Havia expectativa de que o governo daria atenção especial às populações locais em todo o processo. Foi exatamente aí que o projeto de Belo Monte mais falhou
Mais do que um problema ambiental, a polêmica em torno da construção da UHE Belo Monte, em Altamira, Pará, envolve um dilema ético. A decisão de realizar a obra, apesar das dúvidas recorrentes sobre sua viabilidade técnica, econômica e ambiental, expõe se não a irresponsabilidade governamental, ao menos a arrogância de usar o poder constituído para mudar regras de fi nanciamento e subsídios de modo a garantir a realização da obra a qualquer custo.
Fazer escolhas e investir no desenvolvimento é um papel inerente à autoridade do poder público. O que ocorre neste caso é que não estão claras as vantagens e as desvantagens do projeto. A própria perspectiva de que tipo de desenvolvimento Belo Monte vai fomentar está fora do debate. E, no esforço de viabilizar a obra de toda maneira, o governo só aumenta seu custo social.
É reconhecido pelo Estudo de Impacto Ambiental que haverá riscos para as populações que vivem na Volta Grande do Xingu. Não há quem possa dimensioná-los, mas há consenso sobre a existência deles. O que o governo parece não querer enfrentar é a discussão sobre a relação entre estes riscos e os benefícios da obra. Ambos são relativos e são essas diferentes visões que têm de ser compatibilizadas.
Para abrir mão de coisas que lhes são fundamentais, como sua moradia e seu modo de vida, é preciso que as pessoas estejam convencidas de que serão recompensadas de alguma forma. Isso vale para os índios, que poderão ter a qualidade da água de que dependem afetada. Vale para os agricultores familiares e ribeirinhos, que terão de deixar suas terras para viver em outro lugar. Vale para os governantes locais e para a população das cidades da região, em especial Altamira, que terá de dividir sua já carente infraestrutura com milhares de migrantes.
Essas pessoas precisam ter a garantia de que haverá outros ganhos, que não podem estar refletidos apenas no PIB. Também não é sufi ciente mencionar os ganhos para a produção e a exportação, pois na maior parte das vezes não resultam em benefício social.
Para que a sociedade considere justas as eventuais perdas que esses grupos vão sofrer, é preciso ter certeza de que os possíveis danos ambientais, sociais e até econômicos – tendo em vista que o modelo de fi nanciamento da obra torna todos os contribuintes brasileiros sócios do empreendimento – valerão a pena.
A falta dessa certeza é que torna tudo tão confuso. São as respostas evasivas, as dúvidas não respondidas, os números contraditórios que fazem com que a declaração do presidente Lula, de que Belo Monte será feita de qualquer jeito, pareça mais uma ameaça do que uma promessa.
Até os prefeitos dos municípios da área de infl uência da hidrelétrica, reunidos em um consórcio, que sempre foram defensores do empreendimento, manifestaram-se recentemente contrariados com o fato de suas reivindicações para o plano de desenvolvimento regional do Xingu não terem sido levadas em conta.
Seria possível argumentar que a perspectiva de interesse público embutida na obra supera em termos de volume e densidade de benefi ciários aqueles que serão negativamente afetados, o que justifi caria a opção do poder público. Mas, como no caso da mulher de César, além de ser, tem de parecer. É preciso que tais benefícios estejam indiscutivelmente evidentes e superem os riscos e as possíveis perdas.
Quando a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de decreto legislativo que autorizou o aproveitamento hidrelétrico do Rio Xingu, em 2005, parlamentares atuantes na região justifi caram a iniciativa afirmando que, uma vez que o governo do Partido dos Trabalhadores faria a obra, não havia motivo para preocupação, pois isso significava que o processo seria feito de tal forma a garantir o menor impacto socioambiental.
Havia uma expectativa de que o governo teria uma atenção especial às populações locais de modo a contemplá-las em todo o processo. Foi exatamente aí que o projeto de Belo Monte mais falhou.
Precisamos de coragem e ousadia para superar esses dilemas. Mesmo com seus números superlativos, em tamanho e custo socioambiental, Belo Monte não será sufi ciente diante das expectativas de crescimento do País. E, se não vamos prescindir de mais energia, precisamos investir tanto em novas alternativas de geração quanto em novas formas de planejamento. Só assim estaremos de fato abraçando a causa da sustentabilidade em todas as suas dimensões.
* Secretária-executiva adjunta do Instituto Socioambiental (ISA)[:en]Havia expectativa de que o governo daria atenção especial às populações locais em todo o processo. Foi exatamente aí que o projeto de Belo Monte mais falhou
Mais do que um problema ambiental, a polêmica em torno da construção da UHE Belo Monte, em Altamira, Pará, envolve um dilema ético. A decisão de realizar a obra, apesar das dúvidas recorrentes sobre sua viabilidade técnica, econômica e ambiental, expõe se não a irresponsabilidade governamental, ao menos a arrogância de usar o poder constituído para mudar regras de fi nanciamento e subsídios de modo a garantir a realização da obra a qualquer custo.
Fazer escolhas e investir no desenvolvimento é um papel inerente à autoridade do poder público. O que ocorre neste caso é que não estão claras as vantagens e as desvantagens do projeto. A própria perspectiva de que tipo de desenvolvimento Belo Monte vai fomentar está fora do debate. E, no esforço de viabilizar a obra de toda maneira, o governo só aumenta seu custo social.
É reconhecido pelo Estudo de Impacto Ambiental que haverá riscos para as populações que vivem na Volta Grande do Xingu. Não há quem possa dimensioná-los, mas há consenso sobre a existência deles. O que o governo parece não querer enfrentar é a discussão sobre a relação entre estes riscos e os benefícios da obra. Ambos são relativos e são essas diferentes visões que têm de ser compatibilizadas.
Para abrir mão de coisas que lhes são fundamentais, como sua moradia e seu modo de vida, é preciso que as pessoas estejam convencidas de que serão recompensadas de alguma forma. Isso vale para os índios, que poderão ter a qualidade da água de que dependem afetada. Vale para os agricultores familiares e ribeirinhos, que terão de deixar suas terras para viver em outro lugar. Vale para os governantes locais e para a população das cidades da região, em especial Altamira, que terá de dividir sua já carente infraestrutura com milhares de migrantes.
Essas pessoas precisam ter a garantia de que haverá outros ganhos, que não podem estar refletidos apenas no PIB. Também não é sufi ciente mencionar os ganhos para a produção e a exportação, pois na maior parte das vezes não resultam em benefício social.
Para que a sociedade considere justas as eventuais perdas que esses grupos vão sofrer, é preciso ter certeza de que os possíveis danos ambientais, sociais e até econômicos – tendo em vista que o modelo de fi nanciamento da obra torna todos os contribuintes brasileiros sócios do empreendimento – valerão a pena.
A falta dessa certeza é que torna tudo tão confuso. São as respostas evasivas, as dúvidas não respondidas, os números contraditórios que fazem com que a declaração do presidente Lula, de que Belo Monte será feita de qualquer jeito, pareça mais uma ameaça do que uma promessa.
Até os prefeitos dos municípios da área de infl uência da hidrelétrica, reunidos em um consórcio, que sempre foram defensores do empreendimento, manifestaram-se recentemente contrariados com o fato de suas reivindicações para o plano de desenvolvimento regional do Xingu não terem sido levadas em conta.
Seria possível argumentar que a perspectiva de interesse público embutida na obra supera em termos de volume e densidade de benefi ciários aqueles que serão negativamente afetados, o que justifi caria a opção do poder público. Mas, como no caso da mulher de César, além de ser, tem de parecer. É preciso que tais benefícios estejam indiscutivelmente evidentes e superem os riscos e as possíveis perdas.
Quando a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de decreto legislativo que autorizou o aproveitamento hidrelétrico do Rio Xingu, em 2005, parlamentares atuantes na região justifi caram a iniciativa afirmando que, uma vez que o governo do Partido dos Trabalhadores faria a obra, não havia motivo para preocupação, pois isso significava que o processo seria feito de tal forma a garantir o menor impacto socioambiental.
Havia uma expectativa de que o governo teria uma atenção especial às populações locais de modo a contemplá-las em todo o processo. Foi exatamente aí que o projeto de Belo Monte mais falhou.
Precisamos de coragem e ousadia para superar esses dilemas. Mesmo com seus números superlativos, em tamanho e custo socioambiental, Belo Monte não será sufi ciente diante das expectativas de crescimento do País. E, se não vamos prescindir de mais energia, precisamos investir tanto em novas alternativas de geração quanto em novas formas de planejamento. Só assim estaremos de fato abraçando a causa da sustentabilidade em todas as suas dimensões.
* Secretária-executiva adjunta do Instituto Socioambiental (ISA)