POR AMÁLIA SAFATLE
FOTOS LUIZA XAVIER
O termo “extraordinário”, na administração pública, não significa algo necessariamente bacana, mas um cargo que se autoextinguirá em determinado prazo. Assim Fernando Lyrio define sua função, a de atuar – com vistas à Rio+20 – como um ponto de interlocução e costura dentro do Ministério do Meio Ambiente, entre as demais pastas do Executivo e entre o governo e os diversos setores da sociedade. E o desafio não se resume a isso: o assessor extraordinário do MMA designado para a conferência identifica como tarefa crucial contribuir para dar mais ambição ao Rascunho Zero – documento compilado pelas Nações Unidas que serve de base para todo o processo de discussão entre os quase 200 países que estarão representados no Rio de Janeiro, em junho.
Para ele, os temas a serem debatidos envolvem questões muito concretas, como a de rever o uso do PIB como principal indicador. “O Rascunho Zero precisa crescer em ambição. Os temas estão lá, mas precisa dar carne a eles. Esse é um trabalho que a gente vai ter ao longo dos próximos quatro meses”, diz.
Sendo a Rio+20 uma conferência sobre desenvolvimento sustentável, e não sobre meio ambiente, de que forma o MMA tem interagido com os demais ministérios, especialmente da área social e econômica, na consolidação de uma posição brasileira?
A conferência não é apenas de meio ambiente, mas o meio ambiente foi tradicionalmente a porta de entrada para a discussão da sustentabilidade. O desafio agora é trazer outros setores. No âmbito do processo preparatório do governo brasileiro, a gente tem conseguido trazer as áreas econômica e social. O processo que saiu do documento brasileiro de preparação de visões e perspectivas para a Rio+20 e o processo das nossas visões em torno do Rascunho Zero têm contado com o aporte constante e muito engajado dos ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento Social. Com o MMA, compõem a secretaria-executiva da comissão e cada um tem o papel de engajar os demais atores e ministérios. Então, esse é um desafio muito grande de governo, mas temos conseguido avançar. É um processo lento, porque é novo. Passou a haver uma discussão muito grande no setor financeiro, agrícola, dos movimentos sociais, que tradicionalmente não acompanhavam essa discussão.
Qual a principal dificuldade dessa interlocução?
Não é a dificuldade de interlocução, mas a de enxergar as três coisas juntas. Como essas dimensões se coordenam, se orientam? Quando falamos de energia, por exemplo, existe um componente social, que é o de oferecer energia para todos, é uma meta do governo. Ao mesmo tempo, tem o lado ambiental, que tipo de energia vamos oferecer, qual o impacto do ponto de vista dos recursos naturais e qual o custo ambiental que a gente quer pagar por isso? E, depois, como fazer tudo isso dentro uma viabilidade econômica? Toda a discussão do desenvolvimento sustentável passa por trabalhar transversalmente.
Diante desse desafio da transversalidade, quais as chances de o governo brasileiro se apresentar coeso, com uma posição internamente alinhada, ainda mais tendo uma presidente da República historicamente pouco envolvida com a temática da sustentabilidade?
Esse tem sido um processo interno, de construção de posições. O processo de construção do documento brasileiro, que foi apresentado em novembro – aquele que cada país tinha de apresentar –, contou com participação da sociedade, mas era um documento de governo. E era um documento com elementos da agenda ambiental. Quando o documento fala da revisão do PIB e em indicadores da sustentabilidade para as empresas, tudo isso que havia sido colocado pela agenda ambiental hoje é defendido pelo Ministério da Fazenda. Quando se fala de revisar o PIB, pode-se perguntar como fica a posição brasileira no ranking mundial, mas mesmo assim houve uma discussão de governo para encaminhar essa percepção de que o PIB tenha de ir além da questão econômica.
Então, essa coesão de governo está sendo construída. E o papel da presidenta é o de orientar e arbitrar. Ela deu suas opiniões, validou, e sua preocupação é a de que a sustentabilidade vá além da ambiental, e contemple as questões sociais e econômicas. Os desafios do País são se desenvolver economicamente, oferecer energia, infraestrutura, transporte, atender as aspirações da população e ainda distribuir renda, promovendo conservação ambiental.
