Com os congestionamentos reduzindo a mobilidade e a qualidade de vida nas grandes cidades, o lado negativo da balança tem pesado mais que os benefícios trazidos pela economia do automóvel
Uma grande demanda por carros somada a uma grande oferta de carros só poderia mesmo acabar em um enorme congestionamento. As grandes cidades brasileiras, especialmente São Paulo, estão literalmente parando e os caminhos para melhorar a mobilidade parecem ainda distantes.
Pelo menos é página virada o tempo em que se acreditava que a construção de grandes obras viárias, como viadutos, túneis e pontes, solucionaria o problema. Sabe-se hoje que por trás de toda fila esconde-se outra fila, a chamada demanda reprimida [1]. Assim, entre um engarrafamento e outro, o aprendizado da vez passa a ser agora a valorização do transporte coletivo, única forma de muita gente se locomover ocupando menos espaço.
Apesar da constatação, é inútil “vilanizar” o carro, cuja lataria reluzente e o cheirinho de novo continuam acalentando o sonho de consumo das novas gerações. Vários países encontraram fórmulas de convívio civilizado do automóvel com pedestres, bicicletas e ônibus. Além disso, seu papel na economia brasileira tem sido importante.
[1] Quando uma via engarrafa, boa parte dos motoristas se reorganiza e procura outros acessos ou horários. Quando surge um caminho alternativo, essa demanda reprimida que estava “invisível” reaparece, provocando novos congestionamentos uma só vez
A indústria automobilística gera 1,5 milhão de empregos diretos e indiretos e contribui com uma parcela de quase 7% no PIB, quando embutidos na conta os principais insumos (minério de ferro e borracha, por exemplo) e também os impactos da produção “a jusante”, como revendas e consumo de combustível.
O vilão dessa história não é o carro em si, mas o seu uso exagerado e desordenado que, em grande parte, é decorrência da falta de políticas públicas de transporte urbano.
Entretanto, para Aron Belinky, do Instituto Vitae Civilis, “a raiz desse problema ao qual estamos todos presos – seja pelos nossos hábitos e fantasias, seja pela falta de políticas públicas que viabilizem alternativas – está, sim, no pequeno e poderoso grupo de megaempresas anacrônicas”. Segundo ele, as montadoras tentam a todo custo manter seu modelo atual de negócios de modo a não perder seus ganhos e vantagens estratégicas.
“Enquanto isso – protesta Belinky – perpetuam problemas graves, destruindo a saúde e o tempo de bilhões de pessoas, além de prejudicar o meio ambiente de modo geral.” (mais sobre as montadoras em reportagem “Ainda dá pra piorar”)
De fato, o Brasil vive um momento de franca expansão do transporte individual. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra, em estudo recente, que o aumento das vendas de automóveis chegou a 8% em 2011 e o de motocicletas quase bateu os 13%, bem acima do crescimento do PIB.
Segundo o autor da pesquisa, Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho, a expansão ocorre em decorrência do aumento de renda da população conjugado com a maior oferta de veículos automotores. “As indústrias aumentaram muito a sua capacidade produtiva e houve toda uma política pública voltada para desovar essa produção, com redução de imposto e maior oferta de crédito.”
O olhar sistêmico enxerga o lado avesso dessa política, sobretudo na área da saúde, que consome parte da arrecadação de impostos para recuperar vítimas do acidentes e da poluição provocados pelo trânsito. Segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), o custo anual dos acidentes alcançou R$ 40 bilhões em 2011. As chamadas externalidades negativas [2] provocadas pela hegemonia do transporte individual motorizado produzem ainda o pior dos números: 42 mil mortes ao ano. A Abramet calcula que apenas a proporção de uma em 17 mil infrações cometidas por motoristas seja convertida em multa. De certa forma, o trânsito torna infratores até aqueles que se julgam “do bem”.
