A ideia era só passar um dia no Acampa Sampa, ou Ocupa Sampa, para escrever sobre a manifestação dos indignados brasileiros que desde o dia 15 de outubro moravam no Vale do Anhangabaú num protesto por mudanças no atual sistema, porque esse “já não dá mais”. Cheguei justamente quando o acampamento estava sendo levantado porque o movimento entrava em uma nova fase e ficar no Vale se tornara difícil. Ninguém sabia muito bem o que estava por vir, apenas que elespassariam os próximos dias na Avenida Paulista, como acontecia até a conclusão desse texto. A cada dia, as assembleias decidem os próximos passos, no estilo “viver um dia após o outro”.
Na tarde do dia 23 de novembro, o clima entre os que faziam as malas era de alívio, ansiedade e reflexão, mas o idealismo e a vontade de continuar o movimento permaneciam no ar. Todos falavam das alegrias e dores de viver nas ruas do centro de São Paulo. A trocou o conforto do lar pelas barracas no chão sujo da cidade e as palavras “comunidade”, “aldeia” e “tribo” apareceram em todas as conversas. De fato, montou-se ali uma vila: com uma área para barracas, horta de temperos, biblioteca, cozinha e a área verde do Vale fazia as vezes de jardim onde muitos conversavam, tocavam
música ou debatiam os rumos do mundo.
Foi a maior experiência antropológica e sociológica das vidas de muitos lá, como eles diziam. Os acampantes compartilharam alegrias, tristezas, alimentos, barracas, sacos de dormir, roupas e computadores para fazer a comunicação via internet. Muitos passavam até uma semana fora de casa e tomando banho na casa de conhecidos. No começo, postavam no Facebook alguns pedidos de doações – de durex a água – mas depois de poucos dias, as contribuições passaram a ser espontâneas, na maioria de anônimos e nunca receberam um só real.
E como em qualquer comunidade, compartilharam também momentos de tensão, como furtos de objetos nas barracas e brigas. Houve até o suicídio de um homem que se jogou do Viaduto do Chá. Ninguém o conhecia ou sabia o porquê daquilo, mas o susto foi grande e todo mundo citou esse como um dos momentos mais tensos. O outro foi um linchamento, resultado de uma briga entre moradores de rua, que quase terminou em outra morte.
Um dos desdobramentos não previstos no movimento foi a integração com a população de rua atraída pelas barracas debaixo do Viaduto do Chá. Além de amplo e coberto, o lugar estava mais seguro ocupado. Eles passaram a dividir o espaço, as conversas, a biblioteca e as refeições. O que era compartilhamento virou assistencialismo – em um único almoço, foram servidas 300 refeições. Embora várias pessoas tenham se envolvido com o movimento, outras não respeitavam as decisões tomadas em ocorreram conflitos. A convivência foi ficando delicada e o pessoal do Acampa sentiu que já não tinham tanto controle do que estava acontecendo.
Átila Robson Pinheiro, coordenador regional do movimento nacional da população em situação de rua, afirmou que um ponto positivo da integração foi encurtar as distâncias entre essa população e os manifestantes por meio do diálogo, feito “de igual para igual.” Ele confessou, no entanto, que criar vínculos nem sempre foi fácil porque havia falta de confiança, mas fez questão de ressaltar que não leva mágoas. “Reproduzimos aqui uma sociedade como a que enfrentamos lá fora e aqui lidamos com os conflitos de forma pacífica e com diálogo, sem intervenção do Estado. O que vimos foi uma aproximação da academia com a vida real. Estudantes trouxeram ensinamentos teóricos para onde está a prática”, conta.
Átila trabalha há anos na assistência a moradores de rua e o Acampa facilitou seu trabalho. Com a concentração de pessoas e a aproximação entre elas, foi possível encaminhar seis homens para albergues, tratamentos de drogas ou vagas de emprego num curto espaço de tempo. “Foi uma situação de maior transparência com eles devido ao convívio e compartilhamento no dia a dia aqui”, diz.
Essa convivência entre moradores de rua mexeu com quem deixou o conforto do lar por opção, como o baiano Cleber Cajueiro. Ele viajava por São Paulo quando soube do Acampa e como achou que as ideologias do movimento eram as mesmas que as suas, pegou as malas e ficou morando lá.
Cleber se dizia incomodado com o descaso com os moradores de rua e o preconceito “baseado nas roupas que você veste”. Ele foi barrado na entrada no shopping Light quando usava camista,calças e sandálias. Depois disso, colocou as roupas mais velhas e sujas que tinha e foi pedir esmola nas ruas só para ver o que aconteceria. “Você deveria fazer isso um dia, aliás, todo mundo devia fazer pra sentir como é estar do lado de quem precisa de ajuda. Me senti muito rejeitado naquela condição.”
Ele ainda não sabia se continuaria em São Paulo ou iria para o Rio de Janeiro acompanhar o Acampa Rio, mas tinha certeza de que o movimento em São Paulo já havia avançado no debate dos problemas da sociedade e se sentia diferente. “Não adianta a gente querer mudar um sistema inteiro se antes não mudarmos o que está dentro de nós e tenho certeza que o Acampa transformou muita gente que teve a chance de ver e viver o que fizemos aqui”, diz.
