Mais do que infraestrutura, transporte e equipamentos esportivos, mudanças culturais, de comportamento e maior transparência são legados desejados e possíveis da Copa 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016
Mascotes das Copas costumam revelar um pouco da imagem que as nações que sediam esse megaevento esportivo desejam transmitir ao mundo. No caso da Copa de 2014 no Brasil, temos um tatu-bola (espécie ameaçada de extinção), que recebeu o nome de Fuleco (futebol + ecologia). Algo como futebol ecológico, ou talvez uma etnografia da ecologia no futebol.
Prestes a sediar dois megaeventos esportivos – a Copa em 2014 e as Olimpíadas em 2016 –, o Brasil tem em mãos a oportunidade de consolidar a imagem de que o País do Futuro finalmente chegou, e que consegue organizar esses eventos de maneira eficiente e ordenada, acolhendo bem os visitantes.
A palavra “legado” é facilmente observada nas declarações de autoridades dos três níveis de governo e em suas páginas oficiais na internet. Para além das caxirolas, dos atrasos nas obras, da necessidade de mais transparência e de condições inadequadas para nossos atletas treinarem e alcançarem performances competitivas, o que significa esse tão propalado legado?
Olhando para os Jogos Olímpicos de Barcelona (1992) e de Londres (2012), percebemos que os legados não são apenas infraestruturais, mas, também, “a consolidação de uma rede de instituições, o aprimoramento, a capacitação, a incorporação da lógica do planejamento, o consolidação do engajamento da sociedade civil – enfim, o fortalecimento da cultura como eixo fundamental da transformação urbana”. A definição é de Ana Carla Fonseca Reis, especialista em economia criativa e diretora da consultoria Garimpo de Soluções, no livro Cidades Criativas, Soluções Inventivas: o papel da Copa, das Olimpíadas e dos museus internacionais.
Para os comitês organizadores brasileiros, associar a sustentabilidade aos dois eventos e consolidar o espírito de Fuleco parece ser ponto pacífico. “A marca que se quer imprimir para a cidade do Rio, como também para o Brasil, envolve a sustentabilidade. Não porque a cidade seja sustentável – nenhuma cidade do mundo o é –, mas por ter ativos ambientais impressionantes: florestas, baías, lagoas, um sistema oceânico conhecido pelo mundo inteiro”, afirma Sérgio Besserman, presidente da Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Os Jogos Olímpicos deverão ser um momento em que essa identidade se expressa, seja nos equipamentos com as certificações adequadas, seja nos corredores e ampliação de ônibus nas ruas, seja na implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). “Replantamos uma floresta no Império, promovemos a Eco 92 e a Rio+20. Precisamos consolidar a imagem de centro de referência sobre a discussão de sustentabilidade nas cidades”, defende Besserman.
A Copa vai também nesta direção. Segundo Claudio Langone, ex-secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente e atual consultor para meio ambiente e sustentabilidade do Ministério do Esporte, é a primeira vez que um governo nacional obriga os estádios a buscarem certificações de organizações reconhecidas internacionalmente.
Reaproveitamento de resíduos nas obras, reciclagem e compensação das emissões também estão entre as ações de sustentabilidade no processo da Copa. Mas o grande desafio será lançar mão de uma gestão corporativa que dê consequência às tecnologias e processos sustentáveis adotados.
Entre as frentes abertas pelo governo federal nesse sentido está a iniciativa de promover compras e contratações públicas sustentáveis. Três cadeias produtivas foram priorizadas: alimentos, vestuário e montagem de estruturas temporárias. A intenção é criar mercados e estimular padrões produtivos mais sustentáveis no País. O estímulo aos produtos orgânicos e à sua comercialização em hotéis, bares e restaurantes das cidades-sede também integra a iniciativa.
“Pretendemos usar a Copa e os Jogos Olímpicos para aproximar as duas pontas, mostrando aos produtores que há uma demanda potencial não atendida e, ao comércio, que os produtores podem ampliar suas entregas se lhes são assegurados preço justo e compras regulares”, diz Langone.
Mais que isso, os jogos podem ser oportunidade para introduzir mudanças no dia a dia. Para Suzana Kahn, subsecretária de Economia Verde do Estado do Rio, pouco se tem discutido em relação à possibilidade de mudança de hábitos e padrões de consumo. “Os megaeventos são oportunidade rara, em que a população está com a autoestima elevada, querendo mostrar sua casa. Não se deve perder a chance de introduzir hábitos, pois as pessoas estão mais receptivas”, acredita.
