Por Amália Safatle
Como a Medicina pode evoluir para uma abordagem mais completa do ser
humano? Para o médico Fernando Bignardi, a resposta está na transdisciplinaridade
Um grupo de idosos em São Mateus, periferia da Zona Leste de São Paulo, protagonizou fenômenos surpreendentes, com a cura de doenças como glaucoma, diabetes e hipertensão – tidas como incuráveis pela medicina convencional. E o mais interessante: por meio de uma técnica insuspeitada, a meditação. A experiência é parte das pesquisas de Fernando Bignardi, coordenador do Centro de Estudos do Envelhecimento da Unifesp.
Segundo ele, por meio da meditação o paciente reencontra o equilíbrio e resgata sua missão de vida, com efeitos positivos em cascata nas cinco dimensões do ser humano: física, metabólica, vital, mental e supramental. Ao traçar o paralelo do ser humano com o mundo corporativo e os modelos de produção, Bignardi começa a levar esse modelo transdisciplinar para as organizações. “A gente sugere que os gestores e colaboradores adotem o uso da meditação no seu cotidiano, porque isso faz com que gerem projetos sustentáveis. Não é o que acontece hoje, pois se parte de uma metodologia insustentável, fragmentada”, diz.
Quais são os problemas e as limitações da medicina convencional?
É uma medicina ancorada em um modelo mecânico, que entende o ser humano como uma máquina. Portanto, não tem alma nem espírito. É o conjunto de átomos organizados em moléculas que funcionam. Tanto é que no curso médico a gente não tem nenhuma formação humanística, exceto algo bem superficial na Psicologia Médica. Esse é um dos grandes problemas. Quem se interessa por Medicina de Família, que é uma especialidade médica contemporânea voltada para entender o ser humano na sua totalidade, sente deficiência nesse campo. É uma pena, pois, quando nós levamos o modelo transdisciplinar ao Congresso Nacional de Medicina de Família em 2008, foi muito bem-vindo.
O que o modelo transdisciplinar na saúde propõe?
Quando voltei à Escola Paulista de Medicina, em 1995, o então reitor, o Dr. Hélio Egydio [Nogueira], me convidou para introduzir a homeopatia na escola, sob orientação do Ministério da Saúde. Nessa ocasião, o espaço que se sentia motivado a receber a homeopatia era o setor de geriatria e gerontologia. Eles entendiam que essa “alternativa” terapêutica podia ser muito interessante. Mas a gente teve uma série de dificuldades, porque não havia uma aceitação à homeopatia, uma vez que esta trabalha além do nível da matéria.
Na preparação de um medicamento homeopático, há diluições que ultrapassam o número de Avogadro, que diz quantas moléculas tem naquele preparado. Chega-se a um nível em que não há mais molécula. E, no entendimento convencional, uma solução que não tenha molécula é água pura. Então isso era muito difícil de ser dialogado. Mas, usando a lógica da medicina baseada em evidência, fiz um experimento no qual a gente acrescentou a homeopatia ao tratamento convencional de idosos. Usando um recurso de mensuração de qualidade de vida, a gente pôde demonstrar que o sentido da vida e a espiritualidade desse idoso sofreram um incremento. Um dos grandes problemas da maturidade, na terceira idade, é a perda do sentido da vida, em consequência da Revolução Industrial, que transformou o homem em um insumo.
Como ficou idoso, não serve mais para a produção e aí perde o valor?
Sim, e isso vai para o inconsciente da pessoa, ela passa a se sentir inútil. E isso é o começo do fim. Tanto que é muito comum uma pessoa que se aposentou fazer mil planos de viajar etc., e seis meses depois está morta. Simplesmente ela se perde, porque o sentido da vida era o trabalho. Felizmente, algumas empresas hoje estão atentas a isso e existem programas de preparação para a aposentadoria.
Pois bem, diante desse panorama de estudar, compreender e atender o idoso, nós, do Centro de Estudos do Envelhecimento, percebemos que o modelo mecânico era insuficiente. Isso porque, na medicina convencional, tudo começa com o “onde”. Onde dói? A partir disso é que começa o raciocínio médico. Se não tiver o “onde”, você é encaminhado para a Psiquiatria. A indicação da Psiquiatria começa com a falta do “onde”. Tendo o “onde”, chega-se a um diagnóstico e a um tratamento. Se você tiver um único diagnóstico e tratamento, o resultado pode ser razoável. Mas, na maioria das vezes, em uma pessoa que envelhece, há vários diagnósticos, o que significa somar tratamentos, o que gera um grande problema da Geriatria, que é a polifarmácia. O modelo da medicina convencional gera a demanda de inúmeros medicamentos concomitantemente, o que acaba sendo inviável.
O Centro de Estudos do Envelhecimento é um centro epidemiológico. Inicialmente, no fim dos anos 1980, início dos 1990, foram recenseados 1.700 idosos e passamos a acompanhá-los de dois em dois anos. Uma das principais constatações que tivemos é a seguinte: o que vai gerar um envelhecimento bem-sucedido, com preservação da cognição e da motricidade, decorre basicamente do estilo de vida, das escolhas que você faz a cada momento. Basicamente, envelhecer bem é perder o mínimo possível de capacidade funcional. Como a indústria farmacêutica ainda não inventou um Estilol 5.000 para você tomar três vezes ao dia e mudar de estilo de vida, a gente precisava de um modelo que reconhecesse essas dimensões imateriais do ser humano associadas ao estilo de vida. De onde vêm as escolhas, o que faz com que eu esteja sentado assim e não assado, que eu respire só com a parte alta do tórax e não com o diafragma?
Como são vários fatores envolvidos, a gente precisava de um modelo mais ampliado que a medicina convencional para estudar o envelhecimento. Nessa ocasião, eu já tinha contato com Amit Goswami, professor de Física Quântica na Universidade do Oregon, que compartilhou conosco esse modelo que reconhecia várias dimensões no ser humano: a física, bem estudada pelo olhar mecânico, a metabólica, que conecta esses sistemas, e as demais, que são todas imateriais: vital, mental e supramental. “Supramental” é um nome bonito para espiritualidade.
