Olhar para o Universo faz lembrar quão raras são as condições para que floresça a vida complexa
Um astrônomo (ou astrobiólogo) de outro planeta, ao apontar seus poderosos telescópios para a Terra, reconheceria imediatamente que ela tem uma biosfera, pelo simples fato de sua atmosfera exibir oxigênio livre (O2). Não se espera que oxigênio livre esteja presente em uma atmosfera planetária de um planeta sem vida. Como ele é altamente reativo, seria removido pela oxidação de gases atmosféricos e materiais da superfície. A sua abundância exigiria uma vasta fonte biológica. Se as plantas e as cianobactérias (bactérias que realizam a fotossíntese) da Terra fossem eliminadas, o oxigênio desapareceria da atmosfera em cerca de 10 milhões de anos. Um piscar de olhos em comparação com os 4,55 bilhões de anos da Terra. Mesmo a muitos anos-luz de nós, o ET concluiria que a Terra é um planeta vivo.
Planetas que não são dominados pela vida têm uma atmosfera neutra. No Sistema Solar, Marte e Vênus, apesar de terem distâncias do Sol e tamanhos similares aos da Terra, têm atmosferas tediosas, compostas pelos gases não reativos nitrogênio e dióxido de carbono. A vida até pode ter florescido no passado remoto de Marte e Vênus, mas agora mirrou ou desapareceu. Para Marte, ainda resta alguma esperança; a vida pode refugiar-se em criptoecossistemas (ecossistemas escondidos) no subsolo.
Marte e Vênus não apresentam o Efeito Gaia, em que os organismos vivos e o meio planetário evoluem como um único sistema autorregulador. Na Teoria de Gaia, proposta por James Lovelock, em um planeta dominado pela vida, a atmosfera estaria fora do equilíbrio termodinâmico. É esse desvio do equilíbrio que permite detectar biosferas em outros planetas. (Mais em Lovelock, James. “The Living Earth.” Nature, 426, p. 769-770/2003).
Vida é, antes de tudo, não equilíbrio sustentado por períodos de tempo extremamente longos. Isso graças a mecanismos de autorregulação muito sintonizados. No nível do indivíduo, tal sustentabilidade do não equilíbrio é realizada por complexos processos autopoiéticos corporais. O corpo de um ser humano, capaz de viver 100 anos, ao morrer, tornase um cadáver, que se decompõe em dias. No nível planetário, esta insustentável sustentabilidade é realizada pelo sistema da biodiversidade da biosfera, que tem mantido a Terra viva por quase 4 bilhões de anos, apesar de cada espécie em separado durar em média alguns milhões de anos.
Astrobiologia e biodiversidade
Mas… o que é a astrobiologia? Ela é uma das mais jovens fronteiras da ciência, que estuda a vida no contexto cósmico. O Nasa Astrobiology Institute (NAI) define a astrobiologia como “o estudo do Universo com vida” (the study of the living universe). Essa definição inclui o estudo da vida na Terra, pois eventos astronômicos afetam a origem e evolução da vida, e a vida está em expansão para além da Terra.
O NAI resume a vocação da astrobiologia nas três questões fundamentais: como a vida se originou e evoluiu, se existe vida em outras partes do Universo e qual será o futuro da vida na Terra e além (mais aqui). Essas questões se desdobram nos eixos da pesquisa astrobiológica [1], cuja sequência corresponde a um peso crescente de considerações sobre biodiversidade.
[1] Os eixos são: história da complexidade cósmica, universo molecular, habitabilidade, Sistema Solar, exoplanetas, extremófilos, origens da vida, bioassinaturas, evolução das biosferas, e ação humana na Terra e além.