Apesar de grandes eventos serem comuns no Rio, como Carnaval e Réveillon, e estes se mostrarem mais bem organizados a cada ano que passa, não há um banco de dados disponível que demonstre os melhores procedimentos e as melhores práticas, para se atingir a excelência. “A gente precisaria profissionalizar um pouco mais a atração de turismo de eventos”, afirma Suzana.
PRIVADO VS. PÚBLICO
Barcelona tornou-se, após os Jogos de 1992, a marca número 1 na Europa, a quinta marca de cidade mais poderosa do mundo e a quarta cidade europeia para negócios. Utilizou os Jogos Olímpicos para se reinventar e reafirmar sua identidade cultural – e este é o maior legado de um megaevento esportivo. No entanto, como destaca a urbanista Raquel Rolnik [1], para compreender o case Barcelona é preciso lembrar que mais de uma década antes dos Jogos a cidade ganhou um governo autônomo socialista, de afastamento do controle autoritário do franquismo. Isso promoveu investimentos na melhoria das condições de vida dos trabalhadores, das condições urbanísticas de bairros populares e no aumento do grau de participação popular na gestão da cidade. O desenho do projeto olímpico de Barcelona veio como consequência dessa trajetória.
[1] Leia entrevista de Raquel Rolnik para PÁGINA22 e artigo em seu blog “A um ano da Copa, ganhos e perdas nas cidades-sede“.
A mesma coisa se deu em Londres, com uma história mais longa de integração e de intervenção no East End, região com condições urbanísticas mais precárias. Além da construção de um grande parque público, a maioria dos equipamentos olímpicos foi desmontada para ceder lugar a habitação, comércio e serviços, com 35% de habitação social subsidiada.
No nosso caso, o legado deveria ir na direção de constituir um grau básico de urbanidade, mas o que se vê é o contrário: “No Rio, o projeto (de intervenções para os Jogos Olímpicos) foi elaborado conjuntamente com grandes incorporadores privados que vão lançar investimentos imobiliários na região de intervenção – Barra e Jacarepaguá. Tudo tem a ver com processos de valorização privada e muito pouco com o interesse público”, avalia a urbanista.
Essa não é nossa estreia como palco de uma edição da Copa – o Brasil sediou o torneio de 1950. Perdeu a final para o Uruguai no Maracanã, mas coleciona o maior número de vitórias em Copas (cinco vezes – 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002), o que o ajudou a consolidar a imagem de país do futebol.
Além da Copa de 1950, recebemos os Jogos Pan-Americanos de 1963, em São Paulo, e os de 2007, no Rio de Janeiro. O primeiro converteu as instalações da Vila Pan-Americana em refeitório universitário e no Conjunto Residencial da USP (Crusp), na Cidade Universitária – o principal campus da Universidade de São Paulo, no bairro do Butantã.
Já o Pan de 2007 custou quase dez vezes mais do que o originalmente previsto e deixou alguns equipamentos hoje inadequados aos padrões dos megaeventos, que em parte estão sendo demolidos ou precisam passar por reformas para abrigar as modalidades esportivas das Olimpíadas, como o Velódromo, o Parque Aquático Maria Lenk e o Engenhão. As unidades da Vila do Pan apresentam problemas estruturais e passam por obras para evitar o afundamento de ruas.
Do Pan que não aconteceu em 1975 – São Paulo desistiu e o evento se deu no México –, ficaram o Ginásio Poliesportivo Mauro Pinheiro, no Ibirapuera, e o Centro de Práticas Esportivas da USP (Cepeusp).
Para a Copa de 2014 , estão em construção ou reforma 12 estádios, em diferentes fases de implantação, registrando atrasos e outros problemas (mais em portal2014.org.br). As cidades que abrigarão os jogos passam por obras nas áreas de infraestrutura e transporte, no sentido de garantir fluidez no trânsito e as condições necessárias para abrigar os visitantes e as próprias partidas de futebol. Planos voltados para o setor de turismo também estão em andamento, qualificando pessoas e empresas para recepcionar os visitantes.
Em São Paulo, os governos municipal e estadual atuam unidos para implantar as obras do Complexo Viário Polo Itaquera, que, de acordo com o coordenador do Comitê Estadual da Copa em São Paulo, Julio Semeghini, atrairão, junto com o estádio Arena Corinthians, novas oportunidades para a Zona Leste. Os investimentos são da ordem de R$ 300 milhões.