[2] Prejuízos ou impactos negativos de uma determinada atividade econômica que são arcados pela sociedade, e não por quem os gerou
“Se me perguntarem se o carro ‘valeu a pena’, a resposta é não”, afirma, taxativo, Eduardo de Alcântara Vasconcellos, coordenador-geral do Sistema de Informações da Mobilidade Urbana da Associação Nacional de Transporte Público (ANTP) e um dos maiores especialistas em transporte urbano do País. Ele fez as contas e descobriu que, desde meados do século passado – quando a oferta interna de automóveis começou a ganhar escala – até hoje, cerca de 1 milhão de vidas foram interrompidas em acidentes de trânsito.
E mais: até 2014, o uso irresponsável da motocicleta nas grandes cidades terá matado 100 mil pessoas em pouco mais de dez anos. “Que grave erro de política pública deixar essa tecnologia entrar nas ruas sem nenhum cuidado!” Dito isso, Eduardo Vasconcelos retoma o assunto da mobilidade urbana com a frieza técnica que o tema exige.
VAIVÉM
Na Região Metropolitana de São Paulo ocorrem diariamente 40 milhões de deslocamentos a pé, de bicicleta, de transporte coletivo e de carro. Como são cerca de 20 milhões de habitantes, cada pessoa faz em média dois deslocamentos: um da origem (casa) ao destino (trabalho, escola etc.), outro de volta à origem. Nos países desenvolvidos, essa média chega a 4 deslocamentos/dia. Significa, segundo Vasconcellos, que, quanto maior a renda, maior o número de deslocamentos. Ou seja, à medida que enriquecer, o habitante da Grande São Paulo poderá chegar a fazer até 80 milhões de percursos por dia.
Nesse caso a cidade para? Se a maior parte desses deslocamentos continuar a ser feita por meio do transporte individual, naturalmente que sim. Tóquio, por exemplo, é muito rica, tem quase 30 milhões de pessoas vivendo em uma área similar à da cidade de São Paulo e sua mobilidade é exemplar. Lá, porém, 90% dos moradores usam transporte coletivo. A megalópole japonesa possui nada menos do que três bons sistemas de metrô e os carros ficam na garagem como última alternativa de deslocamento, pois usá-los custa caro.
O especialista da ANTP observa que, por mais abrangente que seja, o Metrô quase nunca atende totalmente uma grande cidade, menos ainda as suas periferias. Para isso servem os ônibus. Ou pelo menos deveriam servir. No Brasil, quando custo e tempo estão na balança, é mais vantajoso usar o carro do que pegar um ônibus. A maioria das pessoas escolhe o modo de transporte baseada no custo direto que terá de desembolsar para ir e voltar.
“Não pense que o parisiense médio anda de ônibus e de metrô porque é mais consciente que o paulistano. São mecanismos de políticas públicas de transporte que direcionam esse comportamento”, assinala o técnico da ANTP, responsável por um estudo que mostra o custo de andar de ônibus, de moto e de automóvel aqui no Brasil.
Se nas cidades europeias o uso diário do carro custa caríssimo em relação ao custo do transporte coletivo, no Brasil, o sinal que a política de transporte dá para os brasileiros é inequívoco: se puder, não use ônibus. Usá-lo exige um desembolso três vezes maior do que utilizar motocicleta e quase igual ao do carro – em uma viagem hipotética de 7 quilômetros nas cidades brasileiras, o passageiro do ônibus desembolsa RS 2,17, o motociclista, R$ 0,77, e o motorista do automóvel, cerca de R$ 2,30 .