Além da postura desenvolvimentista que se percebe na gestão federal, o Brasil vive uma euforia de país emergente, em que crescimento econômico e aumento do consumo são facilmente confundidos com desenvolvimento. Isso não só internamente: o Rascunho Zero, por exemplo – esta crítica veio do meio científico –, não explicita uma ideia elementar, que é a noção de limites ecossistêmicos, como se a economia pudesse crescer indefinidamente. Com isso, o senhor acredita que corremos o risco de lançar bases de uma conferência que não revê a fundo modelos de desenvolvimento, e, sim, abre espaço para um crescimento econômico “esverdeado”?
Você tem razão quando fala que o desenvolvimento muitas vezes se confunde com a inserção das pessoas no mercado de consumo. No caso brasileiro, tivemos um processo de inclusão social muito grande. Essa discussão, de produção e consumo, que polariza os países do Norte e do Sul, está presente de maneira muito forte na Rio+20 como um elemento pouco agregador. Obviamente, os países desenvolvidos não querem rever seus padrões de consumo e, ao mesmo tempo, os em desenvolvimento aspiram padrões de consumo diferenciados e há um limite para o planeta. A questão não é impedir o consumo, mas que tipo de consumo você tem. É reconhecer que há aspirações legítimas de energia, de bens de consumo. Lembro que vi um vídeo de um sueco que contava sobre quando chegou a máquina de lavar roupa na casa dele, e o que isso significou quando viu que a mãe passou a usar o tempo que usava lavando roupa para ler livros para ele. “A máquina de lavar roupas trouxe livros para minha casa”, ele disse. É desse tipo de coisa: que tipo de consumo a gente quer?
Estamos falando de qualidade do crescimento?
Temos de crescer de maneira qualitativa. Não é saudável que países em desenvolvimento se mirem nos desenvolvidos. Os países desenvolvidos têm de ser trazidos para discussões da revisão de consumo. Trata-se de uma revisão profunda do modelo de desenvolvimento global, fundamentalmente baseado na quantidade de consumo, e esse ainda é o padrão de progresso. Se essa discussão não entrar em jogo, aí realmente a Rio+20 deixa de cumprir seu papel essencial.
O senhor veio participar de um evento empresarial sobre mudança climática (promovido pelo programa Empresas Pelo Clima). Em sua visão, o setor empresarial brasileiro já está suficientemente engajado na questão? Quanto falta para que efetivamente os modelos de negócio sejam alinhados com o modelo de desenvolvimento que queremos?
Em toda a discussão sobre sustentabilidade, o mundo inteiro está no começo. Embora essa discussão seja antiga, os países desenvolvidos já avançaram na questão social, mas têm um padrão de consumo que não é o adequado. Tanto o mercado internacional como o brasileiro começam a orientar as ações do setor privado, que é um vetor muito importante de transformações. No setor privado brasileiro, há muitos atores que de fato têm preocupações e consciência e outros que não têm, mas estão se inserindo nisso, porque o mercado exige. Esse é um processo incipiente, porque o mercado e o nível de conscientização da população brasileira ainda não são suficientes. Existe um papel do Estado também, que é o de conscientização e de educação, e, nesse sentido, cabe à Rio+20 a função importante de trazer esses temas para o debate. Hoje tudo funciona por cadeias. Ontem (15 de fevereiro), eu conversava com o pessoal do Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e estamos fazendo um trabalho com grandes empresas, como Braskem, Petrobras e Vale, no sentido de que as cadeias que alimentam estas empresas tenham de responder a padrões estabelecidos por elas. É uma forma de induzir o pequeno e o microempresário, que normalmente não são afetados no sentido da demanda, mas que possam responder a orientações de mercado da cadeia produtiva. (mais sobre na reportagem “Pequenos Poderes”, edição 58)
A Rio+20 corre o risco de ser um grande fracasso, no sentido de que não consiga acordar uma agenda prática e compromissos políticos que efetivamente se transformem em ações. Que planos B podemos e devemos preparar desde já, para que uma eventual frustração não tenha um efeito paralisante no pós-evento?
Por dever de ofício, a gente no governo não pode apostar no fracasso, a gente trabalha para o sucesso da conferência. O Brasil, ao se oferecer a sediar uma conferência desse porte, tem uma aspiração – não se trata apenas de fazer um evento. É o Brasil, 20 anos depois, repensando a ideia do desenvolvimento sustentável, avaliando o que andou ou não e renovando o compromisso para as próximas décadas. Por isso não falo em fracasso, e, sim, nas dificuldades e complexidades que o momento traz. Momento este de crise econômica muito forte, que não estava posicionada como agora quando o Brasil propôs a conferência, há três anos.
