Por Amália Safatle
Tem que saber disso. A rima rítmica na fala de Gilberto Gil está no seu entendimento do que é Brasil. Na leitura do músico, quando José de Anchieta colocou os índios no colo, em profunda manifestação de afeto, reforçou um traço definidor da nossa sociedade. Traço este que havia começado a se delinear na formação de um reino europeu diferenciado. Pois, enquanto os demais exploradores foram guiados pela ambição material e pela busca de acumulação de riquezas, o projeto de expansão territorial dos portugueses fundamentou-se “no reino do Espírito Santo, no reino da criança, da inocência”. Degredados que aqui deram início à miscigenação eram considerados criminosos porque fugiam da Inquisição, diz Gil nesta entrevista.
Assim, o Brasil se fundou no ideário de liberdade e espiritualidade, reavivando o mito de que esta é a terra da promessa, do encantamento, do conto de fadas, dançado nos Carnavais – com todos os problemas que isso também acarreta. Um lugar que, para contragosto de muitos, subverte o modelo clássico europeu e tem nas mãos um pacote estratégico a oferecer a um mundo carente: afeto.
Mas que não está condenado a ser alguma coisa, e sim fadado a ser. Lembrando que o fado não é uma rigidez no tempo e no espaço, o fado é uma canção. “O fado é o que a gente faz”, diz o bruxo Gil.
Na sua opinião, o que melhor a sociedade brasileira tem para oferecer ao mundo? O que o Brasil produz que faz a diferença? O Brasil é uma nação que resulta de uma série de coisas particulares, próprias, de que outros povos não resultaram. Isso para tratar do Brasil que depois leva este nome e se torna a nação configurada neste território, com presença dessas múltiplas vertentes étnicas. A ameríndia estava aqui já, o português que chega, o africano que é trazido depois. A formação da sociedade brasileira, e depois o Estado brasileiro: primeiro o Estado monárquico, depois o imperial, depois o republicano e, em meio a tudo isso, a sociedade foi marcando seu dia a dia dentro dessas possibilidades de configuração e com todos esses elementos. O português chegando aqui, começando a miscigenação com os índios, depois com os africanos e criando essa nação mestiça, mameluca, cabocla…
Então é a diversidade que faz a diferença? A diversidade existe em qualquer lugar. A diversidade brasileira é esta. É diferente da diversidade americana, é diferente da Europa gaulesa, que é outra, da Europa escandinava, que é outra, da Europa eslava, que é outra, das Áfricas várias, que são várias, da América Latina, que é outra configuração, com a vertente espanhola que se mistura a povos andinos… Então a brasileira é a sua, a que foi “conscrita” neste território, com esses povos que fizeram o Brasil com essas expressões culturais desenvolvidas aqui. Brasil é Brasil, não é a Argentina nem a Inglaterra. É o Brasil.
Este Fórum Internacional Geopolítica da Cultura e da Tecnologia (ocorrido em São Paulo em meados de novembro), cuja curadoria teve sua colaboração, fala em transformar nossa singularidade em um valor estratégico que beneficie quem a inventou – o povo. Que características estão aptas a ser transformadas em valor estratégico real nesse reposicionamento do mundo, nessa nova geopolítica? A vocação para uma configuração de uma comunidade mais integrada. Mais integrada a partir de elementos fortes da espiritualidade, da fantasia, de uma subjetividade criativa, “celebracional”, mestiça em vários sentidos, com a preferência pela efusividade, pela alegria, enfim, pela solução afetiva de conflitos, gentil, cordial.