Quando esse mesmo cálculo embute o custo social (acidentes e poluição) e outros custos (impostos, taxas, manutenção e depreciação), o ônibus passa a ser o meio mais econômico. “Mas a tendência da maioria das pessoas é calcular o quanto vai tirar do bolso no dia a dia”, explica Vasconcellos. O fator tempo, outro aspecto importante na escolha do modo de transporte, também não favorece o ônibus, em média mais lento que as motocicletas e os carros. (mais detalhes sobre os custos da mobilidade)
O encarecimento do transporte público, conforme o estudo A Mobilidade Urbana no Brasil, publicado pelo Ipea, decorreu do aumento de preços de itens que compõem a estrutura de custos do sistema de ônibus e da queda de produtividade. Por exemplo, houve aumentos no preço do óleo diesel na bomba e nos gastos com o combustível devido ao maior tempo gasto no trânsito. “O aumento persistente das tarifas de ônibus urbano acima da inflação, combinado com a melhoria das condições gerais de renda da população – particularmente nos últimos oito anos –, estimula a substituição de viagens de transporte coletivo por outros modos individuais”, deduz o comunicado.
TOLERÂNCIA
O limite de tempo que as pessoas são capazes de tolerar em seus deslocamentos diários gira em torno de 60 minutos. “De modo geral, ninguém aguenta física ou psicologicamente passar mais de uma hora diariamente se deslocando para ir e outra para voltar. Os mais penalizados acabam reorganizando sua rotina (exemplo: fazendo home office mais vezes), mesmo que em um patamar ruim”, garante Eduardo Vasconcellos.
O tempo médio de deslocamento dos trabalhadores brasileiros, informado pelo IBGE na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), está chegando a este limiar: cresceu 6% entre 1992 e 2008 nas dez principais regiões metropolitanas do País, chegando a 40 minutos. A Grande São Paulo ajuda a elevar a média nacional, pois já entrou na casa dos 50 minutos por percurso. A tendência das cidades muito congestionadas, na hipótese de nada ser feito, é a sua descentralização progressiva [3], em decorrência de uma mudança de hábito que sempre acaba ocorrendo quando os limites de tolerância são pressionados.
[3] Ao se buscar trabalho mais próximo de casa – por exemplo abrindo um comércio –, acabam-se criando novos empregos em localidades mais periféricas, aumentando a descentralização
Em relação ao futuro da mobilidade em São Paulo, Vasconcellos é um otimista. Afinal, a metrópole está adquirindo expressão econômica cada vez maior e tem pretensões de virar uma cidade global. Toda a sociedade, inclusive o setor empresarial, que controla os grandes investimentos e as atividades econômicas, sente o incômodo da falta de mobilidade.
É o primeiro sinal de que o momento do salto de qualidade se aproxima. Soluções técnicas e econômicas existem e devem ser implementadas assim: no plural. Ações isoladas restritivas, como pedágio urbano (mais em reportagem “Cobrar é uma solução?”), ou alternativas – novas linhas do Metrô – não resolverão sozinhas o problema. “Na mobilidade urbana não existe a bala de prata, ou o problema já estaria resolvido há muito tempo”, avisa Vasconcellos.
PROBLEMAS EM MASSA
O perigo de matar ou ferir uma pessoa é o mais grave dano no trânsito em países em desenvolvimento e o Brasil apresenta um dos piores números no quesito – 42 mil mortes em 2011, das quais 25% por ocorrências envolvendo motocicletas. Para o presidente da Abramet, Mauro Augusto Ribeiro, a última medida de forte impacto positivo nessa área foi o lançamento do novo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), sancionado em 1998. “Eu diria que foi um marco”, afirma o presidente da Abramet, Mauro Ribeiro. As mortes no trânsito despencaram e a lei do uso do cinto de segurança “pegou”.
Nos últimos dez anos, porém, as conquistas do novo CTB anularam-se com o aumento da frota de carros e, principalmente, de motocicletas. Atualmente, as principais campanhas de combate à violência no trânsito são a “lei seca” e a de respeito à faixa de pedestre.
O segundo problema mais sério é a poluição atmosférica, decorrente do uso de energia fóssil pelos motores a combustão. A fumaça dos escapamentos tem dois tipos de poluentes. Um é formado por monóxido de carbono, dióxido de enxofre e material particulado, entre outras substâncias, e é altamente prejudicial à saúde [4] contribuem para o aquecimento global. O Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), criado em 1986, tem feito a diferença, ao fixar prazos e limites máximos de emissão para os veículos produzidos no país ou importados.
[4] De acordo com o médico especialista em poluição atmosférica e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Saldiva, a poluição em São Paulo é responsável por 4 mil mortes ao ano e pela redução em 2 anos na expectativa de vida média dos paulistanos
O tempo gasto em congestionamento é o fator que mais incomoda. Veículos demais no espaço da rua causam um fenômeno não linear. Se o número de automóveis em uma rua aumenta 10%, o tempo para percorrê-la será proporcionalmente maior que 10%, razão pela qual os congestionamentos se formam rapidamente. O tempo perdido também tem um valor econômico. A pessoa, depois de ficar uma hora em pé no ônibus, sofre uma perda natural de produtividade.
Mesmo os que usufruem o conforto de um carro perdem bem-estar e horas de trabalho.
O quarto elemento, o efeito barreira, raramente é percebido pelo conjunto da sociedade. Este ocorre quando um sistema viário começa a receber um fluxo tão alto de veículos a ponto de impedir a mobilidade das pessoas que moram no lugar, especialmente crianças e idosos.
Aos poucos, as pessoas permanecem mais tempo em suas casas e isolam-se do convívio social. As mobilizações contra essa – pouco percebida – deterioração da qualidade de vida só costumam ocorrer quando alguém é atropelado e morto. Nesses casos, o poder público costuma aparecer com a “solução” das lombadas redutoras da velocidade.
As películas escuras que cobrem os vidros da maioria dos automóveis em circulação também contribuem para o efeito barreira do trânsito. O hábito, adotado em razão de outro tipo de violência, reduziu a comunicação visual entre os motoristas e entre estes e os pedestres, diminuindo mais ainda a afabilidade no trânsito.
[:en]Com os congestionamentos reduzindo a mobilidade e a qualidade de vida nas grandes cidades, o lado negativo da balança tem pesado mais que os benefícios trazidos pela economia do automóvel
Uma grande demanda por carros somada a uma grande oferta de carros só poderia mesmo acabar em um enorme congestionamento. As grandes cidades brasileiras, especialmente São Paulo, estão literalmente parando e os caminhos para melhorar a mobilidade parecem ainda distantes.
Pelo menos é página virada o tempo em que se acreditava que a construção de grandes obras viárias, como viadutos, túneis e pontes, solucionaria o problema. Sabe-se hoje que por trás de toda fila esconde-se outra fila, a chamada demanda reprimida [1]. Assim, entre um engarrafamento e outro, o aprendizado da vez passa a ser agora a valorização do transporte coletivo, única forma de muita gente se locomover ocupando menos espaço.
Apesar da constatação, é inútil “vilanizar” o carro, cuja lataria reluzente e o cheirinho de novo continuam acalentando o sonho de consumo das novas gerações. Vários países encontraram fórmulas de convívio civilizado do automóvel com pedestres, bicicletas e ônibus. Além disso, seu papel na economia brasileira tem sido importante.
[1] Quando uma via engarrafa, boa parte dos motoristas se reorganiza e procura outros acessos ou horários. Quando surge um caminho alternativo, essa demanda reprimida que estava “invisível” reaparece, provocando novos congestionamentos uma só vez
A indústria automobilística gera 1,5 milhão de empregos diretos e indiretos e contribui com uma parcela de quase 7% no PIB, quando embutidos na conta os principais insumos (minério de ferro e borracha, por exemplo) e também os impactos da produção “a jusante”, como revendas e consumo de combustível.
O vilão dessa história não é o carro em si, mas o seu uso exagerado e desordenado que, em grande parte, é decorrência da falta de políticas públicas de transporte urbano.
