O investimento social privado (ISP), principal instrumento para financiar ações sociais, ainda procura o seu locus. Os questionamentos vão de governança à transparência, passando pela eficácia e pelo papel da empresa na sociedade
A tese de que a responsabilidade social de uma empresa é dar lucro e pagar corretamente seus impostos para que o Estado cumpra o papel de agente social – formulada pelo principal teórico do neoliberalismo econômico da Escola de Chicago, Milton Friedman – chegou enfraquecida aos anos 1990. E abriu lugar para uma visão mais alinhada ao movimento da sustentabilidade: as grandes empresas são parte da sociedade civil e, portanto, parte também dos problemas e das soluções no campo social. Iniciaram-se, assim, dois grandes movimentos no Brasil, cujos contornos por vezes se confundem: o da responsabilidade social empresarial (RSE), que atua na esfera dos impactos provocados pelo negócio, e o do investimento social privado (ISP), uma ressignificação da filantropia empresarial clássica que Friedman refutava e cujo modelo, ainda hoje desprovido de um marco legal, opera em uma zona cinzenta.
A maioria das grandes empresas reagiu ao novo momento, que demandava um caráter mais profissional às ações sociais, com a criação de institutos ou fundações empresariais para gerir o ISP. Os projetos sociais, ambientais e culturais de interesse público, financiados por meio de endowments [1] ou por repasses voluntários periódicos de recursos privados, passaram a seguir um sistema de planejamento e monitoramento.
[1] Doação de ativo feita a um grupo sem fins lucrativos ou instituição na forma de fundos de investimento ou outros bens com um propósito declarado no testamento do doador. Em geral, as doações são projetadas para manter o valor do ativo principal intacto durante a utilização do rendimento dos dividendos para ações sociais
A justificativa para a segunda pessoa jurídica, sem fins de lucro, foi distanciar o braço social da empresa dos interesses do negócio. “Na década de 1990, a recomendação do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) a esses agentes sociais era a de que o ISP se posicionasse o mais longe possível da área de marketing, de modo a não se deixar contaminar pelo interesse privado”, comenta o jornalista Fernando Rossetti. Ele é ex-secretário-geral do Gife – entre 2004 e fevereiro de 2013 – e membro do conselho da Worldwide Initiatives for Grantmaker Support (Wings), organização global que reúne associações de investidores sociais e instituições de apoio ao setor.
Ao longo dos anos 2000 houve uma reviravolta nesses princípios. À medida que os conceitos da sustentabilidade se fazem necessários nas cadeias produtivas das empresas, o interesse privado se alinha ao interesse público, como um fio contínuo. Por exemplo, a Nestlé passa a fazer projetos sociais ligados à educação alimentar, a Microsoft a trabalhar com inclusão digital e a PSA Peugeot-Citroën a financiar projetos de mobilidade urbana. A mitigação de impactos, portanto, confunde-se com as ações sociais. Na opinião de Rossetti, tais ações sociais, embora louváveis, ao se voltar para a competência da empresa, criaram um território de atuação misto, trazendo questionamentos como: afinal, essas ações sociais são para a sociedade ou para incrementar o negócio da empresa?
MOVIMENTO PENDULAR
Na definição concisa de Melissa Porto Pimentel, sócia-fundadora da Gestão Origami, empresa de consultoria na área de sustentabilidade, ISP significa “dinheiro privado com fim social” (leia mais definições no Glossário elaborado por PÁGINA22) Ela vê no modelo de operação dos ISP um movimento análogo ao de um pêndulo, que ainda não encontrou o seu locus. O ponto de partida foram as ações filantrópicas e caritativas ligadas à Igreja, que trabalhavam com doações erráticas para atender às demandas sociais mais imediatas, como creches e hospitais.
Quando o pêndulo atingiu a outra extremidade, a filantropia encontrava a profissionalização. As ações sociais passaram a ser gerenciadas com indicadores e cobrança de resultados [2], sempre mantendo distância do negócio, como a se prevenir de um eventual contágio pela lógica empresarial. O movimento pendular seguinte trouxe o ISP aos dias atuais, em que as ações sociais estão alinhadas ao negócio.