Que ao mesmo tempo tem uma violência… Tem. Nada é só bom. Mas a gente está falando dessas características configuradas num território, numa população mestiça, falando uma língua trazida da Europa, mas ao mesmo tempo trazida por um povo europeu muito distinto dos outros povos, quer dizer, com ambições diferenciadas em relação aos espanhóis, aos ingleses, aos franceses. Os descobrimentos portugueses estavam inspirados pelo Espírito Santo. Anchieta colocava os índios no colo e, apesar de minimamente estar submetido aos desígnios colonizadores do seu povo europeu, tinha pelos índios um amor… Foi ele quem insistiu e conseguiu que a Corte Portuguesa não escravizasse os índios. Então essas coisas estão na origem brasileira. Foi ele quem colocou os instrumentos, os violões, as guitarras, as flautas na mão dos índios. Essa musicalidade extraordinária brasileira tem embrião nesses primeiros momentos. São ingredientes que podem configurar a construção de um “pacote estratégico brasileiro”, que pode servir não só para nós, para nos relacionarmos com altivez e grandeza com o resto do mundo, mas também para sermos elemento importante para essas outras culturas do mundo. Para ensinarmos, para sermos exemplo, referência a um mundo que está ficando muito complexo, está ficando muito confuso, está ficando muito célere, em que a formação de conflitos novos é exponencial. Portanto, têm valor estratégico humanidades que possam desenvolver capacidade de afeto, de concórdia, de compreensão mútua, de fruição, de entendimento mais profundo de sua relação com a natureza, de pertencimento à natureza – e, portanto, de respeito à natureza –, de integração de necessidades materiais com profunda capacidade de reverenciar o espírito. São questões estratégicas para a humanidade, vendo aí não mais a estratégia parcial da nação contra outra nação, não de um território contra outro território, e, sim, estratégia de vida para a humanidade no planeta.
Podemos considerar isso como o que há de mais moderno, no sentido de estar na ponta, estar na frente? Se houvesse um radar de inovação no globo, ele apontaria essas características como a “modernidade” que temos a oferecer? É isso o que a Terra está dizendo no modo mais atual, mais contemporâneo de entender a vida. Bem viver. Produção de futuro. Como produzir futuros desejáveis e sustentáveis, como produzir sociedades humanas mais integradas, como produzir sociedades humanas que vivam compartilhamentos mais efetivos de tudo, de riqueza material, de riqueza simbólica. É assim que a Terra vê o seu futuro, não é o Brasil (risos). Por acaso, coincide que o Brasil é um dos povos hoje em dia que mais podem contribuir para essa perspectiva futura da humanidade, porque ele já vem, desde sua formação, consolidando essa nova matriz de vida social.
Naquela sua canção com o Jorge Mautner, Outros Virão (sic)… Outros Viram.
Sim, desculpe. Mas pode ser Outros Virão, nesse sentido que nós estamos falando aqui. Mas ali é o oposto, é outros viram essa coisa no Brasil.
Sim. Mas por que, segundo a canção, eles viram e nós não? Por que não vimos? A gente se autossabota? É porque a gente só se vê no espelho. A gente só se vê na superfície quieta das águas, ou no espelho no sentido mais moderno do termo, essa superfície lisa na parede que reflete nossa imagem. Quem vê a gente por inteiro são os outros, são os de fora. A gente só vê uma parte da gente, a mão… A gente não vê nossas costas. Não vê o que está por trás… A gente só se vê parcialmente. Quem pode ver a gente mais inteiramente é o outro, então a canção é sobre isso: como os outros viram o Brasil.