Se a crise econômica tivesse posicionada, o Brasil não teria proposto a conferência?
Aí que está. Eu penso que a crise econômica é uma oportunidade de falar: “Olha, nada está funcionando. Hoje, nem a economia está funcionando, o modelo não está funcionando”. Então, o fato de os governantes, por tradição, terem de lidar com o horizonte de curto prazo, para dar respostas de curto prazo à população, isso, de alguma maneira, difere da ideia de desenvolvimento sustentável, de olhar a longo prazo. O desafio da Rio+20, portanto, será como
encaixar essa discussão de curto prazo na de longo prazo. A Rio+20 se dará na sequência da reunião do G-20, que busca uma resposta imediata para a crise econômica, ou seja, os governantes vão sair do G-20 e cair no Rio de Janeiro. Então, até para evitar uma esquizofrenia do discurso, eles terão de lidar com essas duas dimensões.
Agora, você pergunta pelo plano B. Existe um processo da construção do legado nacional da Rio+20. O internacional será o que os quase 200 países da ONU quiserem. Já no nacional, o governo, o Estado brasileiro tem condição de repensar modelos, fazer escolhas e, quando chegar em 22 de junho (dia do encerramento), independente do que tiver acontecido, a gente tenha ideias propostas com um olhar de longo prazo para o futuro.
O que o senhor pensa das críticas sobre a falta de foco da Rio+20?
Os temas e as agendas não foram estabelecidos pelo Brasil e, sim, pelas Nações Unidas. Eu não diria “falta de foco”, mas um processo que carece de mais ambição. Que ambição dar a um tema – desenvolvimento sustentável, modelo de desenvolvimento – que é amplo por natureza? O Rascunho Zero não é ambicioso, é um bom ponto de partida, mas precisa crescer em ambição.
Isso significa o quê? Que ambição seria essa?
Ter compromissos e agendas mais concretas. Ser mais que um documento declaratório. Por exemplo, quando se fala: “Temos de revisar o PIB”. O Rascunho Zero reconhece que o PIB é limitado. Tá bom, mas o que a gente vai fazer com isso? Quando se fala em governança, como traduzir essa ideia em instituições fortes, política e institucionalmente? Como fazer para uma instituição de governança ambiental ser financeiramente estável? São questões concretas. Os temas estão lá no Rascunho Zero, mas precisa dar carne a eles. Esse é um trabalho que a gente terá nos próximos quatro meses.
Mas para isso terão de ser escolhidos alguns temas que vocês acreditam como sendo os mais fundamentais, para que se possa focar e dar a ambição necessária, não é? Se o senhor pudesse escolher um único assunto dentro da linha de economia verde e um único assunto dentro da linha de governança, quais seriam esses pontos cruciais, capazes de reverberar em outros?
Esta é uma pergunta difícil, porque certa vez eu respondi a isso em uma reunião internacional, e aí o pessoal falou: “Então o Brasil só está interessado nisso e apostando no fracasso do resto?” (risos) Mas vou responder a sua pergunta. A gente aposta muito nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. (mais sobre os ODS em “Vagos, como sempre”) Essa é uma ideia que tem ganhado força, porque permite dar concretude ao desenvolvimento sustentável na medida em que os países vão adotar um conjunto de temas, áreas, em que possam adotar compromissos, estabelecer responsabilidade para países desenvolvidos e em desenvolvimento, contemplar as três dimensões da sustentabilidade de maneira integrada, abarcando temas transversais, como gênero, inserção social da mulher, segurança alimentar. Provavelmente a Rio+20 não vai estabelecer os objetivos do ponto de vista de percentuais, datas, mas, sim, um patamar, uma estrutura básica. Se a Rio+20 adotar os ODS, já será um resultado muito concreto. Da mesma maneira, a história da revisão do PIB como modelo de indicador. Na área de governança, a gente aposta em duas coisas: o estabelecimento de uma unidade referenciadora, coordenadora e orientadora das ações de desenvolvimento sustentável – um conselho ou outro nome que se queira dar –, que esteja na mais alta instância das Nações Unidas. E, em paralelo, o fortalecimento muito expressivo no pilar ambiental das Nações Unidas. Historicamente, esse pilar está representado pelo Pnuma, criado após a Conferência de Estocolmo, em 1972. Só que os desafios ambientais se ampliaram muito nos últimos 40 anos, então é preciso revisar o mandato, a força, a capacidade que esse organismo tem para responder às grandes demandas ambientais
Em sua visão, qual é o grande nó do desenvolvimento sustentável?