[2] A Fundação Itaú Social acaba de lançar a publicação Avaliação Econômica de Projetos Sociais, que traz métodos para avaliação de impacto e retorno econômico para aprimorar e reorientar políticas públicas e investimentos sociais privados
O censo de 2011-2012 do Gife, lançado em meados do mês passado, mostra uma curva de investimentos sociais ascendente de 2009 até 2012, quando os ISP atingiram R$ 2,3 bilhões, volume 8% superior ao do ano anterior. Isso significa que as empresas estão aumentando sua responsabilidade sobre questões de interesse público e há mais benefícios chegando à sociedade. Porém, surgem novos conflitos. Existe uma série de incentivos fiscais para o setor sem fins lucrativos que pode estar sendo apropriada pelas empresas, ainda que involuntariamente, em decorrência desse alinhamento das ações sociais com o interesse privado. “É um dinheiro público servindo ao mesmo tempo à empresa e à comunidade”, afirma Fernando Rossetti.
Existem outras lentes para tentar enxergar esse cenário. Do ponto de vista do gerente de pesquisa e desenvolvimento do Instituto Votorantim, Rafael Gioielli, há uma interpretação apaixonada e maniqueísta sobre os interesses públicos e privados nas questões sociais. Para ele, está superada a leitura de que, ao endereçar o ISP ao tema do negócio, a empresa subverte uma ação pura para “limpar a barra” do seu negócio. “Por que o interesse da empresa precisa ser necessariamente oposto ao interesse do bem social? Nada impede que esses interesses convirjam”, argumenta ele.
Quando o grupo Votorantim criou o seu instituto, em 2002, ainda prevalecia o princípio das causas sociais apartadas do negócio. Na época, buscou-se um diagnóstico social baseado nos valores da família Ermírio de Moraes, que apontou para a temática do desenvolvimento da juventude. Conforme o conceito de responsabilidade social ganhou corpo nas empresas, o Instituto Votorantim, acompanhando a tendência global, aproximou suas ações sociais dos negócios. “Com isso, a expertise do instituto e toda a sua capacidade foram mais bem aproveitadas”, afirma Gioielli.
No início da década passada, os quadros das empresas ainda não sabiam muito bem como incorporar às suas atribuições a demanda da mitigação dos impactos socioambientais provocados pelas atividades do negócio. Os institutos, por sua vez, já estavam presentes nas comunidades, trabalhando com capacitação de jovens, projetos de sustentabilidade etc. Ou seja, profissionais especializados na área social, capazes de fazer diagnósticos e análises sociais, de localizar gargalos, impactos, riscos e oportunidades estavam a um passo das empresas, atuando em suas próprias fundações ou institutos. “No nosso caso, além de ter mantido o projeto original de capacitação profissional, ainda agregamos uma nova ação social: a possibilidade de também oferecer emprego aos jovens que capacitamos”, explica Rafael Gioielli.
Trabalhar nessa linha também permitiu que o instituto sugerisse mudanças nas políticas de compras das empresas Votorantim para favorecer fornecedores locais. “Mexer na cadeia de suprimentos, de fato, não é gerir investimento social privado, mas é uma alavanca de desenvolvimento local que passou a estar presente no negócio”, diz o gestor. “O instituto identifica a oportunidade, ‘conversa’ com o negócio e introduz as mudanças. Tudo com muita agilidade”, descreve.
Acredita-se que este tenha sido o caminho trilhado pela maioria dos institutos e fundações empresariais que se voltaram para o negócio de suas mantenedoras. Todos enxergaram nessas entidades o potencial para, além de gerir o ISP, ajudar também no diagnóstico dos seus impactos sociais. E é difícil crer que uma grande empresa disposta a doar milhões em recursos financeiros para fins sociais o faça pensando apenas em obter eventuais vantagens fiscais. Mas o fato é que esses benefícios existem, por menores que sejam em relação ao volume de recursos privados injetados, e, grosso modo, é dinheiro público financiando também a mitigação dos impactos socioambientais provocados pela atividade empresarial privada.