E quem não acredita em espiritualidade vai aceitar esse método?
Não é questão de acreditar ou não. Várias vezes ouvi esse questionamento em relação à homeopatia. E brincava dizendo que dá muito trabalho convencer a vaca de que a imaterialidade funciona [a homeopatia é largamente aplicada em animais]. Quando hoje eu levo esse olhar para as organizações, a gente faz um exercício de observação fenomenológica, justamente com o intuito de torná-las palpáveis. Milton Erikson, falecido em 1980 e considerado a maior autoridade em hipnose da atualidade, entendia hipnose como um diálogo entre almas. Dizia que, para que você alcançasse essa condição, precisava pagar um pedágio para a razão. Principalmente nas organizações, a gente fala que vai pagar esse pedágio como etapa número 1. E a partir daí oferece oportunidades de experiência para que as pessoas possam constatar os resultados.
Com esse modelo multidimensional, pudemos primeiro entender melhor o que víamos nos idosos, passamos a ter um background e a atuar de forma diferente. Agregamos a cada dimensão desse modelo quântico intervenções correspondentes. Na física, mantivemos o trabalho com a medicina convencional. Na metabólica, usamos o conhecimento da nutrição ampliado pelo conhecimento da produção de alimentos ecológicos e orgânicos. Na vital, ainda que a gente possa considerar também a acupuntura, talvez a rainha das intervenções seja a homeopatia. Principalmente a homeopatia clássica, que dá um só medicamento para a pessoa inteira. Atua de maneira fantástica no plano da vitalidade, resgatando o sono reparador, o ritmo, devolvendo a pessoa a uma condição funcional. Qualquer doença crônica, como hipertensão arterial, diabetes, obesidade, depressão, só vai acontecer se você tiver perdido o sono reparador.
É mesmo? Se você tiver um sono reparador não terá doença crônica?
Não.
Qual é a explicação? É porque o próprio organismo se refaz com o sono?
Sim. E a melhor forma de você prevenir doença crônica é ter doença aguda. Se você respeitar suas doenças agudas, não terá doença crônica.
Por quê? A aguda funciona como uma crise que traz oportunidade?
Você já deve ter experimentado isso. Tinha uma edição para fechar, trabalhou tudo o que não podia, chegou no fim de semana e caiu de cama. Se você ceder a isso e tiver febre, suar, tiver os delírios e tudo a que tem direito, você chega na 2a feira zero bala. Você percebe isso quando senta na sua mesa e aquelas coisas que não tinham solução na 5a ou 6a feira magicamente são resolvidas na 2a, porque você chegou lá diferente. Então a doença aguda é indispensável para se ter saúde. Isso a gente vê no símbolo do yin/yang: no âmago do yin tem uma semente do yang, e no âmago do yang tem uma semente do yin. A semente da saúde é a doença aguda.
Retomando, paramos na dimensão vital.
Sim, e com isso a gente desenvolveu a homeopatia, daí passamos a dar uma importância muito grande para a postura física e o funcionamento das cadeias musculares, porque, quando estas estão bloqueadas, a libido, a vitalidade não flui. Então é preciso ter um reaprendizado postural para que se possa literalmente voltar ao eixo. E o que altera a postura é a atitude mental. Vou dar um exemplo: a hipertensão arterial. Ela começa com uma alienação, com a pessoa desligada de sua dimensão supramental, da sua espiritualidade, sua missão de vida. Quando isso acontece, a dimensão imediatamente anterior, que é a mental, assume um grau maior de autonomia, você passa a funcionar só com o seu intelecto, e não com sua inspiração e intuição. Deixa de ser guiado pelo seu espírito.
No caso da hipertensão arterial, desenvolve-se uma atitude mental “pré-ocupada”. A pessoa não vive no presente, está sempre na meta de vendas (a gente constatou isso em um ensaio clínico numa organização do comércio varejista), a casa que eu não comprei, o carro do ano que ainda não tenho. Isso leva, inclusive, a uma anteriorização na postura. A pessoa fica com o corpo inclinado para a frente. Você fala para ela ficar no eixo e ela responde: “Mas eu estou no eixo”. É até compreensível, porque ela está em atitude proativa, sempre pronta a dar o próximo passo.
Acabo de voltar de Juqueí [Litoral Norte de São Paulo] e, quando fico sentado vendo as pessoas se divertindo na praia, observo que a maioria está anteriorizada, comprovando a tese de que estão ali em atitude teoricamente de lazer e relaxamento, mas a sua postura impede de absorver isso plenamente. Essa postura muda o ritmo, perdem-se as pausas respiratórias. O bebê respira em pausas. Inspira, pausa, respira, pausa. Por isso que as mães ligam desesperadas para o pediatra dizendo que o filho parou de respirar.
E a gente perde isso quando cresce?
Perde por conta dessa atitude mental. Perdendo as pausas respiratórias, a pessoa deixa de ter sono reparador, tem alterações no metabolismo e esse terreno metabólico alterado possibilita a implantação da doença cardiovascular. Existe uma cascata de causalidades até chegar ao fato concreto que é a pressão arterial elevada – doença que a medicina convencional trata hidraulicamente. É um modelo mecânico.
O tratamento da hipertensão sem causa conhecida é feito por retirada de líquidos por meio do diurético – antes era tirado por sangria, dizem até que George Washington morreu por falta de sangue. Quando o diurético não funciona, o médico ainda dá um vasodilator. Hoje, a gente trata hipertensão arterial com meditação, porque a meditação vai agir lá no início da cascata. Ela devolve aos indivíduos a possibilidade de “lembrar” de sua missão de vida. Passam a agir com atitude mental e postura física coerentes com isso.
No ensaio clínico que fizemos em São Mateus, sem que a gente fizesse nenhuma intervenção fisioterápica, os idosos saíram naturalmente da anteriorização e voltaram a seu eixo, e espontaneamente mudaram de hábito alimentar. O que para nós foi uma surpresa.
A meditação faz com que se chegue em frequência cerebral similar à do sono reparador, é isso?
No estado de consciência meditativo, você está em ondas encefalográficas equivalentes às do sono profundo.
Como se deu essa experiência com meditação em São Mateus? Por que isso aconteceu lá, como se chegou à escolha da técnica da meditação?
Hoje, embora menos do que antes, a meditação é envolta em fantasias. Muita gente me pergunta: “Você está preocupado com meditação quando tem gente sem ter o que comer?” Como quem diz: tem uma questão social antes. Primeiro, achei que seria mais interessante trabalhar com uma população socialmente vulnerável. Foi uma opção. Segundo, aconteceu que demos uma palestra sobre envelhecimento no Hospital Geral de São Mateus e havia pessoas em grau razoável de politização demandando uma série de coisas: “Queremos fazer isso, aquilo etc.” Aí respondi que topava fazer se as pessoas aceitassem que isso se transformasse em uma pesquisa. E tanto o pessoal da área de saúde do hospital quanto os idosos toparam fazer isso de forma voluntária.
Parece que os resultados foram incríveis.
Foram. E são preliminares. Essa pesquisa foi feita sem recurso nenhum, então estou dependendo de alguns recursos para poder processar os dados.
Houve até mesmo cura de glaucoma, doença considerada incurável pela medicina convencional?
Coisas das mais surpreendentes aconteceram. Se fosse um caso de glaucoma, você poderia dizer: sorte de principiante. Mas foram dois casos. Hipertensão também é considerada incurável, você tem que tomar remédio o resto da vida. Diabetes também. Aí a gente percebe que a pessoa, ao voltar para seu alinhamento não só postural como essencial, tem um desempenho totalmente diferente. Isso é palpável: pessoas que têm apneia do sono e passam a usar aquela máscara à noite, a Cpap, e deixam de ser hipertensas, mostrando como essa cascata de causalidade é um fato. Se você conseguir fazer com que essa pessoa, por meio da máscara, tenha uma respiração rítmica na marra, isso provoca uma onda de causalidade que faz com que a hipertensão desapareça. Mas, dali para cima, continua o problema.
Qual a aceitação desse método na comunidade médica? Essa experiência, esses resultados foram divulgados?
No ano retrasado, criamos o setor de transdisciplinaridade ligada à saúde, na Unifesp. E no ano passado, pioneiramente, oferecemos um curso de diagnósticos arquetípicos, que são feitos no plano não físico. Pode-se fazer através de um sonho, usando um olhar junguiano. Tem vários outros caminhos, como o da homeopatia. Procuramos oferecer a maioria desses caminhos. E, para nossa surpresa, chegamos a ter mais de 50 interessados, mais da metade médicos. O que significa que há profissionais de saúde em geral buscando outros modelos, porque não estão satisfeitos com o convencional.
São inegáveis os avanços da medicina. Por outro lado, cresce essa noção de que não seja completa. Então, qual é o balanço entre a ideia de que o modelo convencional é um sucesso e a ideia de que tem falhado?
Tudo tem o seu lado positivo. Se a gente puder dizer que a Inquisição teve o seu, foi o de encurralar o leigo no mundo da matéria. Dizem que nos polos existem mais de, sei lá, 30 nomes para gelo. Se você chamar de gelo, como tudo é gelo, você não vai a lugar nenhum. Então precisa diferenciar os vários gelos para que se tenha funcionalidade atrelada a isso. Na medida em que se condena alguém a ficar cerceado no mundo material, que foi o que a Inquisição fez, surgiu uma ciência que tentou explicar tudo no nível da matéria, e com isso grandes avanços foram desenvolvidos (mais na linha do tempo da medicina).
Não fosse isso, as linhagens de medicina tradicionais não enveredariam por aí. Exemplo, se um médico tibetano alcança as informações de que precisa pegando o pulso, experimentando a saliva, olhando para secreções, provavelmente não sairia daí uma pesquisa de laboratório, até por falta de necessidade. O avanço de fato foi imenso, mas muitas vezes não alcança os níveis causais, como nesse simples exemplo da hipertensão arterial. Uma pessoa com hipertensão não precisa tomar medicamento o resto da vida; precisa, sim, mudar seu estilo de vida, precisa se reencontrar. A hipertensão está lá justamente para dar uma chance para que ela volte a ser uma pessoa mais realizada, mais saudável. Aliás, esse é o papel da doença. A doença surge no processo da vida para realinhar a vida.
O que deve ser entendido como saúde e como doença, pela visão transdisciplinar?
Mesmo no olhar convencional, houve um grande progresso nesse conceito. Houve um tempo em que a Organização Mundial da Saúde dizia que estado de saúde era ausência de doença. Isso foi questionado e hoje a OMS considera que saúde é um estado de equilíbrio no mínimo biopsicossocial e já inclui questões espirituais, tanto é que o instrumento que usamos para medir espiritualidade é da OMS.
Existem duas vertentes para medir qualidade de vida. Uma é clinimétrica – são questionários nascidos da observação clínica. Por exemplo, eu espero que uma pessoa que medite volte a ter sono reparador, um intestino com melhor funcionamento, um apetite mais harmônico. Então posso criar um questionário que tente mensurar esses aspectos, porque eu clinicamente os observo. Eu que invento as perguntas. Outra vertente é psicométrica. Quero medir qualidade de vida. Mas como vou medir uma coisa que não sei o que é?
Então a OMS perguntou para o ser humano no mundo inteiro, por meio de uma pesquisa qualitativa, com grupos focais, o que é qualidade de vida. Disso se chegou a um consenso, com 25 tópicos, que foram desmembrados em 4 perguntas para cada tópico. E um desses tópicos é espiritualidade. Percebeu-se que esse instrumento mais genérico variava de faixa etária, tipo de população. A espiritualidade é um tema mais presente entre idosos.