Em termos de infraestrutura, há polêmica não só em relação à remoção de famílias no entorno do estádio, como também na requalificação do Vale do Anhangabaú, cartão-postal da cidade que receberá a Fan Fest [2] e poderá sofrer mudanças drásticas. O projeto da requalificação estará pronto no fim de julho. A cidade do Rio de Janeiro prepara-se também para a Copa, mas, sobretudo, para os Jogos Olímpicos de 2016. Foi criada a Empresa Olímpica Municipal (EOM), pública e de capital privado, para cuidar das obras na cidade.
[2] Espaços para exibição pública dos jogos do torneio e apresentações artísticas e culturais que receberão milhares de torcedores
Depois da experiência do Pan de 2007, a EOM avalia que o legado de equipamentos esportivos será mais sustentável, optando por uma arquitetura nômade para viabilizar o reaproveitamento das instalações temporárias do Parque Aquático e de Handebol – esta última será desmontada e transformada em quatro escolas municipais. O Parque Olímpico, localizado na Barra da Tijuca, ocupará 1,18 milhão de metros quadrados.
Os Jogos Olímpicos também aceleraram investimentos [3] na própria cidade, como a implantação de cor redores de ônibus expressos e a integração dos ônibus a trens, barcas e metrô. Estão previstos os VLT, modificações na Avenida Brasil e na malha viária da região portuária, a implantação de um centro de tratamento de resíduos e a limpeza das lagoas da Barra e de Jacarepaguá, entre outras medidas pontuais.
[3] Os custos estimados pelo comitê organizador das Olimpíadas no Rio são de R$ 23,2 bilhões
TRANSPARÊNCIA E PARTICIPAÇÃO
Segundo o assessor de comunicação do SPCopa (comitê municipal formado em janeiro deste ano), André Cintra, o comitê está empenhado na transparência dos processos. No portal da prefeitura paulistana, foram disponibilizados os documentos relativos às atividades em São Paulo, inclusive o contrato com a Fifa (Host City Agreement). O Comitê pretende promover a partir de junho apresentações e audiências públicas.
Obras de infraestrutura e de transporte aceleradas por esse tipo de evento costumam mudar a fisionomia das cidades em curto espaço de tempo, levando muitas vezes a desapropriações e remoções de famílias, mudanças em orientação de tráfego, impermeabilização de áreas, e deveriam vir acompanhadas de apresentações e/ou audiências públicas, proporcionando instâncias de participação. A transparência precisa ser exercitada ao máximo, coisa que nós, brasileiros, ainda estamos nos acostumando a exigir.
O Projeto Jogos Limpos, realizado pelo Instituto Ethos, monitora, entre outras coisas, o nível de transparência da gestão pública, com foco no acesso à informação e na participação social nos processos decisórios para a realização da Copa e dos Jogos Olímpicos. O índice de transparência atribuído pelo projeto às cidades que sediarão os jogos é muito baixo, exceção para os casos de Belo Horizonte e Porto Alegre, classificados como médios.
Já no quesito participação, o projeto Jogos Limpos dá nota zero para audiências públicas sobre os projetos para as cidades de Brasília, Cuiabá, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Natal e Recife recebem pontuações que variam de 3 a 8, enquanto Manaus ganha 100, localizada em um dos estados onde fica nossa maior vitrine e vidraça ambiental, a Amazônia.
Os Comitês Populares da Copa divulgaram, em maio deste ano, um dossiê abordando questões como violação ao direito de moradia, ao direito à informação e à participação nos processos decisórios envolvendo os dois megaeventos esportivos, desrespeito à legislação e aos direitos ambientais e trabalhistas. Em muitos casos, as mobilizações resultaram em mudanças de procedimento.
“Se a gente tivesse um legado, deveria ser o da transparência. Começar a oferecer um mínimo de transparência ao cidadão, ao contribuinte, dar-lhe um mínimo de autonomia para tomar as decisões. Nesse quesito, começamos e continuamos no negativo”, avalia a economista Ana Carla Fonseca Reis.
“O Brasil está em baixa posição no ranking internacional na implementação de marcos regulatórios e cumprimento de contratos. O amadurecimento do poder público quanto à capacidade de planejamento e estratégia, ao cumprimento de prazos, seria também um legado desejável.”
A pátria em chuteiras, relembrando Nelson Rodrigues, merece ganhar mais do que os jogos em campo.