“Se o ISP tem mesmo de estar alinhado ao negócio, por que não incorporar toda a logística do instituto ou da fundação à própria empresa?”, sugere Melissa Pimentel. Seria uma forma, inclusive, de sanar a problemática dos recursos resultantes de isenções fiscais misturados aos interesses privados. O questionamento de Melissa é, na realidade, uma provocação para enriquecer o debate, uma vez que ela própria não é favorável à ideia de incorporar ações sociais à estrutura empresarial. E justifica: “Quando o empresário constitui a fundação e faz o aporte financeiro (endowment), esses recursos nunca mais poderão voltar a mãos privadas”.
A irreversibilidade da decisão pela ação social torna o ISP mais consistente. Não fosse isso, durante as crises, como a de 2008, as empresas poderiam simplesmente cortar os orçamentos dos projetos sociais. Aliás, muitas fizeram isso. Na curva projetada pelo Gife, entre 2008 e 2009, houve uma redução de 5% nos investimentos sociais, interrompendo a trajetória de anos de crescimento, retomada no ano seguinte.
Segundo Melissa, as perguntas do momento são: “Onde se deve originar a ação social?” “Quem deve gerenciá-la?” “De que maneira ela deve se conectar com as demandas socioambientais e com as demandas do negócio?” A consultora assinala que as respostas vão variar conforme o perfil da empresa. “Os impactos socioambientais de uma mineradora são muito diferentes dos impactos de um banco de investimentos”, diz. Para o banco é bem mais simples manter projetos sociais apartados do seu core business do que para a mineradora.
Enfim, quando as respostas a esses questionamentos estiverem postas, o pêndulo seguramente terá feito o seu terceiro reposicionamento. São reflexões que, em sua opinião, precisam de um prazo de maturação e de adaptação. “Houve um tempo em que era normal na sociedade a ausência de direitos trabalhistas. Isso teve que ser construído. Até que fosse incorporado levou tempo. Hoje não se imagina mais o País sem leis trabalhistas.”
MARCO LEGAL
O ISP possui um conjunto regulatório de isenções fiscais que, na avaliação do advogado Eduardo Szazi, especializado em soluções jurídicas para o Terceiro Setor, é até extenso, mas suas leis não foram pensadas de forma articulada. “Elas são autônomas entre si e às vezes conflitantes”, explica. Existe atualmente um grupo de trabalho composto por representantes de organizações da sociedade civil e do governo, elaborando propostas para modificar a forma dos financiamentos que o governo oferece às entidades sem fins lucrativos. “A nova legislação deve tornar mais rigorosa a seleção das entidades sem fins lucrativos, que receberão financiamentos, e aumentar o controle sobre o gasto do dinheiro federal.”
O advogado informou também que o governo anunciou no mês passado a intenção de realizar um evento em Brasília, em outubro, para apresentar as propostas para a reformulação do marco legal do Terceiro Setor. Entre os temas a ser tratados estão incentivos fiscais para organizações sem fins de lucro, empreendedorismo social, cooperação internacional, fomento da cultura de doação e simplificação burocrática no relacionamento do Terceiro Setor com o Estado.
A falta de um conjunto harmônico de legislações pode ser a explicação para uma recente distorção nos métodos de operação de alguns institutos e fundações. Fernando Rossetti relata que, durante os últimos anos em que permaneceu à frente do Gife, viu surgirem fundações com prazo estabelecido para alcançar a sustentabilidade financeira.
Ao ser criada, a Fundação Abrinq mantinha-se com recursos da Abrinq, a Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos. A partir de um determinado momento, passou a ter de captar recursos no mercado. Ou seja, a Fundação Abrinq tornou-se uma espécie de híbrido, situada entre fundação, que opera ISP, e ONG, que capta recursos e os opera.