É integrar visões dentro das dimensões social, ambiental e econômica, sem maniqueísmo. E integrar visões de mundo. O que é sustentabilidade para um país não necessariamente é para o outro, então é preciso romper esse paradigma perverso de polarização Norte-Sul, de apontar o dedo, de dizer quem é o responsável pelo quê. Hoje, essa polarização tem impedido o consenso na maior parte dos processos internacionais, nas COPs.
E como se faz para haver essa integração?
Temos conseguido algumas aproximações e o Brasil tem um papel muito importante nisso. Na COP de Biodiversidade, o Brasil conseguiu ser o elemento mediador entre os países provedores de recursos biológicos e os países usuários.
Porque o Brasil é tanto grande provedor como grande usuário.
Exatamente. E o Brasil foi fundamental na negociação sobre a repartição de benefícios do Protocolo de Nagoya. Na discussão de clima, em Durban, a mesma coisa. Quando se discute economia verde, o desafio é fazer com que os países se aproximem. Por isso dei o exemplo dos ODS. Não é como o caso dos Objetivos do Milênio,
que visam resolver problemas essenciais dos países em desenvolvimento, como pobreza, saneamento, mas, sim, para discutir questões como energia, produção e consumo que envolvem também os países desenvolvidos. O que faz com que estes se sintam parte da decisão.
O senhor acredita que, com a proximidade da Rio+20 e os olhos do mundo mais voltados para o Brasil, a presidente Dilma seja induzida a vetar a mudança do Código Florestal?
A Rio+20 ou qualquer grande conferência expõe o país-sede. Eu participei de inúmeras reuniões nos últimos anos e, toda a vez que você vai a uma reunião internacional, as contradições e complexidades do país-anfitrião aparecem. Até porque os setores aproveitam aquela visibilidade internacional e trazem isso à tona.
Então o novo Código Florestal é uma contradição?
Não é uma contradição, é um conflito de interesses. O Código Florestal, no Brasil, reflete um conflito de interesses. O Brasil é, por definição, um grande detentor de recursos naturais e um grande ex- portador agrícola. Então, há um jogo de interesses legítimos. Há uma multiplicidade de forças que estão sendo disputadas no Congresso Nacional de uma maneira soberana. Obviamente, o mundo está de olho. O que não significa que isso se confunde com o processo internacional, ainda que sujeito a críticas e eventuais oposições.
Quais são as funções de um assessor extraordinário do ministério para a Rio+20? Quais são suas tarefas, suas metas?
Sabe o que significa “extraordinário” na administração pública? Fora dela, significa algo muito bacana, mas na administração pública significa que este cargo se autoextinguirá após a conferência (risos). O governo brasileiro montou uma estrutura de governança para a Rio+20, tem uma comissão nacional, uma secretaria-executiva e, no MMA, criou uma assessoria extraordinária que visa coordenar todos os esforços internos do ministério, agregar todas as visões de cada área do ministério. A assessoria tem também o papel de fazer a mediação com os outros órgãos do governo e com a sociedade civil. Vamos fazer ao longo do semestre várias consultas com o setor empresarial, o setor financeiro, o setor não governamental, os movimentos sociais, a academia, as micros e pequenas empresas. E, além disso, incidir sobre os resultados do processo internacional.
Os outros ministérios não têm uma assessoria extraordinária?
Não. É como eu digo, tradicionalmente o MMA recepciona a discussão da sustentabilidade. A forma como a sociedade enxerga desenvolvimento sustentável é referenciada no MMA.
Embora seja o MRE que defina as negociações no final…
É, a parte da condução da política externa, sim. A comissão nacional é copresidida pelo ministro das Relações Exteriores e pela ministra do Meio Ambiente. O que já é uma mudança em relação às outras grandes conferências, presididas só pelo MRE. Existe uma secretaria-executiva, que é composta pelo Itamaraty e por esses três ministérios: Fazenda, Desenvolvimento Social e Meio Ambiente. E criou-se a assessoria extraordinária, porque se entendia que o MMA deve ser fortalecido para fazer frente às demandas da Rio+20.