(Colaborou: José Alberto Gonçalves Pereira)
Leia mais:
“Mobilizações marcam a preparação para a Copa
Eventos impulsionam inovações e ajudam a desenvolver mercados
[:en]Mais do que infraestrutura, transporte e equipamentos esportivos, mudanças culturais, de comportamento e maior transparência são legados desejados e possíveis da Copa 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016
Mascotes das Copas costumam revelar um pouco da imagem que as nações que sediam esse megaevento esportivo desejam transmitir ao mundo. No caso da Copa de 2014 no Brasil, temos um tatu-bola (espécie ameaçada de extinção), que recebeu o nome de Fuleco (futebol + ecologia). Algo como futebol ecológico, ou talvez uma etnografia da ecologia no futebol.
Prestes a sediar dois megaeventos esportivos – a Copa em 2014 e as Olimpíadas em 2016 –, o Brasil tem em mãos a oportunidade de consolidar a imagem de que o País do Futuro finalmente chegou, e que consegue organizar esses eventos de maneira eficiente e ordenada, acolhendo bem os visitantes.
A palavra “legado” é facilmente observada nas declarações de autoridades dos três níveis de governo e em suas páginas oficiais na internet. Para além das caxirolas, dos atrasos nas obras, da necessidade de mais transparência e de condições inadequadas para nossos atletas treinarem e alcançarem performances competitivas, o que significa esse tão propalado legado?
Olhando para os Jogos Olímpicos de Barcelona (1992) e de Londres (2012), percebemos que os legados não são apenas infraestruturais, mas, também, “a consolidação de uma rede de instituições, o aprimoramento, a capacitação, a incorporação da lógica do planejamento, o consolidação do engajamento da sociedade civil – enfim, o fortalecimento da cultura como eixo fundamental da transformação urbana”. A definição é de Ana Carla Fonseca Reis, especialista em economia criativa e diretora da consultoria Garimpo de Soluções, no livro Cidades Criativas, Soluções Inventivas: o papel da Copa, das Olimpíadas e dos museus internacionais.
Para os comitês organizadores brasileiros, associar a sustentabilidade aos dois eventos e consolidar o espírito de Fuleco parece ser ponto pacífico. “A marca que se quer imprimir para a cidade do Rio, como também para o Brasil, envolve a sustentabilidade. Não porque a cidade seja sustentável – nenhuma cidade do mundo o é –, mas por ter ativos ambientais impressionantes: florestas, baías, lagoas, um sistema oceânico conhecido pelo mundo inteiro”, afirma Sérgio Besserman, presidente da Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Os Jogos Olímpicos deverão ser um momento em que essa identidade se expressa, seja nos equipamentos com as certificações adequadas, seja nos corredores e ampliação de ônibus nas ruas, seja na implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). “Replantamos uma floresta no Império, promovemos a Eco 92 e a Rio+20. Precisamos consolidar a imagem de centro de referência sobre a discussão de sustentabilidade nas cidades”, defende Besserman.
A Copa vai também nesta direção. Segundo Claudio Langone, ex-secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente e atual consultor para meio ambiente e sustentabilidade do Ministério do Esporte, é a primeira vez que um governo nacional obriga os estádios a buscarem certificações de organizações reconhecidas internacionalmente.
Reaproveitamento de resíduos nas obras, reciclagem e compensação das emissões também estão entre as ações de sustentabilidade no processo da Copa. Mas o grande desafio será lançar mão de uma gestão corporativa que dê consequência às tecnologias e processos sustentáveis adotados.
Entre as frentes abertas pelo governo federal nesse sentido está a iniciativa de promover compras e contratações públicas sustentáveis. Três cadeias produtivas foram priorizadas: alimentos, vestuário e montagem de estruturas temporárias. A intenção é criar mercados e estimular padrões produtivos mais sustentáveis no País. O estímulo aos produtos orgânicos e à sua comercialização em hotéis, bares e restaurantes das cidades-sede também integra a iniciativa.
“Pretendemos usar a Copa e os Jogos Olímpicos para aproximar as duas pontas, mostrando aos produtores que há uma demanda potencial não atendida e, ao comércio, que os produtores podem ampliar suas entregas se lhes são assegurados preço justo e compras regulares”, diz Langone.
Mais que isso, os jogos podem ser oportunidade para introduzir mudanças no dia a dia. Para Suzana Kahn, subsecretária de Economia Verde do Estado do Rio, pouco se tem discutido em relação à possibilidade de mudança de hábitos e padrões de consumo. “Os megaeventos são oportunidade rara, em que a população está com a autoestima elevada, querendo mostrar sua casa. Não se deve perder a chance de introduzir hábitos, pois as pessoas estão mais receptivas”, acredita.
