “s” expressa um movimento solto e sinuoso, enquanto o cedilha do “ç” engancha-se na pauta da página. Quem cita essa observação é Stella Pessoa, escritora e educadora ambiental que escolheu para seu mestrado no Núcleo de Altos Estudos da Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA), um tema que foge dos trabalhos ligados a Biologia e Sociologia lá apresentados.
Stella enveredou pelo viés cultural para entender as questões amazônicas, buscando na estética da arte a compreensão dos dilemmas éticos que envolvem o lugar. Isso nos transporta de novo a Belo Monte e a tantos outros projetos pensados de fora para dentro daquela região. “Será que a Amazônia tem sempre de se prestar a resolver problemas externos a ela?”, questiona.
Seu projeto de mestrado (3), intitulado Interpretação da Amazônia e de Suas Culturas – Um olhar atrás da escrita, debruça- se sobre a obra do filósofo, crítico literário, escritor e professor emérito da UFPA Benedito Nunes, notabilizado no País e no exterior principalmente pelos estudos sobre Guimarães Rosa, Heidegger, Nietzsche e Clarice Lispector.
(3) Orientado por Edna Castro, doutora em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, e aluna de Benedito Nunes nos anos 1970.
No entanto, Nunes também fez vários trabalhos a respeito da história e das culturas da Amazônia, especificamente do Pará e de Belém, aos quais se acrescentam análises sobre intelectuais e ficcionistas de lá. Dessa forma, explica Stella, estudar Nunes como intelectual da Amazônia significa interpretar a região não só como natureza – sinônimo de meio físico e alvo de preocupações do mundo todo -, mas também considerando o olhar profundo para os indivíduos, a sociedade e a cultura. “A premissa básica é que todos esses elementos merecem destaque na elaboração de programas de desenvolvimento da Amazônia com sustentabilidade”, diz.
Até porque os grandes projetos e interesses envolvendo a exploração amazônica podem vir de fora da região, mas, se existe algo capaz de resistir a possíveis danos que eles causam, é a verdade manifestada na estética de uma Amazônia única, singular, tão local e interior como a que salta do fundo do peito direto para a lâmina reluzente de um facão.
Leia mais sobre filosofia ambiental na entrevista com o professor da Universidade Federal de Viçosa (MG), James Griffith, e em notas escritas por Amós Nascimento, da Universidade de Washington
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Ética…
Ethos, em grego, de onde deriva o termo “ética”, significa morada, casa – explica Vitória Mendonça de Barros, do Cetrans. Depois isso tomou um sentido mais humano (morada interior) e também cabe ao meio ambiente, entendendo-o como a casa maior que habitamos.
Enquanto a moral é imposta – há um código de conduta estipulado pela sociedade em que se vive –, a ética implica sempre escolha, escolhe-se entre agir de acordo com o seu “eu” e agir de acordo com o “outro”, do qual depende e com o qual se relaciona antes mesmo de nascer, já na barriga da mãe. Por isso, o ser humano vive no paradoxo entre a liberdade e a necessidade. “Temos a vontade que poderia nos libertar e que no fundo nos aprisiona, porque escolhemos o que fazer, mas não o que querer”, diz Vitória, em referência à emoção.
Os valores éticos mudam de acordo com a sociedade e com a sua evolução civilizatória, mas, para Vitória, alguns não mudam nunca, são os essenciais. “A vida é um deles. Sendo assim, tudo o que vai contra a vida é antiético.”
… e estética
O bem e o belo vinham juntos, para filósofos antigos como Sócrates, Platão e Aristóteles. Santo Agostinho, já no século V, resgatou os gregos para dizer que o supremo bem de Deus é a beleza. Mas Victor Aquino, da ECA-USP, lembra que foi Alexander Baumgarten, engenheiro alemão tornado filósofo, quem primeiramente cunhou o termo estética – apropriado em seguida por um nome mais famoso, Immanuel Kant.
Para Baumgarten, estética designava a ciência que trata das sensações, contrapõe-se à lógica e chega ao belo nas imagens de arte. Entre os séculos XIX e XX, porém, artistas como Salvador Dalí, Pablo Picasso e Amedeo Modigliani buscam caminhos novos e a arte perde a referência como explicação do belo, explica Aquino. Picasso pinta um rosto com dois olhos de um lado só, Modigliani retrata mulheres pescoçudas, e a estética já não serve somente para explicar o sublime e o bonito. “Na verdade, tudo o que se expressa tem um componente estético, do diário de um adolescente a um livro de memórias, passando por expressões de interesse coletivo e social. E é sempre a emoção que norteia as expressões”, diz o professor.
As formas da natureza
Traços orgânicos e arredondados em detrimento dos retos e angulosos? Quais as formas preferidas da natureza e como o seu funcionamento se reflete nas formas? Para James Griffith, professor do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Viçosa, é preciso ir além da geometria euclidiana – aquela que estuda planos e objetos baseados em três dimensões. A natureza e o conceito de sustentabilidade são multidimensionais – seja na forma, seja no conteúdo.
Para Griffith, a vivacidade de uma paisagem, por exemplo, tem explicações na Teoria da Complexidade, ou do Caos, em que o aleatório e o imprevisível suplantam a ideia newtoniana linear de causa e efeito. Assim, as formas na natureza são compostas de fractais – por definição, objetos geométricos divisíveis em partes, cada uma das quais semelhante ao objeto original. A Wikipédia mostra animações de fractais que modelam, por exemplo, um floco de gelo e uma montanha.
“Fico admirado ao ver as imagens de satélite do Quadrilátero Ferrífero mineiro, uma região de grande valor paisagístico, por causa dos complexos de múltiplos fractais sobrepostos”, diz ele. As formações geológicas, aliadas pela força da gravidade, orientam rios e córregos praticamente no mesmo padrão. As matas ciliares, influenciadas pelas fontes de água, acabam repetindo esse padrão.
A obra do artista gráfico holandês Maurits Cornelis Escher é mais uma representação que Griffith usa em Filosofia Ambiental para mostrar que, além do sim-ou-não aristotélico, pode haver um terceiro elemento que emana dessa dialética, é o chamado terceiro incluído.
Em Dia e Noite (obra de 1938), por exemplo, não há a dicotomia “pássaros ou paisagens”, não há fundo nem primeiro plano, mas sim uma terceira “solução”, que se forma da relação entre pássaros e paisagem, em um plano multidimensional (saiba mais aqui, em Picture Gallery).