Por Amália Safatle
Renato Janine Ribeiro especula que a política estaria chegando a um fim. Vinda de um professor de Filosofia Política, é uma ideia perturbadora, que ele escolhe para abrir esta conversa. “Se isso estiver acontecendo, qual o problema?”, provoca. Para Janine, novos espaços, como o cultural, o da informação e tantos outros, fariam as vezes da política, ao cumprir seu objetivo maior, que é o de promover a liberdade e a discussão de valores fundamentais.
Mas, antes que se decrete o seu esgotamento, uma injeção de vida pode partir de causas pujantes e envolventes, como a do “verde”, agenda que, segundo ele, a esquerda tradicional não teve inteligência nem dinamismo suficientes para assumir.
Para o professor, que também leciona Ética na Universidade de São Paulo, o ar fresco que os valores da sustentabilidade sopram não é a única renovação potencial que se delineia no horizonte. O “afeto democrático” que a política brasileira já foi e é capaz de produzir – um trocadilho com o nome de obra de sua autoria, Afeto Autoritário – seria a grande e calorosa contribuição latino-americana, em contrapartida à tediosa política praticada na Europa e em boa parte do mundo – esta, sim, com os dias contados. “Se for pra mexer no mundo, precisa ter a capacidade de entusiasmar”, diz.
Pelo que a ciência indica, vivemos uma crise ambiental sem precedentes, extrapolando a capacidade de regeneração da natureza em termos de biodiversidade, equilíbrio climático, uso da água etc. Não estamos garantindo o bem-estar das gerações presentes – muito devido a questões de distribuição de riqueza – nem das futuras. Temos aí um grande problema de fundo político, entendendo política como organização e administração do que é coletivo?
Para falar inicialmente de política, estamos no momento de um sucesso muito grande, porque nunca houve na história da humanidade tanta liberdade de expressão, de organização e de voto. Em termos das liberdades constituintes do espaço político propriamente dito, nunca houve tanta gente desfrutando delas. Agora, eu me pergunto se não chegamos num momento de esgotamento disso, porque ao mesmo tempo que existe essa liberdade nunca antes vista, tem um desinteresse muito grande sobre a política. Acho que há duas hipóteses. A política como está é insatisfatória, então teria de ser modificada para empolgar as pessoas. Há décadas ou séculos que muita gente pensa que a política deve ser ampliada de modo a incluir mais gente, e essa inclusão crescente implicaria um commitment, um engajamento maior.
Essa hipótese tem um lado que é um voto piedoso, pois boa parte da população vê a política como espaço da corrupção e isso parece crescer. Eu diria que, depois de uma fase de aumento da democracia, nos anos 80 e 90, com a queda das ditaduras de direita na América Latina e de esquerda na Europa Oriental – portanto o fato de o continente europeu e o americano deixarem de ser parcialmente democráticos para ser quase integralmente democráticos –, é que a grande mudança acontece. Depois vem também uma decepção grande no sentido de achar que ela é um ambiente de corruptos. Então, a corrupção, que algumas décadas atrás era um “quinhão” nosso, latino-americano, Terceiro Mundo, hoje é o vice-presidente dos EUA, o ex-presidente da França, o primeiro-ministro da Itália, ou seja, está também nos países ricos, e talvez já estivesse. Mas o descontentamento com a política é tão grande que eu pergunto se não estamos vivendo um esgotamento final. Pode ser realmente que a fase política da história do mundo esteja chegando a seu termo.
E o que viria no lugar dela?
Não sei, mas pode ser que a maneira de pensar a política esteja chegando a um arremate, e sem ter conseguido trazer os bens políticos para o mundo todo: trouxe para metade da humanidade, a outra metade padece sob ditaduras, regimes odiosos. Mas metade ter liberdade é coisa muito boa, também repercute na vida pessoal, na sexualidade, que antes era reprimida. Eu me pergunto se a política continua com essa bola toda ou estaria em crise, a mais radical delas, e com isso talvez as formas de relacionamento mudem.