Apesar de grandes eventos serem comuns no Rio, como Carnaval e Réveillon, e estes se mostrarem mais bem organizados a cada ano que passa, não há um banco de dados disponível que demonstre os melhores procedimentos e as melhores práticas, para se atingir a excelência. “A gente precisaria profissionalizar um pouco mais a atração de turismo de eventos”, afirma Suzana.
PRIVADO VS. PÚBLICO
Barcelona tornou-se, após os Jogos de 1992, a marca número 1 na Europa, a quinta marca de cidade mais poderosa do mundo e a quarta cidade europeia para negócios. Utilizou os Jogos Olímpicos para se reinventar e reafirmar sua identidade cultural – e este é o maior legado de um megaevento esportivo. No entanto, como destaca a urbanista Raquel Rolnik [1], para compreender o case Barcelona é preciso lembrar que mais de uma década antes dos Jogos a cidade ganhou um governo autônomo socialista, de afastamento do controle autoritário do franquismo. Isso promoveu investimentos na melhoria das condições de vida dos trabalhadores, das condições urbanísticas de bairros populares e no aumento do grau de participação popular na gestão da cidade. O desenho do projeto olímpico de Barcelona veio como consequência dessa trajetória.
[1] Leia entrevista de Raquel Rolnik para PÁGINA22 e artigo em seu blog “A um ano da Copa, ganhos e perdas nas cidades-sede“.
A mesma coisa se deu em Londres, com uma história mais longa de integração e de intervenção no East End, região com condições urbanísticas mais precárias. Além da construção de um grande parque público, a maioria dos equipamentos olímpicos foi desmontada para ceder lugar a habitação, comércio e serviços, com 35% de habitação social subsidiada.
No nosso caso, o legado deveria ir na direção de constituir um grau básico de urbanidade, mas o que se vê é o contrário: “No Rio, o projeto (de intervenções para os Jogos Olímpicos) foi elaborado conjuntamente com grandes incorporadores privados que vão lançar investimentos imobiliários na região de intervenção – Barra e Jacarepaguá. Tudo tem a ver com processos de valorização privada e muito pouco com o interesse público”, avalia a urbanista.
Essa não é nossa estreia como palco de uma edição da Copa – o Brasil sediou o torneio de 1950. Perdeu a final para o Uruguai no Maracanã, mas coleciona o maior número de vitórias em Copas (cinco vezes – 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002), o que o ajudou a consolidar a imagem de país do futebol.
Além da Copa de 1950, recebemos os Jogos Pan-Americanos de 1963, em São Paulo, e os de 2007, no Rio de Janeiro. O primeiro converteu as instalações da Vila Pan-Americana em refeitório universitário e no Conjunto Residencial da USP (Crusp), na Cidade Universitária – o principal campus da Universidade de São Paulo, no bairro do Butantã.
Já o Pan de 2007 custou quase dez vezes mais do que o originalmente previsto e deixou alguns equipamentos hoje inadequados aos padrões dos megaeventos, que em parte estão sendo demolidos ou precisam passar por reformas para abrigar as modalidades esportivas das Olimpíadas, como o Velódromo, o Parque Aquático Maria Lenk e o Engenhão. As unidades da Vila do Pan apresentam problemas estruturais e passam por obras para evitar o afundamento de ruas.
Do Pan que não aconteceu em 1975 – São Paulo desistiu e o evento se deu no México –, ficaram o Ginásio Poliesportivo Mauro Pinheiro, no Ibirapuera, e o Centro de Práticas Esportivas da USP (Cepeusp).
Para a Copa de 2014 , estão em construção ou reforma 12 estádios, em diferentes fases de implantação, registrando atrasos e outros problemas (mais em portal2014.org.br). As cidades que abrigarão os jogos passam por obras nas áreas de infraestrutura e transporte, no sentido de garantir fluidez no trânsito e as condições necessárias para abrigar os visitantes e as próprias partidas de futebol. Planos voltados para o setor de turismo também estão em andamento, qualificando pessoas e empresas para recepcionar os visitantes.
Em São Paulo, os governos municipal e estadual atuam unidos para implantar as obras do Complexo Viário Polo Itaquera, que, de acordo com o coordenador do Comitê Estadual da Copa em São Paulo, Julio Semeghini, atrairão, junto com o estádio Arena Corinthians, novas oportunidades para a Zona Leste. Os investimentos são da ordem de R$ 300 milhões.