Abraçar bandeiras
Uma das críticas que o Acampa Sampa sofre é da diversidade de causas que abraçam, sem foco. O que os “indignados” do Brasil querem é debater como mudar a estrutura social e política que se mostra hoje problemática. “Falam que não sabemos o que queremos construir, mas não acho que devemos saber porque estamos pensando em algo novo e o momento é de apontar o que está errado e ruim”, afirma Alexandre Facciolla, que estava acampado desde o dia 18 de outubro.
Para ele, manifestar-se contra a corrupção, por exemplo, é válido, mas chega a ser ingênuo se não há debate sobre toda a estrutura defeituosa que gera o corruptor e o corruptível. Outro acampante, Fabrício Lima, completa: “Esperam que gente tenha uma árvore pronta, mas só estamos plantamos uma semente de debate.”
Fabrício explica que o importante não é que as pessoas abracem uma bandeira, mas que entendam todas as que estão lá, entre elas, há o feminista, punk, por mais verbas à cultura, habitação e o movimento Passe Livre. O único veto foi à entrada de partidos políticos no movimento. “Não vamos abraçar bandeira se não entendemos que política é essa que está sendo feita”, diz Fabrício.
“Passou por aqui o movimento contra Belo Monte e o por habitação. Tirar famílias de um prédio ocupado para devolvê-lo ao dono que vai deixar o imóvel ocioso e tirar uma população da Amazônia para construir uma hidrelétrica são questões muito próximas”, afirma Alexandre.
Deixar o Vale do Anhangabaú foi necessário porque o movimento perdeu a força e se tornou invisível. A abertura diversas pautas gerou problemas de conflitos de interesses e nas duas semanas anteriores, perdia-se mais tempo “apagando incêndios internos” do que debatendo política, como explica Alexandre Facciolla.
Uma das propostas é tornar o Acampa itinerante e ocupar outros pontos da cidade de acordo com novas pautas. Essa movimentação de montar e desmontar barracas será uma forma de filtrar quem realmente está interessado, segundo Caio Castor, um dos jovens mais atuantes desde o inicio.
Ocupa Anhangabaú
Enquanto os últimos jovens saíam do Vale do Anhangabaú, cerca de 20 moradores de rua decidiam ficar no local. O problema era que sem a liminar que liberava o Acampa Sampa até então, eles temiam que a polícia e a prefeitura os expulsasse de lá. Por isso, algumas pessoas adiaram aida à Avenida Paulista por algumas horas para garantir a segurança dos moradores – e eu fiquei com eles.
Perto das 22h, a primeira assembleia inaugurava o “Ocupa Anhangabaú” e moradores decidiram seguir com suas próprias reivindicações, que ainda seriam alinhadas entre todos. Um dos moradores de rua propôs que uma das regras permanecesse: a proibição de drogas e bebidas alcoólicas no espaço. A reação descrente dos outros foi imediata e o chamaram de mentiroso. Sem perder a fala calma, ele afirmou que era mesmo usuário de crack, mas que não consumiria lá e preferiria ir até a Cracolândia porque o Vale seria “a nova casa deles que merecia respeito e ser um espaço de debate político.”
A faixa “Ocupa Anhangabaú já estava pintada com spray enquanto algumas pessoas organizavam as barracas que haviam sobrado e improvisavam novas “casas”. Entre elas, os corredores davam a ideia de se tratar mesmo de uma rua, como se aquela cidade estivesse sendo construída naquele instante.
Uma das moradoras de rua estava em dúvida se ficaria no Vale, com medo da insegurança da falta da liminar. Ela estava com o marido e os filhos, um de menos de um ano e umamenina de 3. Movidos pelo clima de solidariedade e amizade estabelecido, dois amigos do Acampa procuraram um albergue para encaminha-los, mas não acharam. Ao saber disso, outra moradora de rua pegou o bebê no colo e passou a dar ordens aos homens por perto: “Pega esse tapete e põe aqui” – apontando para o chão dentro de uma estrutura de madeira, em forma de um cubo alto. “Essa é a sua casa. Você pode até ficar de pé nela com seu filho”, dizia sorrindo enquanto andava pelo cubo de uns 1,5 metros quadrados, agora coberto com lona.
Olhei para as pessoas que horas antes haviam me dado entrevistas sobre o fim do Acampa naquele lugar e os todos se olhavam com orgulho. Um dos garotos me fez sinal de “estou arrepiado de emoção”. Eu também estava. O movimento, ainda que ninguém soubesse o que seria, estava nascendo aos poucos e se organizando sozinho. Seriam agora duas frentes de ação, o Ocupa Sampa e o Ocupa Anhangabaú. A multiplicação do movimento, que horas antes era apenas uma ideia, tinha chegado mais cedo do que os jovens idealistas tinham imaginado.