E como viram? Como um lugar da promessa. Porque esse nome Brasil vem da raiz celta bras, que significa “terra encantada”. Quer dizer, já antes da descoberta pelos portugueses, o Brasil aparecia nos mapas medievais como uma terra da promessa. Ao longo da História, foi havendo uma reiteração dessa imagem, dessa visão, primeiro por causa dos índios levados para as cortes europeias, como exemplo de um ser humano íntegro, inocente, completo, pleno, belo. E depois toda a criação artística brasileira, o Carnaval, todas essas coisas que foram “sendo saídas” de um encantamento, de um conto de fadas. Então o Brasil está fadado um pouco a essa coisa, embora muita gente lute contra, porque queria uma inserção do Brasil em um modelo clássico, em um modelo ocidental europeu, que está justamente na cisão do processo civilizatório gestado na Europa. Gestado ali exatamente no início, quando os Cruzados vêm, uns para criar os reinos europeus montados na ambição material, na ideia de mais conquistas de territórios e produção de riquezas, de acumulação etc. etc., e outros, no projeto de ocupação dos portugueses, fundamentados no reino do Espírito Santo, no reino da criança, da inocência. Essas coisas são distintas na origem e o brasileiro não tem conhecimento dessas suas origens. Até rejeita um pouco a origem portuguesa, a coisa dos degredados. Mas quem eram os degredados? Quem eram esses criminosos? Eram criminosos porque estavam fugindo da Inquisição, porque professavam a fé no Espírito Santo, na chegada de um outro reino, na beleza da bondade e da verdade. O Brasil está nessas origens, enquanto a América do Norte e outras áreas da expansão europeia pelo mundo com a colonização estavam fundadas em outros pressupostos.
Isso que chamamos de fundação, esses traços fundadores que parecem tão definidores, faz com que estejamos fadados a repetir para sempre as coisas boas e também as ruins, como desigualdade, preconceito etc? O fado é uma canção, o fado não é uma rigidez no tempo e no espaço. O fado é dinâmico, ele continua submetido à dinâmica da passagem do tempo e da ação do homem. O fado é o que a gente faz. Não é só aquilo a que estamos destinados. Não é o destino. É um caminho para o destino. Não é como cair no fundo do poço de Alice no País das Maravilhas, e sermos jogados no lugar. Nós temos de caminhar até esse lugar. É um progresso, um processo, um caminhar. Portanto, a tomada de consciência em relação a isso é profundamente importante. Nós só vamos caminhar numa direção se soubermos qual é essa direção, se tivermos olhos voltados para vê-la, identificá-la, e construir o caminho que leva até ela. Essa é a questão brasileira. Não é uma condenação. O brasileiro não está condenado a ser alguma coisa. Ele está fadado a ser alguma coisa.
Um dos problemas do Brasil e da América Latina é a corrupção? A corrupção é um problema da América Latina? Não, a corrupção é um problema da humanidade. Há sistemas de relacionamento social que facilitam, propiciam – uns mais do que outros –, a corrupção. Há sistemas jurídicos e sistemas econômicos que facilitam mais ou menos a corrupção. Mas a corrupção hoje em dia, nesse sistema que está aí, que foi autorizando cada vez mais a exploração de uns por outros, a imposição de poder de uns sobre outros, surge por decorrência da própria falência natural que os sistemas vão sofrendo. A falência dos controles, dos princípios. Toda vez que se quer escorregar para infringir uma norma, a corrupção é uma das formas. E não é uma questão brasileira.
Qual é a questão brasileira? Não há uma. A questão brasileira é sermos o que somos no dia a dia transformador. Transformarmo- nos do que somos no que seremos e no que não seremos. É essa a atuação permanente da vida sobre nós e de nós sobre a vida. O Brasil não precisa desenhar destinos e nem nada disso, não… Basta viver e pautar esse viver pela ideia do bem, do bem viver. Cada vez entender melhor, coletivamente, o que é bem viver, o que é produzir a sua continuidade da maneira mais amena possível. É criar bem-estar!