A ONU declarou 2010 como o Ano Internacional da Biodiversidade, e as pesquisas da astrobiologia sobre a evolução das biosferas permitem que ela dê contribuições originais à compreensão do tema. Como parte das celebrações do ano, realizou-se em 2 de março o painel “Astrobiologia e Biodiversidade”, no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP, dentro da disciplina “A Vida no Contexto Cósmico”. Durante o painel, partindo-se da astrobiologia, surgiram reflexões penetrantes sobre o papel da diversidade biológica para a manutenção da biosfera e estratégias para evitar perdas dessa biodiversidade. (Saiba mais sobre a disciplina de graduação oferecida pelo IAG)
A biosfera terrestre não está isolada do Cosmos. A queda de um asteroide na Península de Yucatán, no México, há 65 milhões de anos, teria desencadeado a extinção dos dinossauros. Asteroides e cometas, supernovas e gamma ray bursts (surtos de raios gama) podem causar extinções em massa. Estas não são de todo ruins, pois uma extinção em massa é seguida por uma onda de inovação de espécies.
Deixando de lado esse “aspecto positivo” das catástrofes cósmicas, o céu também fertiliza. Neste momento, meteoros enriquecem a Terra com 5 mil toneladas de carbono por ano. Na Terra primitiva, essa taxa foi muito maior. Cometas e asteroides abasteceram o planeta com água e substâncias orgânicas complexas em abundância. Pode até ser que esses corpos tenham “infectado” a Terra com (proto)células geradas em outro local do Sistema Solar ou da Galáxia. A composição química de nossos corpos reflete mais a do Universo do que a da crosta terrestre. Afinal, somos filhos da Terra ou do Cosmos?
Nada como a nossa casa
Uma consequência fundamental do olhar no Universo é percebermos o quão preciosa é a Terra no cenário cósmico. A história da Terra revela que a vida bacteriana pode surgir com relativa rapidez. Os primeiros sinais de vida datam de umas poucas dezenas de milhões de anos depois do término da intensa fase de bombardeamento da Terra por asteroides e cometas, há 3,8 bilhões de anos. Já a vida complexa (algas vermelhas multicelulares) só surge 2,6 bilhões de anos depois. Por esse motivo, a astrobiologia concentra suas buscas de vida em micróbios, pois seria muito menos provável que a vida complexa surja ou sobreviva na imensa maioria dos mundos da Galáxia.
Vida complexa exige não só que o planeta experimente estabilidade por bilhões de anos, mas também abundância de energia e materiais biogênicos para seres vivos de grande porte. Nesse sentido, a Terra tem vários “dons” preciosos:
• Tamanho adequado, nem muito grande – senão seria um planeta gasoso – nem muito pequena – senão perderia sua atmosfera.
• Distância correta da estrela central (o Sol) para haver água líquida; se estivesse mais próxima, toda a água estaria na forma de vapor; se mais distante, congelada. Na Terra, as três fases da água convivem – líquida, gelo e vapor –, promovendo a complexidade.
• Eixo de rotação estável, com a obliquidade variando entre 22º e 25º, aproximadamente; sua grande Lua evita o caos no eixo de rotação terrestre.
• Órbita em torno do Sol estável e com pouca excentricidade, evitando extremos de calor e frio.
• Tectônica de placas, que repõe o CO2 necessário para a continuidade da vida; a presença de radioativos – urânio, tório e potássio 40 – mantém o calor interno necessário para a convecção do magma que movimenta o sistema das placas tectônicas.
• Campo magnético, que protege do vento solar.
• Camada de ozônio, que bloqueia a radiação UV nociva à vida.
• Oxigênio livre abundante, favorável a organismos complexos; foi o surgimento das cianobactérias que gerou uma atmosfera rica em oxigênio.
A Terra reúne todas essas condições, algumas delas muito improváveis (a Lua e as cianobactérias). Isso justifica o cenário da “Terra Rara”, no qual nosso planeta seria quase único na Galáxia. Apesar dos 200 bilhões de estrelas da Galáxia, sendo otimista, haveria no máximo umas 100 Terras. A Terra é um verdadeiro jardim da nossa Galáxia. Surge o homem, que resolve tornar-se um jardineiro do Jardim Terra. Ele, porém, revela-se um jardineiro muito desastrado.
Para conhecer melhor a astrobiologia, confira os artigos “Filhos da Terra ou do Cosmos?” e “Eixos de pesquisa em Astrobiologia“
* Astrofísico e pesquisador do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP.