Por Amália Safatle
Na manhã seguinte a que publicou, em 2009, o relatório Prosperidade sem Crescimento? – A transição para uma economia sustentável, o professor britânico Tim Jackson ouviu um sonoro silêncio. Assim como na manhã seguinte, na outra e na outra. Seu trabalho, resultado de 20 anos, apresentava ideias bastante inovadoras em meio ao monocórdio mantra do crescimento pelo crescimento – mas contou com repercussão nula. (Ou mínima. Nos lados de cá do Atlântico, Página22 mencionou o estudo em reportagem na edição 30, de junho de 2009, intitulada “As Voltas Que o Mundo Dá”). Pois não é que dá mesmo? Tim Jackson é persona mui grata nas mesas de debates paralelos da Rio+20 e nas páginas e telas dos grandes veículos de mídia, ainda que sob os ecos do mantra crescimentista do G-20, reunido às vésperas da Conferência. Nesta entrevista concedida à equipe de Página22 no Forte de Copacabana, logo após participar do evento Diálogos Sustentáveis – iniciativa do Funbio, Arapyaú e Vitae Civilis, com a presença de Arminio Fraga e Ricardo Abramovay –, Jackson comemora que a mensagem esteja se disseminando mais e mais. Muito por conta, diz ele, da pressão exercida pelos 99% que estão nas bordas e cobram da economia a busca de um sentido humano e social. “Essas pessoas estão lutando para um futuro mais justo. Isso é parte dos diálogos da sociedade que vemos aqui, no Rio. Mesmo que essa revolução ainda não seja a maior expressão das partes, tem sido a essência da mudança para o desenvolvimento sustentável”, diz. Por mais que o mundo dê voltas, Jackson tem uma estrela-guia – Vênus, bem resplandecente, no céu de todo lugar.
Quando falamos em perseguir a prosperidade no lugar do mero crescimento econômico, isso implica mudança de valores, de passar a ver sentido naquilo que vai além do consumo pelo consumo. Mas esse tipo de transformação leva tempo para ocorrer na sociedade. Existe algum caminho para acelerar esse processo?
Penso que não se trata de uma questão de mudança de valores. Argumento que muitos dos valores já estão no lugar certo, digamos assim. Esses valores humanos já foram determinados pela nossa história, inclusive a biológica, a cultural e a sociológica. Esse sentido valorativo é relativamente estável, já está em nós, em nossas vidas. A questão, na verdade, é como eles se apresentam em nossa sociedade. Isso é algo respaldado por reflexões acadêmicas. Gostaria de citar o trabalho de um psicólogo social chamado Shalom Schwartz, que identifica essa tensão entre os valores. A tensão entre, por exemplo, valores egoístas, que dizem respeito só ao individual, e valores que dizem respeito ao coletivo, ao altruísmo, à noção de cuidado com os outros seres. Ele também aborda a questão da tensão entre valores ligados ao prazer e ao deslumbramento fugaz, e os valores ligados à tradição e ao conservadorismo. O argumento dele é que todos esses valores existem na psique humana nesse cenário de antagonismo entre o eu e o todo. Por exemplo, nós nunca prezaríamos a estabilidade da família se o valor da tradição não estivesse presente em nossa estrutura mental, e assim por diante.
O.k., mas as situações não se apresentam assim para nós. Ou, pelo menos não é assim que percebemos o entorno. E o que tendemos a fazer é centrar em alguns valores, ou na suposta ausência deles. Por exemplo, o egoísmo. É como se só houvesse essa linha condutora nos regendo e por ela construímos instituições financeiras, corporações etc. que são cativas desses valores. O reflexo dessa visão estreita sobre os valores também se reflete nas sociedades quando, por exemplo, observamos um grande contingente de consumidores vorazes que foram incorporados a essa ideia de que somos seres individualistas e em busca constante do prazer.
Então, em vez de dizer que se trata de mudar os valores, minha percepção é de que nós não estamos olhando para esse mapa de valores com a devida atenção e nos voltamos para um recorte muito reduzido e limitado da humanidade enquanto organização social, e acabamos por estimular em demasia o egoísmo, o individualismo. É um debate que deve focar a forma como se estimula o comporta mento humano dentro de todo um cenário. Trata-se de um debate sobre como mudar as estruturas institucionais que restringem e limitam os posicionamentos valorativos que as pessoas já têm.
Mas como mudar essas estruturas institucionais?
Bem, acredito que esta é “a” questão (risos). Mas, para mim, é sobre reinventar o estímulo comportamental dessas instituições econômicas. Para dar um simples exemplo dessa transformação, se, ao motivarmos as empresas a remunerar o acionista ou até mesmo a criar impostos que retornem em benefícios para esses acionistas, sem, contudo, usar para isso atividades que agridam os demais ou o meio ambiente, incentivaremos novos hábitos de governança. Nessa ótica, podemos criar tantos produtos quanto imaginarmos possível, pois a estrutura da ideia não é a destruição, a exploração etc., e sim os comportamentos empresariais mais responsáveis. Se, ao criarmos uma estrutura de gestão baseada em ganhos sociais, com benefícios para toda a comunidade, e não só para os acionistas, isso, talvez, impacte profundamente a vida das pessoas ao redor dessa estrutura, prevalecendo os valores de conservação e socialização. É cultural: a opção social por esse modelo pode mudar a forma como as organizações estão acostumadas a atuar e a trabalhar.
Para não parecer que a questão do “mapa de valores” é, digamos assim, um idealismo, o senhor poderia nos dar alguns exemplos mais concretos?
Sim, vou citar alguns exemplos. Tenho até mesmo um exemplo na legislação dos Estados Unidos em relação às corporações chamadas Benefit Corporations (Empresas de Benefício, em tradução livre), que operam em outra estrutura legal, cujos estatuto social e razão de ser não priorizam o lucro. Não é um sonho, é uma mudança normativa já em vigor na Califórnia, em Nova Jersey, Maryland, Virgínia e Vermont, todos os estados que modificaram o Código Civil para permitir a difusão de empresas que constroem uma economia de mercado, mas não uma sociedade de mercado.
No Reino Unido, chamamos essas iniciativas de Community Interest Trust, que operam em uma legislação particular que autoriza não apenas que elas tenham seus impostos reduzidos, para aumentar o capital de giro, mas também tenham um prime aim para distribuir os resultados da empresa em diferentes formas.
Um conjunto de exemplos de que eu gosto muito acerca de investimentos são as comunidades baseadas em fundos que permitem a essas comunidades aplicar suas economias nessas organizações para o benefício das próprias comunidades. Esse é um sentido muito diferente que mostra uma nova forma de circulação de capital e o mais importante, para mim, é que esses modelos parecem mostrar que é possível expandir a forma estreita com que avaliamos os valores que nos cercam.
Esses exemplos mostram que, sim, os seres humanos se importam com a comunidade na qual estão inseridos e que existe um senso muito forte de cuidado e solidariedade entre os indivíduos. Eles se importam com a forma pela qual o dinheiro pode ser investido para gerar uma relação de proteção humana e ambiental. Esses são apenas alguns exemplos, mas nos dão uma ideia do que precisa mudar.
(Jackson para de falar e contempla o céu) Desculpe, eu me distraí olhando a primeira estrela do céu. (Todos param por alguns momentos e observam Vênus, da varanda da sala de imprensa do Forte de Copacabana, onde a entrevista é concedida, no início da noite). É impressionante como de qualquer parte do mundo você olha para o céu nesta hora e pode observar Vênus.
Nos dá o sentimento de um único planeta, não é?
Exatamente.
Bom… de volta à Terra (risos), gostaríamos de saber o que mudou e evoluiu em relação a essa discussão, desde que o senhor lançou o relatório Prosperidade Sem Crescimento?, em 2009, até hoje.
Uma mudança cultural marca o lançamento do relatório até os dias atuais. Quando o relatório foi lançado… ele morreu. Isso mesmo. Foi muito estranho e foi uma experiência única na qual fui envolvido, porque antes havia uma dúzia de publicidade anunciando o material, o conteúdo, fiz entrevistas por telefone, conversei com muitos jornalistas na noite anterior da divulgação oficial, mas, na segunda-feira, quando o material foi efetivamente lançado, não havia absolutamente nada sendo divulgado. Nada mesmo. Houve um silêncio mortal pairando no ar. (risos)
Daí eu pensei: espere um minuto, eu realmente passei os últimos nove meses trabalhando para escrever algo ao qual dediquei 20 anos de pesquisa, para nada? E foi isso mesmo: nada.
Na época, o governo britânico ficou furioso com o conteúdo do material. Houve forte rejeição. Não estou dizendo que esses dois fatores estão relacionados. Talvez haja uma relação, mas o que foi mais arrebatador é que todo o tema começou a se tornar parte de uma conversa muito difícil de ter em termos políticos, depois disso. Agora, vejam que ironia, esse material está por toda parte. Até mesmo o fato de eu estar aqui (no evento Humanidade 2012, promovido pela Fiesp e Sistema Firjan) é um testamento de que as pessoas querem ter essa conversa. Elas questionam o sistema econômico e querem falar sobre isso, achar soluções, ponderar posições. Claro que não apenas por causa do meu livro, mas por causa da crise financeira, e outras situações turbulentas.
Vemos que há interesse pelo debate de forma geral, mas os economistas clássicos não demonstram isso. O senhor sente que essas mudanças também acontecem fora do círculo dos ambientalistas?
Vejam, o próprio evento de que participamos hoje, que fala sobre crescimento, sinaliza outra postura. E não se trata de um círculo pequeno. Falamos em diversas pessoas e inúmeras organizações, que incluem muitos economistas e líderes de variadas frentes. Para se ter ideia, já fui convidado a falar sobre o tema e aconselhar bancos de investimentos, comunidades religiosas, ONGs, acadêmicos, encontros de pessoas comuns.
Contudo, o.k., acho que vocês estão certas em relação aos economistas clássicos. Uma pequena minoria demonstra vontade para se abrir ao debate. Mas acredito que uma real mudança está acontecendo e ela está baseada no fato de que a economia se tornou mais acessível e vital para os “não economistas”, e isso é uma das coisas boas sobre o resultado do livro. Há mais envolvimento, isso é válido. Ainda não é uma mudança significativa nas estruturas das instituições de que eu falei, mas há iniciativas que verdadeiramente indicam uma mudança.
Mas expandir a ideia da sustentabilidade ainda é um desafio. Então, qual deveria ser, em sua opinião, o apelo de comunicação a ser usado para que os economistas clássicos, ou os adeptos desse modelo econômico, se interessassem mais por esse debate?
Uma das coisas que têm acontecido é o incômodo dos novos economistas em relação à forma como a matéria é tratada em sala de aula. Por exemplo, nos Estados Unidos, os alunos das principais universidades do país estão colando cartazes nas portas das salas de aula demandando que os professores ensinem uma economia ligada à questão da igualdade, da estabilidade dos mercados financeiros e que entenda os limites ecológicos.
E esses alunos dizem que não vão voltar para as salas de aula até que os currículos escolares sejam adaptados a uma nova realidade. Eu não vi isso onde eu ensino, mas o que vi quando palestro sobre meu livro é um grande número de jovens economistas perguntando onde eles podem exercer esse pensamento. Eles querem ir além da lei da oferta e da procura e, esperançosamente, muitos professores estão abraçando essa demanda e mudando a forma de ensinar economia.
Eu fiquei estarrecido com a fala do Arminio (Fraga, ex-presidente do Banco Central, companheiro de mesa no evento)…(risos)
Íamos mesmo perguntar sobre o que o senhor tinha achado disso…
Eu fiquei chocado. Escondido atrás dessa linguagem econômica de “socializar as perdas e privatizar os benefícios” está uma visão horrível, porque cria um discurso econômico que parece sugerir que as crises são acidentalmente um produto do sistema, em vez de dizer que, de fato, elas são produto de uma desigualdade profunda, ideologicamente escolhida por interesses privados profundamente injustos. E me parece surreal que os economistas não vejam isso, não reconheçam isso. Eu não deveria usar a palavra “imperdoável”, mas me parece inexplicável que alguém desse nível (referindo-se a Arminio Fraga, para quem o crescimento econômico é inevitável a todas as economias, inclusive as ricas) não saiba exatamente o que tem sido feito com o sistema.
Defender que todo o caos simples e acidentalmente aconteceu é muito bizarro. Nada disso foi acidente, foi criado por regras institucionais, por escolhas ideológicas dos poderosos agentes do mercado que fazem o melhor para si, independente das perdas sociais e ambientais. Não há acidente ou acaso nisso, trata-se de uma escolha.
A maioria das políticas econômicas está baseada nos planos de governo, e são de curto prazo. Falamos aí em quatro, talvez oito anos, se o presidente ou seu partido se reeleger. Como estender a boa ideologia econômica, digamos assim, para além dos mandatos políticos. Isso é possível?
O ciclo político faz com que os planejamentos econômicos de longo prazo sejam um pesadelo. É muito difícil lidar com essa base de falso longo prazo, mas uma iniciativa aqui no Rio, por exemplo, fala de um conselho para a futura geração. Algo que transcenda a política de curto prazo e estabeleça a política com base em uma agenda de longo prazo.