A doença é um fenômeno ecológico e não individual. A eclosão que se dá no indivíduo é o resultado de uma conjuntura de fatores do ambiente. Costumo dizer que, para tratar a úlcera do vovô, você precisa medicar o genro. Mas nossa cultura contemporânea nos leva para fora e não para dentro. Então perdemos os referenciais intrínsecos em que você para e se pergunta: “O que eu preciso comer hoje?” Em vez disso, vai comer o que a Veja da última semana disse que era bom, ou o Fantástico ou o Google. Mas cada pessoa é um sistema em si, então as minhas necessidades são diferentes da sua, dele etc. (mais em “Dentro de nós um bioma”).
O corpo “pede” o que precisa comer?
O corpo pede, mas você precisa ouvir o que o corpo está pedindo. Você precisa estar presente. Então aquela pessoa “pré-ocupada” não está em si: está no futuro.
Voltando à sua percepção das pessoas anteriorizadas: isso é resultado de um ambiente contemporâneo, do modo de vida moderno, de estresse que não existia tanto nas gerações anteriores? Vivemos mais, mas vivemos pior?
Suponho que um dos principais motivos pelos quais a humanidade está aqui hoje foi por sua capacidade de ser parceira da natureza por milhares e milhares de anos. Por volta de 3.500 a.C., na chamada Europa Antiga, iniciou-se essa outra atitude que deixou de ser parceira para ser exploradora da natureza, na mudança da gilania para a androcracia. Acho interessante a gente abordar isso, porque com certeza a principal causa da insustentabilidade é a androcracia. Tanto isso é verdade que algumas organizações estão, eu diria, intuitivamente, mudando os paradigmas de liderança da autoritária para a compartilhada, colaborativa etc. E, para se chegar no âmago disso, a mudança no estado de consciência é fundamental. A gente advoga, sugere, que as empresas adotem o uso da meditação no seu cotidiano, porque isso faz com que os gestores, os executivos, acessem aquilo que o [Fritjof] Capra chama de redes de padrões sistêmicos, por meio do estado de consciência meditativo. E, a partir daí, gerem projetos sustentáveis. Não é o que acontece hoje, pois se parte de uma metodologia insustentável, fragmentada.
O gestor que medita acaba tendo uma relação diferente com o universo. Lembro de um workshop no Sebrae de Mato Grosso em que uma gestora estava fazendo um projeto de criação de pintados. O modelo androcrático de criar pintado é tirá-lo do ambiente, criar um ambiente artificial, fazer uma desova induzida e alimentar o pintado, que nasceu para comer presa viva, com soja morta. E daí essa moça, ao final de quatro dias de atividades, chegou a nós e falou: “Não sei se estou ficando louca, mas ficou claro pra mim que, pra eu criar pintado, preciso de quatro insumos: luz, água, ar e calor. E, se eu conduzir adequadamente esses quatro insumos, ao final eu terei pintados”.
Aí foi coincidência, ou sincronicidade, pois dois dias depois eu encontrei o [Philippe] Pommez, vice-presidente da Natura, em Congonhas, e contei isso pra ele. E ele comentou: “Olha que interessante, semana passada eu soube de um caso do ISA, o Instituto Socioambiental, que, acompanhando uma população indígena ao norte de São Gabriel da Cachoeira, os índios pediram à ONG subsídios técnicos exatamente para “canalizar a natureza” e produzir pirarucu. O princípio de parceria com a natureza é o mesmo, você usa a tecnologia a serviço dessa parceria e não a serviço da exploração. Faria muita diferença se mais e mais empresas pudessem adotar essa premissa.
Hoje há uma incidência maior de doenças como câncer, depressão, hipertensão e diabetes, ou antes isso não era diagnosticado?
A gente pode dizer que genericamente a espécie humana está mais distante da natureza que outrora e, como consequência, está mais doente. Isso é um fato concreto. Tanto que se vê um número crescente de pessoas buscando procedimentos curativos alternativos ao convencional. Nos EUA, cresceu barbaramente o volume de práticas alternativas em saúde, principalmente as integrativas.
Sinal de que há uma percepção de que a convencional não está atendendo plenamente à demanda?
Sim. E muitas vezes a gente percebe como o universo da saúde não sabe como lidar integrativamente com essas ferramentas.
Como buscar essa integração sem perder todo o conhecimento acumulado na especialização médica?
Por isso que a gente sugere o uso da atitude transdisciplinar, que é nascida da academia convencional. Diria que é uma evolução da academia convencional, que reconhece a multidimensionalidade e precisa atuar de maneira complexa e não reducionista. A convencional reduz o fenômeno e por isso o perde, pois o fenômeno é complexo.
Podemos dizer que temos doenças contemporâneas, como síndrome do pânico e déficit de atenção?
Com certeza. Há dois anos, fui convidado para dar palestra em um congresso sobre consciência e tomei conhecimento de uma escola em Salvador na qual as crianças meditam antes do início das aulas. E o índice de déficit de atenção e de hiperatividade é zero. Inclusive, existe um projeto atual, de uma comunidade mundial de meditação cristã, que está com grandes frentes de trabalho no estudo e introdução da meditação nas escolas.
Deve haver muita resistência a isso, não é?
Às vezes você precisa mudar de nome. Em vez de meditação, dizer: “Exercício concentrativo”. Aí as mães vão adorar! (risos) Até porque algumas religiões condenam a prática da meditação.
Qual a legitimidade de ficar doente e de viver as limitações do envelhecimento? Por exemplo, uma pessoa que tenha câncer e se negue a sofrer toda a intervenção médica, quimioterápica etc., é malvista, a família não entende. Vivemos uma ditadura do bem-estar, da juventude e da saúde?
No norte do Hemisfério Norte, entenda-se Canadá, Escandinávia, existe uma crescente atitude do médico como um parceiro do doente, informando e acompanhando o doente em sua decisão. Mas, aqui, o médico coloca-se no papel de autoridade máxima, ele “sabe o que é o melhor para o paciente”. Acho que a atitude mais sensata é a da parceria. Quantas vezes a pessoa no fim da vida, passando por um processo de limitação funcional, vai aprender coisas que ao longo de sua vida não pôde aprender, como o companheirismo e a humildade? Agora, a doença está ali para te dar uma oportunidade e, aí sim, é papel do profissional de saúde se antecipar, compreender e ajudar a pessoa a desfrutar essa oportunidade[:en]Como a Medicina pode evoluir para uma abordagem mais completa do ser
humano? Para o médico Fernando Bignardi, a resposta está na transdisciplinaridade
Um grupo de idosos em São Mateus, periferia da Zona Leste de São Paulo, protagonizou fenômenos surpreendentes, com a cura de doenças como glaucoma, diabetes e hipertensão – tidas como incuráveis pela medicina convencional. E o mais interessante: por meio de uma técnica insuspeitada, a meditação. A experiência é parte das pesquisas de Fernando Bignardi, coordenador do Centro de Estudos do Envelhecimento da Unifesp.