“A lógica do negócio social é a empresa desembolsar recursos como uma contribuição social à sociedade”, explica Rossetti. Nos países anglo-saxões, a legislação deixa bem claro que, se a empresa quiser fazer o bem, tem de pôr dinheiro do próprio bolso. Caso da Fundação Bradesco, cujas ações que detém no banco Bradesco lhe rendem R$ 250 milhões ao ano, que são operados por ela própria. Ou da Fundação Ford, que mantém suas ações sociais a partir de um endowment de US$ 15 bilhões, do qual são sacadas parcelas anuais de 5% a 6% ao ano e revertidas para ONGs mundo afora. Ou do Instituto Votorantim, que opera recursos próprios injetados mensalmente pelo grupo Votorantim.
O Gife entende que todos esses exemplos são de investidores sociais privados. No entanto, de acordo com Rossetti, preocupa o fato de estar crescendo o número de institutos e fundações com perfil semelhante ao da Fundação Abrinq. Sem entrar no mérito da qualidade dos trabalhos realizados, essas organizações captam recursos de uma porção de indivíduos e fazem o bem com o dinheiro dessas pessoas. Ou seja, aproveitam-se de uma rede de relacionamentos para fazer investimento social. “Isso é bem diferente de uma empresa que põe dinheiro regularmente em ações sociais. De novo, é a zona cinzenta prevalecendo ao preto no branco”, alfineta Rossetti.
PERFIL DAS AÇÕES SOCIAIS
Na perspectiva das empresas, o investimento social ajuda a construir reputação, o que agrega valor à marca. Diante da hipercompetitividade atual dos mercados globais, a iniciativa pode fazer a diferença na percepção que o consumidor tem entre um produto e outro. Como se trata de trabalhar reputação, as empresas, ao direcionar seus investimentos sociais, costumam fugir dos temas sociais mais polêmicos, como reforma agrária, direitos humanos, questões de gênero ou de raça-etnia (cotas).
Na busca de uma zona de conforto, em que prevalece o consenso, os empresários brasileiros têm optado por causas sociais na seguinte ordem: educação, capacitação profissional, cultura e artes, desenvolvimento comunitário, apoio à gestão no Terceiro Setor, geração de trabalho e renda, meio ambiente etc. A preferência por temas pode variar por ocasião das efemérides, como Rio+20 (meio ambiente), Copa do Mundo e Olimpíadas (esportes). O mais recente censo do Gife já começou a registrar aumento expressivo nos investimentos na área de esportes.
O censo acusa um crescimento expressivo também na área de desenvolvimento comunitário, retratando o movimento do ISP na direção das comunidades situadas no entorno das fábricas localizadas em periferias das grandes cidades ou em comunidades distantes dos grandes centros econômicos, onde a capilaridade do Estado é mais precária. Rossetti lamenta que, enquanto o ISP atua como um apêndice do Estado, temas controversos de grande relevância, ou ‘temas malditos’, como prefere, são desprezados.
No entanto, o Gife promete colocar essa discussão em pauta, isto é, pretende mediar o debate sobre o fato de a aproximação do ISP com os projetos de mudança social estar tirando de cena ONGs que traziam propostas de discussões políticas e que se financiavam com esses recursos. “Esse é um ponto para refletir que eu acho muito interessante e oportuno”, reforça o gestor do Instituto Votorantim. “Será que parte dos recursos do ISP não deveria ser reservada para financiar organizações que promovem debates sobre bandeiras políticas na sociedade?”, pergunta Gioielli.
Tantas perguntas sem respostas podem indicar que o setor ainda busca uma definição de papéis. “Estamos tratando de uma nova fronteira da humanidade”, reflete Rossetti, lembrando que na Europa, depois da crise econômica de 2008, os Estados começaram a se reapropriar do seu papel de gestor da economia e do público. Atualmente se discute no Reino Unido uma redução importante dos incentivos fiscais ao setor privado. Na América Latina, desenrola-se um movimento ideológico que pretende tornar o papel do Estado mais hegemônico na sociedade.
“Estamos todos tateando ainda sobre quem cuida do espaço público e qual é a responsabilidade do Estado, das empresas e das organizações da sociedade civil”, conclui o jornalista. De fato, em todas as questões abordadas, ficou a impressão de obra inacabada, à espera do próximo ato.[:en]O investimento social privado (ISP), principal instrumento para financiar ações sociais, ainda procura o seu locus. Os questionamentos vão de governança à transparência, passando pela eficácia e pelo papel da empresa na sociedade
A tese de que a responsabilidade social de uma empresa é dar lucro e pagar corretamente seus impostos para que o Estado cumpra o papel de agente social – formulada pelo principal teórico do neoliberalismo econômico da Escola de Chicago, Milton Friedman – chegou enfraquecida aos anos 1990. E abriu lugar para uma visão mais alinhada ao movimento da sustentabilidade: as grandes empresas são parte da sociedade civil e, portanto, parte também dos problemas e das soluções no campo social. Iniciaram-se, assim, dois grandes movimentos no Brasil, cujos contornos por vezes se confundem: o da responsabilidade social empresarial (RSE), que atua na esfera dos impactos provocados pelo negócio, e o do investimento social privado (ISP), uma ressignificação da filantropia empresarial clássica que Friedman refutava e cujo modelo, ainda hoje desprovido de um marco legal, opera em uma zona cinzenta.
A maioria das grandes empresas reagiu ao novo momento, que demandava um caráter mais profissional às ações sociais, com a criação de institutos ou fundações empresariais para gerir o ISP. Os projetos sociais, ambientais e culturais de interesse público, financiados por meio de endowments [1] ou por repasses voluntários periódicos de recursos privados, passaram a seguir um sistema de planejamento e monitoramento.
[1] Doação de ativo feita a um grupo sem fins lucrativos ou instituição na forma de fundos de investimento ou outros bens com um propósito declarado no testamento do doador. Em geral, as doações são projetadas para manter o valor do ativo principal intacto durante a utilização do rendimento dos dividendos para ações sociais
A justificativa para a segunda pessoa jurídica, sem fins de lucro, foi distanciar o braço social da empresa dos interesses do negócio. “Na década de 1990, a recomendação do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) a esses agentes sociais era a de que o ISP se posicionasse o mais longe possível da área de marketing, de modo a não se deixar contaminar pelo interesse privado”, comenta o jornalista Fernando Rossetti. Ele é ex-secretário-geral do Gife – entre 2004 e fevereiro de 2013 – e membro do conselho da Worldwide Initiatives for Grantmaker Support (Wings), organização global que reúne associações de investidores sociais e instituições de apoio ao setor.
Ao longo dos anos 2000 houve uma reviravolta nesses princípios. À medida que os conceitos da sustentabilidade se fazem necessários nas cadeias produtivas das empresas, o interesse privado se alinha ao interesse público, como um fio contínuo. Por exemplo, a Nestlé passa a fazer projetos sociais ligados à educação alimentar, a Microsoft a trabalhar com inclusão digital e a PSA Peugeot-Citroën a financiar projetos de mobilidade urbana. A mitigação de impactos, portanto, confunde-se com as ações sociais. Na opinião de Rossetti, tais ações sociais, embora louváveis, ao se voltar para a competência da empresa, criaram um território de atuação misto, trazendo questionamentos como: afinal, essas ações sociais são para a sociedade ou para incrementar o negócio da empresa?
MOVIMENTO PENDULAR
Na definição concisa de Melissa Porto Pimentel, sócia-fundadora da Gestão Origami, empresa de consultoria na área de sustentabilidade, ISP significa “dinheiro privado com fim social” (leia mais definições no Glossário elaborado por PÁGINA22) Ela vê no modelo de operação dos ISP um movimento análogo ao de um pêndulo, que ainda não encontrou o seu locus. O ponto de partida foram as ações filantrópicas e caritativas ligadas à Igreja, que trabalhavam com doações erráticas para atender às demandas sociais mais imediatas, como creches e hospitais.
Quando o pêndulo atingiu a outra extremidade, a filantropia encontrava a profissionalização. As ações sociais passaram a ser gerenciadas com indicadores e cobrança de resultados [2], sempre mantendo distância do negócio, como a se prevenir de um eventual contágio pela lógica empresarial. O movimento pendular seguinte trouxe o ISP aos dias atuais, em que as ações sociais estão alinhadas ao negócio.