Entretanto, para Aron Belinky, do Instituto Vitae Civilis, “a raiz desse problema ao qual estamos todos presos – seja pelos nossos hábitos e fantasias, seja pela falta de políticas públicas que viabilizem alternativas – está, sim, no pequeno e poderoso grupo de megaempresas anacrônicas”. Segundo ele, as montadoras tentam a todo custo manter seu modelo atual de negócios de modo a não perder seus ganhos e vantagens estratégicas.
“Enquanto isso – protesta Belinky – perpetuam problemas graves, destruindo a saúde e o tempo de bilhões de pessoas, além de prejudicar o meio ambiente de modo geral.” (mais sobre as montadoras em reportagem “Ainda dá pra piorar”)
De fato, o Brasil vive um momento de franca expansão do transporte individual. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra, em estudo recente, que o aumento das vendas de automóveis chegou a 8% em 2011 e o de motocicletas quase bateu os 13%, bem acima do crescimento do PIB.
Segundo o autor da pesquisa, Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho, a expansão ocorre em decorrência do aumento de renda da população conjugado com a maior oferta de veículos automotores. “As indústrias aumentaram muito a sua capacidade produtiva e houve toda uma política pública voltada para desovar essa produção, com redução de imposto e maior oferta de crédito.”
O olhar sistêmico enxerga o lado avesso dessa política, sobretudo na área da saúde, que consome parte da arrecadação de impostos para recuperar vítimas do acidentes e da poluição provocados pelo trânsito. Segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), o custo anual dos acidentes alcançou R$ 40 bilhões em 2011. As chamadas externalidades negativas [2] provocadas pela hegemonia do transporte individual motorizado produzem ainda o pior dos números: 42 mil mortes ao ano. A Abramet calcula que apenas a proporção de uma em 17 mil infrações cometidas por motoristas seja convertida em multa. De certa forma, o trânsito torna infratores até aqueles que se julgam “do bem”.
[2] Prejuízos ou impactos negativos de uma determinada atividade econômica que são arcados pela sociedade, e não por quem os gerou
“Se me perguntarem se o carro ‘valeu a pena’, a resposta é não”, afirma, taxativo, Eduardo de Alcântara Vasconcellos, coordenador-geral do Sistema de Informações da Mobilidade Urbana da Associação Nacional de Transporte Público (ANTP) e um dos maiores especialistas em transporte urbano do País. Ele fez as contas e descobriu que, desde meados do século passado – quando a oferta interna de automóveis começou a ganhar escala – até hoje, cerca de 1 milhão de vidas foram interrompidas em acidentes de trânsito.
E mais: até 2014, o uso irresponsável da motocicleta nas grandes cidades terá matado 100 mil pessoas em pouco mais de dez anos. “Que grave erro de política pública deixar essa tecnologia entrar nas ruas sem nenhum cuidado!” Dito isso, Eduardo Vasconcelos retoma o assunto da mobilidade urbana com a frieza técnica que o tema exige.
VAIVÉM
Na Região Metropolitana de São Paulo ocorrem diariamente 40 milhões de deslocamentos a pé, de bicicleta, de transporte coletivo e de carro. Como são cerca de 20 milhões de habitantes, cada pessoa faz em média dois deslocamentos: um da origem (casa) ao destino (trabalho, escola etc.), outro de volta à origem. Nos países desenvolvidos, essa média chega a 4 deslocamentos/dia. Significa, segundo Vasconcellos, que, quanto maior a renda, maior o número de deslocamentos. Ou seja, à medida que enriquecer, o habitante da Grande São Paulo poderá chegar a fazer até 80 milhões de percursos por dia.
Nesse caso a cidade para? Se a maior parte desses deslocamentos continuar a ser feita por meio do transporte individual, naturalmente que sim. Tóquio, por exemplo, é muito rica, tem quase 30 milhões de pessoas vivendo em uma área similar à da cidade de São Paulo e sua mobilidade é exemplar. Lá, porém, 90% dos moradores usam transporte coletivo. A megalópole japonesa possui nada menos do que três bons sistemas de metrô e os carros ficam na garagem como última alternativa de deslocamento, pois usá-los custa caro.