Segundo ele, por meio da meditação o paciente reencontra o equilíbrio e resgata sua missão de vida, com efeitos positivos em cascata nas cinco dimensões do ser humano: física, metabólica, vital, mental e supramental. Ao traçar o paralelo do ser humano com o mundo corporativo e os modelos de produção, Bignardi começa a levar esse modelo transdisciplinar para as organizações. “A gente sugere que os gestores e colaboradores adotem o uso da meditação no seu cotidiano, porque isso faz com que gerem projetos sustentáveis. Não é o que acontece hoje, pois se parte de uma metodologia insustentável, fragmentada”, diz.
Quais são os problemas e as limitações da medicina convencional?
É uma medicina ancorada em um modelo mecânico, que entende o ser humano como uma máquina. Portanto, não tem alma nem espírito. É o conjunto de átomos organizados em moléculas que funcionam. Tanto é que no curso médico a gente não tem nenhuma formação humanística, exceto algo bem superficial na Psicologia Médica. Esse é um dos grandes problemas. Quem se interessa por Medicina de Família, que é uma especialidade médica contemporânea voltada para entender o ser humano na sua totalidade, sente deficiência nesse campo. É uma pena, pois, quando nós levamos o modelo transdisciplinar ao Congresso Nacional de Medicina de Família em 2008, foi muito bem-vindo.
O que o modelo transdisciplinar na saúde propõe?
Quando voltei à Escola Paulista de Medicina, em 1995, o então reitor, o Dr. Hélio Egydio [Nogueira], me convidou para introduzir a homeopatia na escola, sob orientação do Ministério da Saúde. Nessa ocasião, o espaço que se sentia motivado a receber a homeopatia era o setor de geriatria e gerontologia. Eles entendiam que essa “alternativa” terapêutica podia ser muito interessante. Mas a gente teve uma série de dificuldades, porque não havia uma aceitação à homeopatia, uma vez que esta trabalha além do nível da matéria.
Na preparação de um medicamento homeopático, há diluições que ultrapassam o número de Avogadro, que diz quantas moléculas tem naquele preparado. Chega-se a um nível em que não há mais molécula. E, no entendimento convencional, uma solução que não tenha molécula é água pura. Então isso era muito difícil de ser dialogado. Mas, usando a lógica da medicina baseada em evidência, fiz um experimento no qual a gente acrescentou a homeopatia ao tratamento convencional de idosos. Usando um recurso de mensuração de qualidade de vida, a gente pôde demonstrar que o sentido da vida e a espiritualidade desse idoso sofreram um incremento. Um dos grandes problemas da maturidade, na terceira idade, é a perda do sentido da vida, em consequência da Revolução Industrial, que transformou o homem em um insumo.
Como ficou idoso, não serve mais para a produção e aí perde o valor?
Sim, e isso vai para o inconsciente da pessoa, ela passa a se sentir inútil. E isso é o começo do fim. Tanto que é muito comum uma pessoa que se aposentou fazer mil planos de viajar etc., e seis meses depois está morta. Simplesmente ela se perde, porque o sentido da vida era o trabalho. Felizmente, algumas empresas hoje estão atentas a isso e existem programas de preparação para a aposentadoria.
Pois bem, diante desse panorama de estudar, compreender e atender o idoso, nós, do Centro de Estudos do Envelhecimento, percebemos que o modelo mecânico era insuficiente. Isso porque, na medicina convencional, tudo começa com o “onde”. Onde dói? A partir disso é que começa o raciocínio médico. Se não tiver o “onde”, você é encaminhado para a Psiquiatria. A indicação da Psiquiatria começa com a falta do “onde”. Tendo o “onde”, chega-se a um diagnóstico e a um tratamento. Se você tiver um único diagnóstico e tratamento, o resultado pode ser razoável. Mas, na maioria das vezes, em uma pessoa que envelhece, há vários diagnósticos, o que significa somar tratamentos, o que gera um grande problema da Geriatria, que é a polifarmácia. O modelo da medicina convencional gera a demanda de inúmeros medicamentos concomitantemente, o que acaba sendo inviável.
O Centro de Estudos do Envelhecimento é um centro epidemiológico. Inicialmente, no fim dos anos 1980, início dos 1990, foram recenseados 1.700 idosos e passamos a acompanhá-los de dois em dois anos. Uma das principais constatações que tivemos é a seguinte: o que vai gerar um envelhecimento bem-sucedido, com preservação da cognição e da motricidade, decorre basicamente do estilo de vida, das escolhas que você faz a cada momento. Basicamente, envelhecer bem é perder o mínimo possível de capacidade funcional. Como a indústria farmacêutica ainda não inventou um Estilol 5.000 para você tomar três vezes ao dia e mudar de estilo de vida, a gente precisava de um modelo que reconhecesse essas dimensões imateriais do ser humano associadas ao estilo de vida. De onde vêm as escolhas, o que faz com que eu esteja sentado assim e não assado, que eu respire só com a parte alta do tórax e não com o diafragma?
Como são vários fatores envolvidos, a gente precisava de um modelo mais ampliado que a medicina convencional para estudar o envelhecimento. Nessa ocasião, eu já tinha contato com Amit Goswami, professor de Física Quântica na Universidade do Oregon, que compartilhou conosco esse modelo que reconhecia várias dimensões no ser humano: a física, bem estudada pelo olhar mecânico, a metabólica, que conecta esses sistemas, e as demais, que são todas imateriais: vital, mental e supramental. “Supramental” é um nome bonito para espiritualidade.
E quem não acredita em espiritualidade vai aceitar esse método?
Não é questão de acreditar ou não. Várias vezes ouvi esse questionamento em relação à homeopatia. E brincava dizendo que dá muito trabalho convencer a vaca de que a imaterialidade funciona [a homeopatia é largamente aplicada em animais]. Quando hoje eu levo esse olhar para as organizações, a gente faz um exercício de observação fenomenológica, justamente com o intuito de torná-las palpáveis. Milton Erikson, falecido em 1980 e considerado a maior autoridade em hipnose da atualidade, entendia hipnose como um diálogo entre almas. Dizia que, para que você alcançasse essa condição, precisava pagar um pedágio para a razão. Principalmente nas organizações, a gente fala que vai pagar esse pedágio como etapa número 1. E a partir daí oferece oportunidades de experiência para que as pessoas possam constatar os resultados.
Com esse modelo multidimensional, pudemos primeiro entender melhor o que víamos nos idosos, passamos a ter um background e a atuar de forma diferente. Agregamos a cada dimensão desse modelo quântico intervenções correspondentes. Na física, mantivemos o trabalho com a medicina convencional. Na metabólica, usamos o conhecimento da nutrição ampliado pelo conhecimento da produção de alimentos ecológicos e orgânicos. Na vital, ainda que a gente possa considerar também a acupuntura, talvez a rainha das intervenções seja a homeopatia. Principalmente a homeopatia clássica, que dá um só medicamento para a pessoa inteira. Atua de maneira fantástica no plano da vitalidade, resgatando o sono reparador, o ritmo, devolvendo a pessoa a uma condição funcional. Qualquer doença crônica, como hipertensão arterial, diabetes, obesidade, depressão, só vai acontecer se você tiver perdido o sono reparador.
É mesmo? Se você tiver um sono reparador não terá doença crônica?
Não.
Qual é a explicação? É porque o próprio organismo se refaz com o sono?
Sim. E a melhor forma de você prevenir doença crônica é ter doença aguda. Se você respeitar suas doenças agudas, não terá doença crônica.
Por quê? A aguda funciona como uma crise que traz oportunidade?
Você já deve ter experimentado isso. Tinha uma edição para fechar, trabalhou tudo o que não podia, chegou no fim de semana e caiu de cama. Se você ceder a isso e tiver febre, suar, tiver os delírios e tudo a que tem direito, você chega na 2a feira zero bala. Você percebe isso quando senta na sua mesa e aquelas coisas que não tinham solução na 5a ou 6a feira magicamente são resolvidas na 2a, porque você chegou lá diferente. Então a doença aguda é indispensável para se ter saúde. Isso a gente vê no símbolo do yin/yang: no âmago do yin tem uma semente do yang, e no âmago do yang tem uma semente do yin. A semente da saúde é a doença aguda.
Retomando, paramos na dimensão vital.
Sim, e com isso a gente desenvolveu a homeopatia, daí passamos a dar uma importância muito grande para a postura física e o funcionamento das cadeias musculares, porque, quando estas estão bloqueadas, a libido, a vitalidade não flui. Então é preciso ter um reaprendizado postural para que se possa literalmente voltar ao eixo. E o que altera a postura é a atitude mental. Vou dar um exemplo: a hipertensão arterial. Ela começa com uma alienação, com a pessoa desligada de sua dimensão supramental, da sua espiritualidade, sua missão de vida. Quando isso acontece, a dimensão imediatamente anterior, que é a mental, assume um grau maior de autonomia, você passa a funcionar só com o seu intelecto, e não com sua inspiração e intuição. Deixa de ser guiado pelo seu espírito.
No caso da hipertensão arterial, desenvolve-se uma atitude mental “pré-ocupada”. A pessoa não vive no presente, está sempre na meta de vendas (a gente constatou isso em um ensaio clínico numa organização do comércio varejista), a casa que eu não comprei, o carro do ano que ainda não tenho. Isso leva, inclusive, a uma anteriorização na postura. A pessoa fica com o corpo inclinado para a frente. Você fala para ela ficar no eixo e ela responde: “Mas eu estou no eixo”. É até compreensível, porque ela está em atitude proativa, sempre pronta a dar o próximo passo.
Acabo de voltar de Juqueí [Litoral Norte de São Paulo] e, quando fico sentado vendo as pessoas se divertindo na praia, observo que a maioria está anteriorizada, comprovando a tese de que estão ali em atitude teoricamente de lazer e relaxamento, mas a sua postura impede de absorver isso plenamente. Essa postura muda o ritmo, perdem-se as pausas respiratórias. O bebê respira em pausas. Inspira, pausa, respira, pausa. Por isso que as mães ligam desesperadas para o pediatra dizendo que o filho parou de respirar.
E a gente perde isso quando cresce?
Perde por conta dessa atitude mental. Perdendo as pausas respiratórias, a pessoa deixa de ter sono reparador, tem alterações no metabolismo e esse terreno metabólico alterado possibilita a implantação da doença cardiovascular. Existe uma cascata de causalidades até chegar ao fato concreto que é a pressão arterial elevada – doença que a medicina convencional trata hidraulicamente. É um modelo mecânico.
O tratamento da hipertensão sem causa conhecida é feito por retirada de líquidos por meio do diurético – antes era tirado por sangria, dizem até que George Washington morreu por falta de sangue. Quando o diurético não funciona, o médico ainda dá um vasodilator. Hoje, a gente trata hipertensão arterial com meditação, porque a meditação vai agir lá no início da cascata. Ela devolve aos indivíduos a possibilidade de “lembrar” de sua missão de vida. Passam a agir com atitude mental e postura física coerentes com isso.
No ensaio clínico que fizemos em São Mateus, sem que a gente fizesse nenhuma intervenção fisioterápica, os idosos saíram naturalmente da anteriorização e voltaram a seu eixo, e espontaneamente mudaram de hábito alimentar. O que para nós foi uma surpresa.
A meditação faz com que se chegue em frequência cerebral similar à do sono reparador, é isso?
No estado de consciência meditativo, você está em ondas encefalográficas equivalentes às do sono profundo.
Como se deu essa experiência com meditação em São Mateus? Por que isso aconteceu lá, como se chegou à escolha da técnica da meditação?
Hoje, embora menos do que antes, a meditação é envolta em fantasias. Muita gente me pergunta: “Você está preocupado com meditação quando tem gente sem ter o que comer?” Como quem diz: tem uma questão social antes. Primeiro, achei que seria mais interessante trabalhar com uma população socialmente vulnerável. Foi uma opção. Segundo, aconteceu que demos uma palestra sobre envelhecimento no Hospital Geral de São Mateus e havia pessoas em grau razoável de politização demandando uma série de coisas: “Queremos fazer isso, aquilo etc.” Aí respondi que topava fazer se as pessoas aceitassem que isso se transformasse em uma pesquisa. E tanto o pessoal da área de saúde do hospital quanto os idosos toparam fazer isso de forma voluntária.
Parece que os resultados foram incríveis.
Foram. E são preliminares. Essa pesquisa foi feita sem recurso nenhum, então estou dependendo de alguns recursos para poder processar os dados.
Houve até mesmo cura de glaucoma, doença considerada incurável pela medicina convencional?
Coisas das mais surpreendentes aconteceram. Se fosse um caso de glaucoma, você poderia dizer: sorte de principiante. Mas foram dois casos. Hipertensão também é considerada incurável, você tem que tomar remédio o resto da vida. Diabetes também. Aí a gente percebe que a pessoa, ao voltar para seu alinhamento não só postural como essencial, tem um desempenho totalmente diferente. Isso é palpável: pessoas que têm apneia do sono e passam a usar aquela máscara à noite, a Cpap, e deixam de ser hipertensas, mostrando como essa cascata de causalidade é um fato. Se você conseguir fazer com que essa pessoa, por meio da máscara, tenha uma respiração rítmica na marra, isso provoca uma onda de causalidade que faz com que a hipertensão desapareça. Mas, dali para cima, continua o problema.
Qual a aceitação desse método na comunidade médica? Essa experiência, esses resultados foram divulgados?
No ano retrasado, criamos o setor de transdisciplinaridade ligada à saúde, na Unifesp. E no ano passado, pioneiramente, oferecemos um curso de diagnósticos arquetípicos, que são feitos no plano não físico. Pode-se fazer através de um sonho, usando um olhar junguiano. Tem vários outros caminhos, como o da homeopatia. Procuramos oferecer a maioria desses caminhos. E, para nossa surpresa, chegamos a ter mais de 50 interessados, mais da metade médicos. O que significa que há profissionais de saúde em geral buscando outros modelos, porque não estão satisfeitos com o convencional.
São inegáveis os avanços da medicina. Por outro lado, cresce essa noção de que não seja completa. Então, qual é o balanço entre a ideia de que o modelo convencional é um sucesso e a ideia de que tem falhado?
Tudo tem o seu lado positivo. Se a gente puder dizer que a Inquisição teve o seu, foi o de encurralar o leigo no mundo da matéria. Dizem que nos polos existem mais de, sei lá, 30 nomes para gelo. Se você chamar de gelo, como tudo é gelo, você não vai a lugar nenhum. Então precisa diferenciar os vários gelos para que se tenha funcionalidade atrelada a isso. Na medida em que se condena alguém a ficar cerceado no mundo material, que foi o que a Inquisição fez, surgiu uma ciência que tentou explicar tudo no nível da matéria, e com isso grandes avanços foram desenvolvidos (mais na linha do tempo da medicina).
Não fosse isso, as linhagens de medicina tradicionais não enveredariam por aí. Exemplo, se um médico tibetano alcança as informações de que precisa pegando o pulso, experimentando a saliva, olhando para secreções, provavelmente não sairia daí uma pesquisa de laboratório, até por falta de necessidade. O avanço de fato foi imenso, mas muitas vezes não alcança os níveis causais, como nesse simples exemplo da hipertensão arterial. Uma pessoa com hipertensão não precisa tomar medicamento o resto da vida; precisa, sim, mudar seu estilo de vida, precisa se reencontrar. A hipertensão está lá justamente para dar uma chance para que ela volte a ser uma pessoa mais realizada, mais saudável. Aliás, esse é o papel da doença. A doença surge no processo da vida para realinhar a vida.
O que deve ser entendido como saúde e como doença, pela visão transdisciplinar?
Mesmo no olhar convencional, houve um grande progresso nesse conceito. Houve um tempo em que a Organização Mundial da Saúde dizia que estado de saúde era ausência de doença. Isso foi questionado e hoje a OMS considera que saúde é um estado de equilíbrio no mínimo biopsicossocial e já inclui questões espirituais, tanto é que o instrumento que usamos para medir espiritualidade é da OMS.
Existem duas vertentes para medir qualidade de vida. Uma é clinimétrica – são questionários nascidos da observação clínica. Por exemplo, eu espero que uma pessoa que medite volte a ter sono reparador, um intestino com melhor funcionamento, um apetite mais harmônico. Então posso criar um questionário que tente mensurar esses aspectos, porque eu clinicamente os observo. Eu que invento as perguntas. Outra vertente é psicométrica. Quero medir qualidade de vida. Mas como vou medir uma coisa que não sei o que é?
Então a OMS perguntou para o ser humano no mundo inteiro, por meio de uma pesquisa qualitativa, com grupos focais, o que é qualidade de vida. Disso se chegou a um consenso, com 25 tópicos, que foram desmembrados em 4 perguntas para cada tópico. E um desses tópicos é espiritualidade. Percebeu-se que esse instrumento mais genérico variava de faixa etária, tipo de população. A espiritualidade é um tema mais presente entre idosos.