Em termos de infraestrutura, há polêmica não só em relação à remoção de famílias no entorno do estádio, como também na requalificação do Vale do Anhangabaú, cartão-postal da cidade que receberá a Fan Fest [2] e poderá sofrer mudanças drásticas. O projeto da requalificação estará pronto no fim de julho. A cidade do Rio de Janeiro prepara-se também para a Copa, mas, sobretudo, para os Jogos Olímpicos de 2016. Foi criada a Empresa Olímpica Municipal (EOM), pública e de capital privado, para cuidar das obras na cidade.
[2] Espaços para exibição pública dos jogos do torneio e apresentações artísticas e culturais que receberão milhares de torcedores
Depois da experiência do Pan de 2007, a EOM avalia que o legado de equipamentos esportivos será mais sustentável, optando por uma arquitetura nômade para viabilizar o reaproveitamento das instalações temporárias do Parque Aquático e de Handebol – esta última será desmontada e transformada em quatro escolas municipais. O Parque Olímpico, localizado na Barra da Tijuca, ocupará 1,18 milhão de metros quadrados.
Os Jogos Olímpicos também aceleraram investimentos [3] na própria cidade, como a implantação de cor redores de ônibus expressos e a integração dos ônibus a trens, barcas e metrô. Estão previstos os VLT, modificações na Avenida Brasil e na malha viária da região portuária, a implantação de um centro de tratamento de resíduos e a limpeza das lagoas da Barra e de Jacarepaguá, entre outras medidas pontuais.
[3] Os custos estimados pelo comitê organizador das Olimpíadas no Rio são de R$ 23,2 bilhões
TRANSPARÊNCIA E PARTICIPAÇÃO
Segundo o assessor de comunicação do SPCopa (comitê municipal formado em janeiro deste ano), André Cintra, o comitê está empenhado na transparência dos processos. No portal da prefeitura paulistana, foram disponibilizados os documentos relativos às atividades em São Paulo, inclusive o contrato com a Fifa (Host City Agreement). O Comitê pretende promover a partir de junho apresentações e audiências públicas.
Obras de infraestrutura e de transporte aceleradas por esse tipo de evento costumam mudar a fisionomia das cidades em curto espaço de tempo, levando muitas vezes a desapropriações e remoções de famílias, mudanças em orientação de tráfego, impermeabilização de áreas, e deveriam vir acompanhadas de apresentações e/ou audiências públicas, proporcionando instâncias de participação. A transparência precisa ser exercitada ao máximo, coisa que nós, brasileiros, ainda estamos nos acostumando a exigir.
O Projeto Jogos Limpos, realizado pelo Instituto Ethos, monitora, entre outras coisas, o nível de transparência da gestão pública, com foco no acesso à informação e na participação social nos processos decisórios para a realização da Copa e dos Jogos Olímpicos. O índice de transparência atribuído pelo projeto às cidades que sediarão os jogos é muito baixo, exceção para os casos de Belo Horizonte e Porto Alegre, classificados como médios.
Já no quesito participação, o projeto Jogos Limpos dá nota zero para audiências públicas sobre os projetos para as cidades de Brasília, Cuiabá, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Natal e Recife recebem pontuações que variam de 3 a 8, enquanto Manaus ganha 100, localizada em um dos estados onde fica nossa maior vitrine e vidraça ambiental, a Amazônia.
Os Comitês Populares da Copa divulgaram, em maio deste ano, um dossiê abordando questões como violação ao direito de moradia, ao direito à informação e à participação nos processos decisórios envolvendo os dois megaeventos esportivos, desrespeito à legislação e aos direitos ambientais e trabalhistas. Em muitos casos, as mobilizações resultaram em mudanças de procedimento.
“Se a gente tivesse um legado, deveria ser o da transparência. Começar a oferecer um mínimo de transparência ao cidadão, ao contribuinte, dar-lhe um mínimo de autonomia para tomar as decisões. Nesse quesito, começamos e continuamos no negativo”, avalia a economista Ana Carla Fonseca Reis.
“O Brasil está em baixa posição no ranking internacional na implementação de marcos regulatórios e cumprimento de contratos. O amadurecimento do poder público quanto à capacidade de planejamento e estratégia, ao cumprimento de prazos, seria também um legado desejável.”
A pátria em chuteiras, relembrando Nelson Rodrigues, merece ganhar mais do que os jogos em campo.
(Colaborou: José Alberto Gonçalves Pereira)
Leia mais:
“Mobilizações marcam a preparação para a Copa
Eventos impulsionam inovações e ajudam a desenvolver mercados