O especialista da ANTP observa que, por mais abrangente que seja, o Metrô quase nunca atende totalmente uma grande cidade, menos ainda as suas periferias. Para isso servem os ônibus. Ou pelo menos deveriam servir. No Brasil, quando custo e tempo estão na balança, é mais vantajoso usar o carro do que pegar um ônibus. A maioria das pessoas escolhe o modo de transporte baseada no custo direto que terá de desembolsar para ir e voltar.
“Não pense que o parisiense médio anda de ônibus e de metrô porque é mais consciente que o paulistano. São mecanismos de políticas públicas de transporte que direcionam esse comportamento”, assinala o técnico da ANTP, responsável por um estudo que mostra o custo de andar de ônibus, de moto e de automóvel aqui no Brasil.
Se nas cidades europeias o uso diário do carro custa caríssimo em relação ao custo do transporte coletivo, no Brasil, o sinal que a política de transporte dá para os brasileiros é inequívoco: se puder, não use ônibus. Usá-lo exige um desembolso três vezes maior do que utilizar motocicleta e quase igual ao do carro – em uma viagem hipotética de 7 quilômetros nas cidades brasileiras, o passageiro do ônibus desembolsa RS 2,17, o motociclista, R$ 0,77, e o motorista do automóvel, cerca de R$ 2,30 .
Quando esse mesmo cálculo embute o custo social (acidentes e poluição) e outros custos (impostos, taxas, manutenção e depreciação), o ônibus passa a ser o meio mais econômico. “Mas a tendência da maioria das pessoas é calcular o quanto vai tirar do bolso no dia a dia”, explica Vasconcellos. O fator tempo, outro aspecto importante na escolha do modo de transporte, também não favorece o ônibus, em média mais lento que as motocicletas e os carros. (mais detalhes sobre os custos da mobilidade)
O encarecimento do transporte público, conforme o estudo A Mobilidade Urbana no Brasil, publicado pelo Ipea, decorreu do aumento de preços de itens que compõem a estrutura de custos do sistema de ônibus e da queda de produtividade. Por exemplo, houve aumentos no preço do óleo diesel na bomba e nos gastos com o combustível devido ao maior tempo gasto no trânsito. “O aumento persistente das tarifas de ônibus urbano acima da inflação, combinado com a melhoria das condições gerais de renda da população – particularmente nos últimos oito anos –, estimula a substituição de viagens de transporte coletivo por outros modos individuais”, deduz o comunicado.
TOLERÂNCIA
O limite de tempo que as pessoas são capazes de tolerar em seus deslocamentos diários gira em torno de 60 minutos. “De modo geral, ninguém aguenta física ou psicologicamente passar mais de uma hora diariamente se deslocando para ir e outra para voltar. Os mais penalizados acabam reorganizando sua rotina (exemplo: fazendo home office mais vezes), mesmo que em um patamar ruim”, garante Eduardo Vasconcellos.
O tempo médio de deslocamento dos trabalhadores brasileiros, informado pelo IBGE na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), está chegando a este limiar: cresceu 6% entre 1992 e 2008 nas dez principais regiões metropolitanas do País, chegando a 40 minutos. A Grande São Paulo ajuda a elevar a média nacional, pois já entrou na casa dos 50 minutos por percurso. A tendência das cidades muito congestionadas, na hipótese de nada ser feito, é a sua descentralização progressiva [3], em decorrência de uma mudança de hábito que sempre acaba ocorrendo quando os limites de tolerância são pressionados.