A doença é um fenômeno ecológico e não individual. A eclosão que se dá no indivíduo é o resultado de uma conjuntura de fatores do ambiente. Costumo dizer que, para tratar a úlcera do vovô, você precisa medicar o genro. Mas nossa cultura contemporânea nos leva para fora e não para dentro. Então perdemos os referenciais intrínsecos em que você para e se pergunta: “O que eu preciso comer hoje?” Em vez disso, vai comer o que a Veja da última semana disse que era bom, ou o Fantástico ou o Google. Mas cada pessoa é um sistema em si, então as minhas necessidades são diferentes da sua, dele etc. (mais em “Dentro de nós um bioma”).
O corpo “pede” o que precisa comer?
O corpo pede, mas você precisa ouvir o que o corpo está pedindo. Você precisa estar presente. Então aquela pessoa “pré-ocupada” não está em si: está no futuro.
Voltando à sua percepção das pessoas anteriorizadas: isso é resultado de um ambiente contemporâneo, do modo de vida moderno, de estresse que não existia tanto nas gerações anteriores? Vivemos mais, mas vivemos pior?
Suponho que um dos principais motivos pelos quais a humanidade está aqui hoje foi por sua capacidade de ser parceira da natureza por milhares e milhares de anos. Por volta de 3.500 a.C., na chamada Europa Antiga, iniciou-se essa outra atitude que deixou de ser parceira para ser exploradora da natureza, na mudança da gilania para a androcracia. Acho interessante a gente abordar isso, porque com certeza a principal causa da insustentabilidade é a androcracia. Tanto isso é verdade que algumas organizações estão, eu diria, intuitivamente, mudando os paradigmas de liderança da autoritária para a compartilhada, colaborativa etc. E, para se chegar no âmago disso, a mudança no estado de consciência é fundamental. A gente advoga, sugere, que as empresas adotem o uso da meditação no seu cotidiano, porque isso faz com que os gestores, os executivos, acessem aquilo que o [Fritjof] Capra chama de redes de padrões sistêmicos, por meio do estado de consciência meditativo. E, a partir daí, gerem projetos sustentáveis. Não é o que acontece hoje, pois se parte de uma metodologia insustentável, fragmentada.
O gestor que medita acaba tendo uma relação diferente com o universo. Lembro de um workshop no Sebrae de Mato Grosso em que uma gestora estava fazendo um projeto de criação de pintados. O modelo androcrático de criar pintado é tirá-lo do ambiente, criar um ambiente artificial, fazer uma desova induzida e alimentar o pintado, que nasceu para comer presa viva, com soja morta. E daí essa moça, ao final de quatro dias de atividades, chegou a nós e falou: “Não sei se estou ficando louca, mas ficou claro pra mim que, pra eu criar pintado, preciso de quatro insumos: luz, água, ar e calor. E, se eu conduzir adequadamente esses quatro insumos, ao final eu terei pintados”.
Aí foi coincidência, ou sincronicidade, pois dois dias depois eu encontrei o [Philippe] Pommez, vice-presidente da Natura, em Congonhas, e contei isso pra ele. E ele comentou: “Olha que interessante, semana passada eu soube de um caso do ISA, o Instituto Socioambiental, que, acompanhando uma população indígena ao norte de São Gabriel da Cachoeira, os índios pediram à ONG subsídios técnicos exatamente para “canalizar a natureza” e produzir pirarucu. O princípio de parceria com a natureza é o mesmo, você usa a tecnologia a serviço dessa parceria e não a serviço da exploração. Faria muita diferença se mais e mais empresas pudessem adotar essa premissa.
Hoje há uma incidência maior de doenças como câncer, depressão, hipertensão e diabetes, ou antes isso não era diagnosticado?
A gente pode dizer que genericamente a espécie humana está mais distante da natureza que outrora e, como consequência, está mais doente. Isso é um fato concreto. Tanto que se vê um número crescente de pessoas buscando procedimentos curativos alternativos ao convencional. Nos EUA, cresceu barbaramente o volume de práticas alternativas em saúde, principalmente as integrativas.
Sinal de que há uma percepção de que a convencional não está atendendo plenamente à demanda?
Sim. E muitas vezes a gente percebe como o universo da saúde não sabe como lidar integrativamente com essas ferramentas.
Como buscar essa integração sem perder todo o conhecimento acumulado na especialização médica?
Por isso que a gente sugere o uso da atitude transdisciplinar, que é nascida da academia convencional. Diria que é uma evolução da academia convencional, que reconhece a multidimensionalidade e precisa atuar de maneira complexa e não reducionista. A convencional reduz o fenômeno e por isso o perde, pois o fenômeno é complexo.
Podemos dizer que temos doenças contemporâneas, como síndrome do pânico e déficit de atenção?
Com certeza. Há dois anos, fui convidado para dar palestra em um congresso sobre consciência e tomei conhecimento de uma escola em Salvador na qual as crianças meditam antes do início das aulas. E o índice de déficit de atenção e de hiperatividade é zero. Inclusive, existe um projeto atual, de uma comunidade mundial de meditação cristã, que está com grandes frentes de trabalho no estudo e introdução da meditação nas escolas.
Deve haver muita resistência a isso, não é?
Às vezes você precisa mudar de nome. Em vez de meditação, dizer: “Exercício concentrativo”. Aí as mães vão adorar! (risos) Até porque algumas religiões condenam a prática da meditação.
Qual a legitimidade de ficar doente e de viver as limitações do envelhecimento? Por exemplo, uma pessoa que tenha câncer e se negue a sofrer toda a intervenção médica, quimioterápica etc., é malvista, a família não entende. Vivemos uma ditadura do bem-estar, da juventude e da saúde?
No norte do Hemisfério Norte, entenda-se Canadá, Escandinávia, existe uma crescente atitude do médico como um parceiro do doente, informando e acompanhando o doente em sua decisão. Mas, aqui, o médico coloca-se no papel de autoridade máxima, ele “sabe o que é o melhor para o paciente”. Acho que a atitude mais sensata é a da parceria. Quantas vezes a pessoa no fim da vida, passando por um processo de limitação funcional, vai aprender coisas que ao longo de sua vida não pôde aprender, como o companheirismo e a humildade? Agora, a doença está ali para te dar uma oportunidade e, aí sim, é papel do profissional de saúde se antecipar, compreender e ajudar a pessoa a desfrutar essa oportunidade