Várias pessoas têm levantado hipótese de esvaziamento do espaço político e pergunto se isso é para deplorar ou para entender. Entender o que estaria entrando no lugar. Hipótese 1: entra o entretenimento – seria uma perda. Hipótese 2: entra a cultura – seria um ganho. Pois o que a política permite? Liberdade. E discutir as coisas coletivamente. Agora, maior liberdade, maior realização, se você tiver um mundo com maior riqueza cultural, quem sabe ele proporcione isso tão bem ou melhor que uma disputa eleitoral.
Formação e informação também?
Eu gosto muito de uma história da Irlanda, a chamada Irlanda do Sul, que se tornou independente dos ingleses, um país hipercatólico onde, falar de homossexualismo, nem pensar. Então os rapazes com 15, 16 anos olhavam para uma mulher bonita e não sentiam nada. Eles não tinham tido a informação de que olhar para uma mulher e não sentir tesão, e olhar para um homem e sentir tesão, isso quer dizer que eles desejavam um homem. Eles não tinham essa quadrícula para preencher. “Se eu olho para mulher e não sinto tesão, é porque fui aquinhoado com o dom do sacerdócio.” Iam para a Igreja e não conseguiam decifrar que aquilo que sentiam era desejo sexual por um homem. Só que um dia isso acabava estourando. Resultado: é o país com o maior número de padres pedófilos. Isso é uma coisa que tem resultados políticos, está nas páginas de política do jornal, mas era uma questão cultural. Se pudessem ter visto um filme com dois homens se beijando, talvez diriam: “Ah, essa é a minha, agora eu entendi o que acontece comigo”.
Então, nesse sentido, talvez a cultura possa entrar num espaço em substituição do que era a esfera política. Esta, na sua melhor versão, é uma oposição entre direita e esquerda. Direita, liberalismo, esquerda, preocupação social.
Agora, a nossa política é quase toda uma discussão sobre honestidade e competência. Ora, isso são instrumentos. Uma banca serve para julgar quem é mais competente – não o voto popular. Voto é para dizer: quero Bolsa Família ou a (Margaret) Thatcher. A política também estabelece um racha social entre um lado e outro que não sei em que medida está expressando bem as forças que vivem na sociedade. As pessoas estão interessadas em outras coisas.
No que, por exemplo?
Por exemplo a biodiversidade, para chegar a seu ponto. Essa é uma questão que está crescendo. É ótimo ter uma candidata este ano que não vai falar de chaminé. Vamos ter dois candidatos que vão disputar quem vai fazer mais chaminé, mais indústria. Estou fazendo uma metáfora, apenas. Acho ótimo outras questões serem colocadas: as de valores. A discussão de valores tornou-se fundamental. Valores que ainda recebem respostas muito mecânicas, tipo a favor ou contra o aborto. É muito mais complexo que um sim ou não, porque a maior parte das mulheres que abortam não escolhe isso abstratamente, mas leva em conta: “Essa criança vai ter um pai que vai cuidar? Se sou adolescente, minha família vai me expulsar de casa? Vou ter emprego? Vou conseguir sustentar essa criança?” Tudo isso entra em jogo, então não é só dar o direito e as pessoas abortarem com tranquilidade. O sentido da vida, para usar um termo forte, hoje está sendo discutido, mas não tanto pelos políticos, e sim em outros campos. Até nas telenovelas.
No espaço político, há um empobrecimento. Por exemplo, esse debate que saiu no caderno Aliás com Fernando Henrique Cardoso (publicado no Estadão de 4 de abril). As perguntas foram boas, as respostas foram boas. Aí veio uma pergunta da plateia: se não era preciso ver a questão da Previdência Social, aumentar o tempo de contribuição. Ele respondeu, mas a discussão estava num nível de projeto de mundo, e de repente entra em um nível de contador. Não é a mesma coisa. A política volta e meia cai para esse nível – é necessário ter como pagar as contas, evidente. Mas o que é bom uma pessoa fazer depois de se aposentar, de ter gerado riqueza? O que se espera dela?
As discussões que estão entrando hoje são sobre valores. O valor de tentar uma vida com menos carbono, de levar uma vida mais sustentável, a relação com os entes queridos, como manter as coisas que você gosta de fazer. Essas questões entram no universo político de ricochete. Elas chegam, são apropriadas, e a maior parte das pessoas que trouxeram essas questões é de certa forma aniquilada. A única figura que veio de um mundo assim e continua na política é o (Fernando) Gabeira. E a Marina (Silva). Lembra do Mario Juruna, que levava um gravador para depois cobrar dos ministros as mentiras que eles tinham dito? O Juruna, coitado, morreu triste.
Existe uma coisa louca, de quem vai para a política, é família de político, que não traz nada de novo, são as dinastias; e quem entra trazendo sangue novo é vampirizado. Traz um impacto, mas raramente sobrevive.
À medida que esses outros espaços possíveis de discussão aconteçam e saciem todo o desejo da sociedade, se houver mesmo uma “morte” da política, ela fará falta?
Não sei. Apenas acho que temos de estar abertos para uma hipótese: de que a política talvez tenha seu prazo de validade chegando ao fim. Talvez. Para quem é professor de Filosofia Política, é meio engraçado dizer isso. Mas, se isso estiver acontecendo, qual o problema? Vamos ver o que vem para o lugar. Mas pode ser que a gente consiga fazer a política ser mais divertida, mais empolgante, mais interessante, dar conteúdos novos a ela. Hoje, parece que o que mobiliza mais as pessoas são certas causas, e, dessas causas, a mais emblemática ficou a assim chamada ecologia, ou do verde, ou da sustentabilidade.
Existe uma coisa que a gente pode chamar de ímã. Democracia é um conceito-ímã. Democracia, ao pé da letra, é o poder do povo, a maioria votando e decidindo. Só que a imantamos, e fizemos com que direitos das minorias fizessem parte dela. Na Grécia, isso não ocorria, não havia direitos humanos, era só decisão pelo coletivo. A palavra democracia ganhou significados que a foram enriquecendo. Hoje me parece que o mundo da ecologia está trazendo essa coisa do ímã e atraindo um monte de significados e animando as pessoas, pessoas que em princípio não teriam interesse em tal e qual coisa, e passam a ter. Um exemplo é o The Guardian, que tem uma política de sustentabilidade como empresa, sua cadeia de fornecedores etc. Até fez uma pesquisa para ver quantos dos seus leitores consideram que, por causa do jornal, passaram, por exemplo, a participar de uma ONG, mudaram de preferência partidária, ou passaram a fazer trabalho voluntário. É um jornal que assume um lado militante. Agora, qual militância? Labor, Partido Trabalhista, ou uma militância mais abrangente que inclui valores? Se bem que são valores que atraem mais a esquerda que a direita. Mas, em tese, um ar limpo, isso não é uma coisa para ser dividida entre partidos, todos defendem.
O ar limpo, a defesa da vida, a justiça social, a sustentabilidade são “valores” que as pessoas em geral defendem. Mas, quando isso chega no detalhe da implementação, aquela unanimidade vai pro espaço e passa a haver enormes disputas. O que acontece no meio do caminho?
É a diferença entre a retórica e a ação. Sobretudo em termos de ecologia, a concordância de valores é muito grande, é um dos valores que mais fazem convergir.
Então a ecologia é uma retórica?
Há uma retórica ecológica, é claro. Agora, quando ela cobra de você, do seu bolso, das suas atitudes pessoais, a coisa muda de figura. A sociedade brasileira é muito precária no nível da ação, uma constatação que já vem de Sérgio Buarque de Holanda, o contraste entre o pragmatismo americano e o bacharelismo brasileiro. Nossa sociedade gosta muito de palavras, nós defenderemos os melhores valores do mundo.
A melhor lei ambiental, a melhor Constituição etc.
Tudo, tudo. Nossa Constituição prevê o direito à habitação, foi incluído mais ou menos em 2000, logo depois da Conferência de Istambul sobre a moradia. E, na Conferência, os americanos foram contra esse direito humano dizendo que não tinham como pagar moradia para todo mundo. Mas essa não é uma preocupação do legislador brasileiro. Em outras palavras: não é uma preocupação do legislador brasileiro aplicar o que eles legislam. Então, temos com as leis um efeito catártico. Uma vez promulgadas, não há nada mais a fazer. Isso coloca um problema sério em termos de ação.
O contrato social seria um acordo pelo qual se abdica da liberdade do chamado “estado da natureza” para obter os benefícios da ordem política, certo?
Certo. Mas essa é uma pergunta da Filosofia do século XVII, imagino que você queira chegar mais perto do século XXI… (risos)
Sim. É que o meio ambiente implica uma série de limitações de ordem física, pois toda a civilização e suas atividades dependem de um sistema fechado e de uma delimitada oferta de recursos. Então, minha pergunta é: a conscientização da crise ambiental pede um novo contrato social, uma repactuação em termos ainda mais limitados?
Aí é um sentido mais moderno de contrato social, porque os autores contratualistas, especialmente (Thomas) Hobbes, (John) Locke e (Jean-Jacques) Rousseau, têm uma visão do contrato em larga medida, como uma peça de ficção jurídica. Não há a ideia, para nenhum deles, de que pessoas que não tinham nenhum elo social um dia se reuniram numa clareira e, de alguma forma, porque talvez não tivessem linguagem, contrataram viver em sociedade.
Nós, quando falamos em contrato, entendemos que existe algum tipo de acordo. Quando você pergunta sobre um novo contrato social, seria que tipos de acordos, convenções e obrigações que vamos criar. Talvez, a ênfase seja mais nas obrigações e deveres que nos direitos. O que seria um pouco chocante, porque os últimos 60 anos foram um período esplêndido em direitos. Declaração Universal dos Direitos do Homem, cada encontro da ONU gera novos direitos, da criança, da mulher, dos animais.
Hoje, as mesmas pessoas que militaram e militam pela expansão dos direitos estão sentindo a limitação do estoque que a natureza fornece para se ter uma vida decente. Então, como é que vamos fazer isso? Não é algo novo, porque reintroduz um pouco (Thomas) Malthus no horizonte, e isso não é fácil de aceitar. Os últimos 200 anos foi uma grande refutação de Malthus, de mostrar que era possível crescer, ter uma ampliação populacional enorme e do nível do consumo e bem estar que desmentiram as perspectivas dele.
Enquanto isso, convertemos o direito em consumo. A nossa visão de direito é uma visão consumista. Não tem mais o sentido romano, é algo que se usa ou não. Exemplo: direito do uso do voto. A maior parte das críticas ao voto obrigatório – eu não defendo o voto obrigatório – é que, se é direito, pode-se usar ou não. Ao mesmo tempo, o voto supõe uma obrigação de ser constituinte da vida política. Se ninguém votar, por hipótese, some o laço social. Para nós, direito tornou-se uma esfera de desfrute quase puro, de gozo.
O professor Luiz Felipe Pondé, que ouvimos na edição passada, se diz simpático à corrente darwinista, segundo a qual a espécie humana age sob uma “ética de bando”, atenta aos riscos mais próximos e iminentes. Assim, o apelo da sustentabilidade, das gerações futuras, do longo prazo, não nos convenceria tanto assim. O que o senhor pensa disso? Isso explicaria também por que a política não dá muito espaço à discussão dos grandes projetos?
Talvez no passado a ideia de linhagem de família criasse um vínculo entre passado, presente e futuro mais forte que hoje. Temos hoje, numa sociedade hedonista, em que o prazer é muito importante, uma ênfase muito grande no presente. Não temos mais necessidade de ter tantos filhos para manter o planeta, ou a etnia, ou o país. A demografia não é mais a chave da riqueza. Além disso, tínhamos Deus, que nos levava “além de nós”. Nossa sociedade se tornou muito presencialista e dá cada vez mais importância ao que não transcende.
É um desafio muito grande você conseguir convencer as pessoas de que devem abrir mão de um prazer imediato e concreto em nome de um futuro que talvez nem vejam. E não é nem a questão da espécie, é do indivíduo mesmo, de como você consegue convencer a pessoa de que determinada coisa é importante para, por exemplo, ela ter um fim de vida bom e saudável. O argumento precisa ser egocêntrico, é difícil o altruísmo funcionar.
Mas e quanto àqueles valores que mobilizam, sobre os quais falamos no início?