[2] A Fundação Itaú Social acaba de lançar a publicação Avaliação Econômica de Projetos Sociais, que traz métodos para avaliação de impacto e retorno econômico para aprimorar e reorientar políticas públicas e investimentos sociais privados
O censo de 2011-2012 do Gife, lançado em meados do mês passado, mostra uma curva de investimentos sociais ascendente de 2009 até 2012, quando os ISP atingiram R$ 2,3 bilhões, volume 8% superior ao do ano anterior. Isso significa que as empresas estão aumentando sua responsabilidade sobre questões de interesse público e há mais benefícios chegando à sociedade. Porém, surgem novos conflitos. Existe uma série de incentivos fiscais para o setor sem fins lucrativos que pode estar sendo apropriada pelas empresas, ainda que involuntariamente, em decorrência desse alinhamento das ações sociais com o interesse privado. “É um dinheiro público servindo ao mesmo tempo à empresa e à comunidade”, afirma Fernando Rossetti.
Existem outras lentes para tentar enxergar esse cenário. Do ponto de vista do gerente de pesquisa e desenvolvimento do Instituto Votorantim, Rafael Gioielli, há uma interpretação apaixonada e maniqueísta sobre os interesses públicos e privados nas questões sociais. Para ele, está superada a leitura de que, ao endereçar o ISP ao tema do negócio, a empresa subverte uma ação pura para “limpar a barra” do seu negócio. “Por que o interesse da empresa precisa ser necessariamente oposto ao interesse do bem social? Nada impede que esses interesses convirjam”, argumenta ele.
Quando o grupo Votorantim criou o seu instituto, em 2002, ainda prevalecia o princípio das causas sociais apartadas do negócio. Na época, buscou-se um diagnóstico social baseado nos valores da família Ermírio de Moraes, que apontou para a temática do desenvolvimento da juventude. Conforme o conceito de responsabilidade social ganhou corpo nas empresas, o Instituto Votorantim, acompanhando a tendência global, aproximou suas ações sociais dos negócios. “Com isso, a expertise do instituto e toda a sua capacidade foram mais bem aproveitadas”, afirma Gioielli.
No início da década passada, os quadros das empresas ainda não sabiam muito bem como incorporar às suas atribuições a demanda da mitigação dos impactos socioambientais provocados pelas atividades do negócio. Os institutos, por sua vez, já estavam presentes nas comunidades, trabalhando com capacitação de jovens, projetos de sustentabilidade etc. Ou seja, profissionais especializados na área social, capazes de fazer diagnósticos e análises sociais, de localizar gargalos, impactos, riscos e oportunidades estavam a um passo das empresas, atuando em suas próprias fundações ou institutos. “No nosso caso, além de ter mantido o projeto original de capacitação profissional, ainda agregamos uma nova ação social: a possibilidade de também oferecer emprego aos jovens que capacitamos”, explica Rafael Gioielli.
Trabalhar nessa linha também permitiu que o instituto sugerisse mudanças nas políticas de compras das empresas Votorantim para favorecer fornecedores locais. “Mexer na cadeia de suprimentos, de fato, não é gerir investimento social privado, mas é uma alavanca de desenvolvimento local que passou a estar presente no negócio”, diz o gestor. “O instituto identifica a oportunidade, ‘conversa’ com o negócio e introduz as mudanças. Tudo com muita agilidade”, descreve.
Acredita-se que este tenha sido o caminho trilhado pela maioria dos institutos e fundações empresariais que se voltaram para o negócio de suas mantenedoras. Todos enxergaram nessas entidades o potencial para, além de gerir o ISP, ajudar também no diagnóstico dos seus impactos sociais. E é difícil crer que uma grande empresa disposta a doar milhões em recursos financeiros para fins sociais o faça pensando apenas em obter eventuais vantagens fiscais. Mas o fato é que esses benefícios existem, por menores que sejam em relação ao volume de recursos privados injetados, e, grosso modo, é dinheiro público financiando também a mitigação dos impactos socioambientais provocados pela atividade empresarial privada.