De certa forma isso é exatamente o que a sustentabilidade fala: permitir visões de longo prazo em governança. Por exemplo, ao falar em pensões, temos de ter uma visão de estabilidade de longo prazo para aqueles que investem nessa opção por 20 ou 30 anos, às vezes mais. Esses não são fundos de curto prazo beneficiados por políticas de curto prazo. E a instabilidade do mercado financeiro baseado em um pensamento de curto ou curtíssimo prazo de fato devastou os valores desses fundos, criando sérios problemas para os agentes econômicos que tentavam criar opções seguras de longo prazo.
Então, para responder à pergunta, eu diria que você encontra, no meio da loucura financeira, instituições que têm sérios interesses em atividades de longo prazo. E eu sei, pela minha pesquisa, para a qual conversei com muitos desses agentes financeiros, que as pessoas estão famintas por mais espaço para as atividades de longo prazo. Há muito interesse em criar as condições mais seguras em relação a essa política de mercado.
Muito da mudança viria da educação. Então, como potencializar a educação para a mudança?
Sem dúvida vem da educação, mas, novamente, trata-se de alargar o espaço de operação. Estou muito próximo disso, porque aconselho uma instituição investidora que continuamente tem que competir para ter autoridade e autenticidade entre os fundos convencionais. Os fundos sustentáveis rejeitam as coisas ruins, escolhem as boas e oferecem a oportunidade para que os acionistas e poupadores invistam em opções de investimento mais responsáveis e sustentáveis. E isso está aumentando nos últimos dez anos. Mas, ao mesmo tempo, esse mercado, que é particularmente muito, muito influente em mobilizar o dinheiro das pessoas para o bem, sempre está brigando com as condições do mercado mainstream, que regula o jogo de forma má e antiética, como, por exemplo, potencializando ativos de indústrias extrativistas que exploram as condições pobres dos países em desenvolvimento, incentivando os gastos militares, que são insustentáveis a longo prazo, ou até mesmo as tecnologias energéticas de alto risco, como as nucleares.
Então, o que vemos por aí é que não se trata apenas de educação, trata-se de oferecer às pessoas fundos que gerem segurança e um futuro melhor. Elas fariam essas escolhas, mesmo sem qualquer educação. Então, é parcial a responsabilidade da educação. O que importa mesmo é criar espaço e permitir que a capacidade para os investimentos sustentáveis cresça e se fortaleça cada vez mais.
Percebemos que falar em redução das desigualdades é um tabu entre os governos. Aqui na rio+20, por exemplo, fala-se em redução de pobreza, mas, na hora de discutir a redistribuição de riqueza dos ricos para os menos favorecidos, o discurso fica engasgado. como a economia pode ajudar nesse debate?
Não tenho a exata resposta. Sabemos o básico: crescimento infinito não é possível em um mundo de limites. E essa é uma das essências da discussão sobre sustentabilidade, que é trazer justiça social com limites ecológicos. Um exemplo de que gosto muito é a imagem do bolo de aniversário. Precisamos, primeiro, mostrar o tamanho do bolo para todos e dizer que isso é o que temos para celebrar, viver bem. Será necessário dividir o bolo de forma justa. Trazer o debate dos limites ecológicos para o centro da questão também é vital. É uma questão de igualdade, não simplesmente de fazer o bolo crescer. Mas sabemos que politicamente isso é muito difícil. Sabemos que existem pessoas que simplesmente não querem deixar de ganhar e não têm interesse em permitir que haja mais igualdade. Existe muita antiética escondida atrás dessas políticas econômicas que defendem os próprios interesses.
Mas há um debate muito interessante neste momento, por conta do movimento Occupy. As injustiças foram levadas às ruas, apresentadas por aqueles que se dizem os 99% restantes, e essa vasta diferença não pode ser ignorada, nem mesmo pelo mainstream. É uma discussão que a sociedade deve tomar para si, quase como no debate pelo fim da escravidão, que é antiética e moralmente inaceitável. E isso é transmitido pela revolução, pela pressão dos excluídos em fazerem com que suas vozes sejam ouvidas.
A Rio+20 e os movimentos jovens já mostram que há muita gente que não é excluída da sociedade questionando a situação que leva muitos a condições degradantes de vida. Essas pessoas estão lutando para um futuro mais justo. Isso é parte dos diálogos da sociedade que vemos aqui, no Rio. Mesmo que essa revolução ainda não seja a maior expressão das partes, tem sido a essência da mudança para o desenvolvimento sustentável.