Nós temos alguns caminhos aí, como a indústria criativa. Estávamos falando de diversidade cultural. Temos também uma diversidade biológica muito grande. São grandes riquezas, mas curiosamente a economia brasileira não vive disso. Por que será? Em que medida o Brasil será capaz de se desgarrar dessa monocultura mundial, em que vemos o utilitarismo, a produtividade vista sob um certo aspecto enviesado e a prevalência do poder do mais forte, o “privilegiamento” dessa hierarquização, dessa forma de aceitar o primado do mais forte sobre o mais fraco? A questão é se o Brasil será capaz de sair disso para realmente produzir uma sociedade de mais igualdade e fraternidade, mais fundada em princípios que são enunciados, anunciados, mas muito pouco perseguidos verdadeiramente pelo conjunto da humanidade. A questão é se o Brasil será capaz – e possivelmente não poderá fazer isso sozinho – de juntar outros povos do mundo nessa proposta. Quer dizer, vamos caminhar mesmo? Vamos ter o caminho do nosso destino? Isso é o nosso fazer. O fato de estarmos discutindo isso, procurando compreender possibilidades agora de fazermos isso já é um sinal de que estamos querendo caminhar nessa direção. Por que vocês que produzem e publicam informação estão querendo saber disso? Por alguma razão. Porque percebem que se quer saber disso. Percebem que o Brasil e o mundo cada vez mais querem saber disso. É sinal de um sinal que está por aí. Sinal de que está no radar, usando a expressão que você colocou.
Há seis anos, metade do primeiro mandato do presidente Lula, eu (Ana d’Angelo) o entrevistei como ministro da Cultura e convidado do Fórum Mundial das Culturas, em Barcelona. Interessante lembrar disso, porque naquela época o País entrava na moda na Europa, havia um clima de otimismo, não se falava em crise. Havia quase uma reverência para com o Brasil. E hoje, seis anos depois? Acho que isso aumentou muito no mundo. Evidentemente que toda essa atitude reverente de expectativa positiva em relação ao Brasil tinha muito de modelos anteriores que se buscava repetir, dimensões utópicas já consagradas, que se gostaria de ver realizadas, manifestadas. Tinha muito de um sonho da Europa frustrada por não ter sido aquilo que ela própria quis ser. A Revolução Francesa que ficou pelo caminho, a Revolução Americana que ficou pelo caminho, as revoluções todas outras que ficaram pelo caminho. E, de repente, a gente quer outra dimensão messiânica, alguém que seja o restaurador, o salvador. E chega uma hora em que o mundo também começa a querer ver o Brasil sob essa ótica. E talvez não, possivelmente o Brasil não será nada disso e é desejável que não seja exatamente isso. É desejável que seja uma coisa nova, desconhecida, a ser construída. Nesse sentido, acho que essa expectativa cresce, mas com uma qualidade instrutiva, quer dizer: cada vez mais o mundo todo espera do Brasil, mas cada vez mais se espera uma coisa que não se sabe o que é (risos). Isso vai proporcionando capacidade de diálogo, de conversa, de entendimento, de afetividade, atratividade. O Brasil vai se tornando atraente e vai atraindo também…
Quando se sabe muito bem o que se quer não se tem inovação, certo? Não tem! Então é assim, feitiço. O Brasil é feitiço, tem que saber disso…
E no governo Dilma, alguma possibilidade política? Para mim, não. Não quero mais, não.
Já teve a experiência… Já e não quero, não me sinto capacitado. O político tem de trabalhar com exiguidades muito precisas. Um senso muito preciso de impossibilidades, de limites, de redução de horizontes etc.
É o oposto da arte, não é? É o oposto da arte.
Além disso, o orçamento da Cultura diante dos outros ministérios é de chorar… Também é muito pequeno. Com toda a gritaria que a gente fez, a gente não conseguiu chegar a níveis razoáveis de recursos. Mas estamos aí para ajudar. Acho que a parceria dos governos com a sociedade é algo cada vez mais importante, no sentido de que os governos entendam que as sociedades precisam andar. Apesar de as sociedades não saberem para onde, o governo tem de ter um pouco dessa capacidade interpretativa, de leitura dos desejos ocultos. Espero que o governo da Dilma e tantos outros governos no mundo tenham essa capacidade de entender essa relação profunda com o desconhecido, essa relação respeitosa com o desconhecido para que ele seja fonte de instrução para o conhecido, para a busca do conhecimento. Espero que esse espírito, essa visão, esteja – se possível – em todos os governos do mundo.