“Se o ISP tem mesmo de estar alinhado ao negócio, por que não incorporar toda a logística do instituto ou da fundação à própria empresa?”, sugere Melissa Pimentel. Seria uma forma, inclusive, de sanar a problemática dos recursos resultantes de isenções fiscais misturados aos interesses privados. O questionamento de Melissa é, na realidade, uma provocação para enriquecer o debate, uma vez que ela própria não é favorável à ideia de incorporar ações sociais à estrutura empresarial. E justifica: “Quando o empresário constitui a fundação e faz o aporte financeiro (endowment), esses recursos nunca mais poderão voltar a mãos privadas”.
A irreversibilidade da decisão pela ação social torna o ISP mais consistente. Não fosse isso, durante as crises, como a de 2008, as empresas poderiam simplesmente cortar os orçamentos dos projetos sociais. Aliás, muitas fizeram isso. Na curva projetada pelo Gife, entre 2008 e 2009, houve uma redução de 5% nos investimentos sociais, interrompendo a trajetória de anos de crescimento, retomada no ano seguinte.
Segundo Melissa, as perguntas do momento são: “Onde se deve originar a ação social?” “Quem deve gerenciá-la?” “De que maneira ela deve se conectar com as demandas socioambientais e com as demandas do negócio?” A consultora assinala que as respostas vão variar conforme o perfil da empresa. “Os impactos socioambientais de uma mineradora são muito diferentes dos impactos de um banco de investimentos”, diz. Para o banco é bem mais simples manter projetos sociais apartados do seu core business do que para a mineradora.
Enfim, quando as respostas a esses questionamentos estiverem postas, o pêndulo seguramente terá feito o seu terceiro reposicionamento. São reflexões que, em sua opinião, precisam de um prazo de maturação e de adaptação. “Houve um tempo em que era normal na sociedade a ausência de direitos trabalhistas. Isso teve que ser construído. Até que fosse incorporado levou tempo. Hoje não se imagina mais o País sem leis trabalhistas.”
MARCO LEGAL
O ISP possui um conjunto regulatório de isenções fiscais que, na avaliação do advogado Eduardo Szazi, especializado em soluções jurídicas para o Terceiro Setor, é até extenso, mas suas leis não foram pensadas de forma articulada. “Elas são autônomas entre si e às vezes conflitantes”, explica. Existe atualmente um grupo de trabalho composto por representantes de organizações da sociedade civil e do governo, elaborando propostas para modificar a forma dos financiamentos que o governo oferece às entidades sem fins lucrativos. “A nova legislação deve tornar mais rigorosa a seleção das entidades sem fins lucrativos, que receberão financiamentos, e aumentar o controle sobre o gasto do dinheiro federal.”
O advogado informou também que o governo anunciou no mês passado a intenção de realizar um evento em Brasília, em outubro, para apresentar as propostas para a reformulação do marco legal do Terceiro Setor. Entre os temas a ser tratados estão incentivos fiscais para organizações sem fins de lucro, empreendedorismo social, cooperação internacional, fomento da cultura de doação e simplificação burocrática no relacionamento do Terceiro Setor com o Estado.
A falta de um conjunto harmônico de legislações pode ser a explicação para uma recente distorção nos métodos de operação de alguns institutos e fundações. Fernando Rossetti relata que, durante os últimos anos em que permaneceu à frente do Gife, viu surgirem fundações com prazo estabelecido para alcançar a sustentabilidade financeira.
Ao ser criada, a Fundação Abrinq mantinha-se com recursos da Abrinq, a Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos. A partir de um determinado momento, passou a ter de captar recursos no mercado. Ou seja, a Fundação Abrinq tornou-se uma espécie de híbrido, situada entre fundação, que opera ISP, e ONG, que capta recursos e os opera.