É um momento de divisão. Assim como pode ser que a política se reconstrua, você tem uma vontade de encontrar causas. Viver totalmente sem causas é muito difícil, não é pra todo mundo. Tem uma parte da população que se contenta em fruir, gozar, mas há outras que precisam mesmo sentir algo pelo qual se entusiasmem.
O senhor acha que o conceito de rede, de interconexão e interdependência é uma ideia poderosa, capaz de mudar esse individualismo e imediatismo?
Estamos saindo da ideia de poder como substância. Que chegou ao auge no conceito marxista-leninista de tomar o poder, de tomar o Palácio de Inverno na Revolução Russa. Você se torna “dono do poder”, para usar o termo de Raymundo Faoro. Acontece que poder, nas línguas latinas, é substantivo e também verbo. E, como verbo, ele nunca existe sozinho. É um verbo único, que funciona como auxiliar (ter, ser, haver, estar), mas sem ser auxiliar. Pede sempre outro verbo depois. Eu posso comprar, eu posso amar. Então, essa ideia de poder, que representa uma não substância, abre espaço para você pensar o poder não como algo que você toma, mas que passa por você – e isso é rede.
Uma rede é você lidar com o poder no sentido verbal e não substantivo. Quando você multiplica a potência das pessoas, que estão afastadas, mas entram em ligação, isso é superimportante. Mas é um pedaço. No twitter, com 140 caracteres, você só pode convocar uma manifestação quando todo mundo já está de acordo sobre a causa. Exemplo, roubaram as eleições na Moldávia. Pelo twitter, convocaram um protesto, mas o convencimento sobre a causa já tinha acontecido.
É muito engraçado ver o (Nicolas) Sarkozy querendo aprender com o (Barack) Obama o uso que eles fizeram da rede. Duvido que um presidente de direita consiga utilizar isso do mesmo jeito que o Obama. Ele utilizou um monte de voluntários. Você consegue imaginar voluntários de direita? Não existe, com exceções. Gozado que uma boa parte da discussão sobre isso seja técnica: “Que técnica você adota para usar a internet numa campanha eleitoral?” Mas não é técnica, ela é interessante se entrar no espírito da coisa, que é coparticipativo, mas fluido. Assim, o candidato mais improvável ganha: negro, com o nome parecido com o do inimigo dos EUA que derrubou as Torres Gêmeas. Então é muito difícil um instrumento desses não estar associado a uma causa. No Brasil, quem vai utilizar isso? Se for pelo lado do ideal, a coisa sorri para a Marina, a candidata que mais tem a ver com o ideal. Mas a gente não sabe se a internet vai fazê-la chegar aos dois dígitos de voto.
Como o senhor avalia a discussão política nesse período pré-eleitoral: há avanços em termos de construção democrática?
O Brasil tem uma coisa muito boa. Desde 1994, ninguém concorreu à Presidência da República, com alguma chance de se eleger, que fosse uma pessoa perigosa. Não temos mais o temor de que o Brasil possa cair em mãos que representem um retrocesso. O lado negativo é que sinto a fúria na política e não sei qual é sua base. O ódio dos leitores de Veja, por exemplo, por tudo que cheire à esquerda não tem base na realidade. Se o (José) Serra vai necessariamente fazer a política que essa direita sonharia que ele fizesse, a gente não sabe. Daí a ter um debate político de qualidade, sou muito pessimista, porque se desvia quase tudo para a discussão de honestidade e competência, e o eleitor não tem subsídios para julgar os candidatos quanto a isso.
De duas, uma, ou eu quero que as pessoas sejam muito livres para escolher seus caminhos de vida, que a tributação seja leve e o esquema mais liberal – de modo geral, é a cultura americana –, ou eu quero que as pessoas sejam solidárias, o laço social mais forte e haja mais tributação e prestações sociais – que é a posição europeia. Isso são valores, não tem o mais certo ou o mais errado. Os dois trazem ganhos e perdas. Esta é a questão crucial que deveria ser discutida e votada. O resto, quem vai executar, se é Serra, se é Dilma, é o resto. O Brasil discute muito pouco isso e o mundo em geral também.
Tem outro problema: quando o comunismo foi desabando, a direita tinha um pacote inteiro de propostas para o mundo. Tinha o neoliberalismo prontinho para entrar em cena: Thatcher, (Ronald) Reagan. Quando o neoliberalismo fez aquele desastre no fim de 2008, não tinha proposta nenhuma da esquerda pronta, nenhuma! Então, quem está ganhando as eleições? A direita.
Tinha uma proposta verde de desenvolvimento sustentável naquele momento de crise, só que com poucas vozes.
Tinha, tem. São poucas vozes, e a chamada esquerda não assumiu isso. Poderia ter pego essa agenda, se tivesse tido inteligência, dinamismo, vitalidade. Qual o único país em que a esquerda ganhou as eleições – tirando a América do Sul, que tem sido um caso diferente? A Islândia! Ganhou para gerir uma falência radical. Mas, na Inglaterra e na Alemanha, ganhou a direita. Isso tem a ver com o fato de que a esquerda tradicional não foi capaz de fazer uma reciclagem de seus valores, de propor um mundo novo. E teria tudo pra propor.
Talvez por isso a política tenha ficado tão esvaziada?
Talvez sim. Eu acompanho aqui na universidade muito o discurso dos sindicatos, docentes, funcionários. Há toda uma linguagem, até marxista, mas não tem um projeto de sociedade, de uma sociedade justa. Existe uma demanda de maior salário, de maiores verbas, às vezes muito justas, mas sem projeto.
E quanto à academia, o quanto ela tem discutido isso?
Tem iniciativas muito boas. Se a gente pega uma referência ética, o Aziz Ab’Saber, o que ele pensou em termos da Amazônia… O que falta é a chamada vontade política de executar isso. A gente volta à questão de como converter as ideias em atos.
Precisa da emoção e do envolvimento, como abordamos na edição passada.
Concordo. O Brasil era “atrasado” em face da Europa, porque a nossa política dava importância muito grande ao afeto, enquanto a europeia era mais racional. Afeto Autoritário é o nome de um livro meu, aliás. “Eu amo São Paulo” era propaganda do (Paulo) Maluf, “Eu Amo a Bahia” era propaganda do ACM (Antonio Carlos Magalhães). Já o PSDB é um partido da razão – eu me lembro de uma campanha em que eles apresentavam Fernando Henrique, (Mario) Covas e mais um deles dizendo “honradez e competência”. É um discurso muito racional, mas que não pode virar slogan. Ninguém vai sair na rua gritando “honradez e competência!”
Enquanto isso, o PT foi capaz de pegar esses elementos afetivos e introduzi-los na vida política desde o começo dos anos 80. E o presidente Lula tem uma capacidade de tradução disso fabulosa. Quando o Fernando Henrique dizia que não podia fazer uma coisa que tinha prometido, ele falava em (Max) Weber: ética da responsabilidade. Já o Lula fala no tempo que uma jabuticabeira demora para crescer – então é uma linguagem que vai mais pelo afeto, mas o objetivo dos dois é o mesmo.
Outros líderes latino-americanos têm isso. É uma coisa da América Latina, não do resto do mundo. É a nossa contribuição. A contribuição que a gente pode dar para renovar a política é essa. A política se tornou enfadonha na Europa etc. porque virou uma coisa de cálculo. O próprio Obama introduziu um elemento de afeto poderoso. Então, isso é o que pode salvar a política. E o nosso caso – independente da posição –, em face do PT como um todo, é talvez o melhor caso. Porque temos realmente um partido que se constituiu com base nisso e tem um líder que representa a quintessência dessa capacidade de apelar ao afeto, mas um afeto democrático, não autoritário. A possível herdeira dele não tem essa característica, então não sei como isso será de agora em diante.
Mas, de fato, a maneira de mobilizar politicamente, de dar vida, é fazer com que não seja apenas uma conversa de deveres, e sim de convicções. Se o valor é convicção, aí muda. O Al Gore disse que as causas só pegaram nos EUA quando viraram éticas e religiosas. A luta contra o apartheid pegou quando você teve um pastor pregando. Doutor Martin Luther King. Compara um discurso como “I had a dream” com um discurso sobre a Previdência Social. Se for pra mexer no mundo, precisa ter essa capacidade de entusiasmar.