[3] Ao se buscar trabalho mais próximo de casa – por exemplo abrindo um comércio –, acabam-se criando novos empregos em localidades mais periféricas, aumentando a descentralização
Em relação ao futuro da mobilidade em São Paulo, Vasconcellos é um otimista. Afinal, a metrópole está adquirindo expressão econômica cada vez maior e tem pretensões de virar uma cidade global. Toda a sociedade, inclusive o setor empresarial, que controla os grandes investimentos e as atividades econômicas, sente o incômodo da falta de mobilidade.
É o primeiro sinal de que o momento do salto de qualidade se aproxima. Soluções técnicas e econômicas existem e devem ser implementadas assim: no plural. Ações isoladas restritivas, como pedágio urbano (mais em reportagem “Cobrar é uma solução?”), ou alternativas – novas linhas do Metrô – não resolverão sozinhas o problema. “Na mobilidade urbana não existe a bala de prata, ou o problema já estaria resolvido há muito tempo”, avisa Vasconcellos.
PROBLEMAS EM MASSA
O perigo de matar ou ferir uma pessoa é o mais grave dano no trânsito em países em desenvolvimento e o Brasil apresenta um dos piores números no quesito – 42 mil mortes em 2011, das quais 25% por ocorrências envolvendo motocicletas. Para o presidente da Abramet, Mauro Augusto Ribeiro, a última medida de forte impacto positivo nessa área foi o lançamento do novo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), sancionado em 1998. “Eu diria que foi um marco”, afirma o presidente da Abramet, Mauro Ribeiro. As mortes no trânsito despencaram e a lei do uso do cinto de segurança “pegou”.
Nos últimos dez anos, porém, as conquistas do novo CTB anularam-se com o aumento da frota de carros e, principalmente, de motocicletas. Atualmente, as principais campanhas de combate à violência no trânsito são a “lei seca” e a de respeito à faixa de pedestre.
O segundo problema mais sério é a poluição atmosférica, decorrente do uso de energia fóssil pelos motores a combustão. A fumaça dos escapamentos tem dois tipos de poluentes. Um é formado por monóxido de carbono, dióxido de enxofre e material particulado, entre outras substâncias, e é altamente prejudicial à saúde [4] contribuem para o aquecimento global. O Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), criado em 1986, tem feito a diferença, ao fixar prazos e limites máximos de emissão para os veículos produzidos no país ou importados.
[4] De acordo com o médico especialista em poluição atmosférica e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Saldiva, a poluição em São Paulo é responsável por 4 mil mortes ao ano e pela redução em 2 anos na expectativa de vida média dos paulistanos
O tempo gasto em congestionamento é o fator que mais incomoda. Veículos demais no espaço da rua causam um fenômeno não linear. Se o número de automóveis em uma rua aumenta 10%, o tempo para percorrê-la será proporcionalmente maior que 10%, razão pela qual os congestionamentos se formam rapidamente. O tempo perdido também tem um valor econômico. A pessoa, depois de ficar uma hora em pé no ônibus, sofre uma perda natural de produtividade.
Mesmo os que usufruem o conforto de um carro perdem bem-estar e horas de trabalho.
O quarto elemento, o efeito barreira, raramente é percebido pelo conjunto da sociedade. Este ocorre quando um sistema viário começa a receber um fluxo tão alto de veículos a ponto de impedir a mobilidade das pessoas que moram no lugar, especialmente crianças e idosos.
Aos poucos, as pessoas permanecem mais tempo em suas casas e isolam-se do convívio social. As mobilizações contra essa – pouco percebida – deterioração da qualidade de vida só costumam ocorrer quando alguém é atropelado e morto. Nesses casos, o poder público costuma aparecer com a “solução” das lombadas redutoras da velocidade.
As películas escuras que cobrem os vidros da maioria dos automóveis em circulação também contribuem para o efeito barreira do trânsito. O hábito, adotado em razão de outro tipo de violência, reduziu a comunicação visual entre os motoristas e entre estes e os pedestres, diminuindo mais ainda a afabilidade no trânsito.