“A lógica do negócio social é a empresa desembolsar recursos como uma contribuição social à sociedade”, explica Rossetti. Nos países anglo-saxões, a legislação deixa bem claro que, se a empresa quiser fazer o bem, tem de pôr dinheiro do próprio bolso. Caso da Fundação Bradesco, cujas ações que detém no banco Bradesco lhe rendem R$ 250 milhões ao ano, que são operados por ela própria. Ou da Fundação Ford, que mantém suas ações sociais a partir de um endowment de US$ 15 bilhões, do qual são sacadas parcelas anuais de 5% a 6% ao ano e revertidas para ONGs mundo afora. Ou do Instituto Votorantim, que opera recursos próprios injetados mensalmente pelo grupo Votorantim.
O Gife entende que todos esses exemplos são de investidores sociais privados. No entanto, de acordo com Rossetti, preocupa o fato de estar crescendo o número de institutos e fundações com perfil semelhante ao da Fundação Abrinq. Sem entrar no mérito da qualidade dos trabalhos realizados, essas organizações captam recursos de uma porção de indivíduos e fazem o bem com o dinheiro dessas pessoas. Ou seja, aproveitam-se de uma rede de relacionamentos para fazer investimento social. “Isso é bem diferente de uma empresa que põe dinheiro regularmente em ações sociais. De novo, é a zona cinzenta prevalecendo ao preto no branco”, alfineta Rossetti.
PERFIL DAS AÇÕES SOCIAIS
Na perspectiva das empresas, o investimento social ajuda a construir reputação, o que agrega valor à marca. Diante da hipercompetitividade atual dos mercados globais, a iniciativa pode fazer a diferença na percepção que o consumidor tem entre um produto e outro. Como se trata de trabalhar reputação, as empresas, ao direcionar seus investimentos sociais, costumam fugir dos temas sociais mais polêmicos, como reforma agrária, direitos humanos, questões de gênero ou de raça-etnia (cotas).
Na busca de uma zona de conforto, em que prevalece o consenso, os empresários brasileiros têm optado por causas sociais na seguinte ordem: educação, capacitação profissional, cultura e artes, desenvolvimento comunitário, apoio à gestão no Terceiro Setor, geração de trabalho e renda, meio ambiente etc. A preferência por temas pode variar por ocasião das efemérides, como Rio+20 (meio ambiente), Copa do Mundo e Olimpíadas (esportes). O mais recente censo do Gife já começou a registrar aumento expressivo nos investimentos na área de esportes.
O censo acusa um crescimento expressivo também na área de desenvolvimento comunitário, retratando o movimento do ISP na direção das comunidades situadas no entorno das fábricas localizadas em periferias das grandes cidades ou em comunidades distantes dos grandes centros econômicos, onde a capilaridade do Estado é mais precária. Rossetti lamenta que, enquanto o ISP atua como um apêndice do Estado, temas controversos de grande relevância, ou ‘temas malditos’, como prefere, são desprezados.
No entanto, o Gife promete colocar essa discussão em pauta, isto é, pretende mediar o debate sobre o fato de a aproximação do ISP com os projetos de mudança social estar tirando de cena ONGs que traziam propostas de discussões políticas e que se financiavam com esses recursos. “Esse é um ponto para refletir que eu acho muito interessante e oportuno”, reforça o gestor do Instituto Votorantim. “Será que parte dos recursos do ISP não deveria ser reservada para financiar organizações que promovem debates sobre bandeiras políticas na sociedade?”, pergunta Gioielli.
Tantas perguntas sem respostas podem indicar que o setor ainda busca uma definição de papéis. “Estamos tratando de uma nova fronteira da humanidade”, reflete Rossetti, lembrando que na Europa, depois da crise econômica de 2008, os Estados começaram a se reapropriar do seu papel de gestor da economia e do público. Atualmente se discute no Reino Unido uma redução importante dos incentivos fiscais ao setor privado. Na América Latina, desenrola-se um movimento ideológico que pretende tornar o papel do Estado mais hegemônico na sociedade.
“Estamos todos tateando ainda sobre quem cuida do espaço público e qual é a responsabilidade do Estado, das empresas e das organizações da sociedade civil”, conclui o jornalista. De fato, em todas as questões abordadas, ficou a impressão de obra inacabada, à espera do próximo ato.