Por Amália Safatle
Da cidade natal de Anápolis, cercada de terra por todos os lados, este goiano lançou-se ao mar, onde passa, até mesmo, de 30 a 40 dias do ano. Edmo Campos, hoje professor titular do Departamento de Oceanografia Física, Química e Geológica da Universidade de São Paulo, é um dos maiores nomes no Brasil capazes de tratar sobre a sofisticada relação entre oceanos e clima. Em meados de setembro, conversou com PÁGINA22 sobre o Capítulo 3 do relatório que o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) lançaria no dia 30 (leia sobre o relatório em “Não dá mais para ignorar“.
As principais conclusões do documento são de que o oceano está se alterando de forma significativa em resposta à mudança climática, com impactos severos em todo o sistema vivo do planeta, e que o grau de confiança nessa avaliação é muito alto. Personagem secundário até não muito tempo atrás na “pauta” do IPCC, o oceano mais que nunca é reconhecido como um dos principais componentes – se não o mais influente – do sistema climático.
E, para fazer jus a essa importância, driblando os custos elevados e as dificuldades inerentes à pesquisa em alto-mar, o professor nos conta sobre a metade cheia desse copo: o aumento excepcional da cooperação entre países ricos e em desenvolvimento, unindo os hemisférios Norte e Sul com transferência tecnológica, formação de recursos humanos e divulgação de conhecimento a toda a comunidade internacional. “Em Oceanografia, a cooperação tornou-se um paradigma”, diz.
Como o senhor resumiria as principais conclusões do Capítulo 3 do relatório Climate Change 2013: The Physical Science Basis (o primeiro da série de quatro relatórios da quinta avaliação sobre mudança climática)?
São duas conclusões básicas: primeiro, há evidências muito fortes de que as propriedades oceânicas relevantes para o clima sofreram alterações nos últimos 40 anos. Essas propriedades incluem temperatura, salinidade, nível do mar, concentração de carbono, acidez (pH) e concentração de oxigênio. Em segundo lugar, essas alterações são bastante consistentes com o conjunto de observações já feitas, o que leva a uma confiança muito grande nessas avaliações. De forma geral, o que se pode dizer é que o oceano está se alterando de forma significativa, em resposta às mudanças no clima.
E que impactos essa alteração nos oceanos traz para os demais sistemas na Terra?
O oceano é formado por grande quantidade de água. E água é um dos elementos químicos da natureza com maior calor específico, ou seja, é uma substância que, para poder mudar de temperatura, requer uma grande quantidade de energia. Tem uma capacidade muito grande de armazenar calor. E muda de estado de forma bem lenta, mediante uma grande quantidade de energia. Comparada com o ar, a água tem uma capacidade térmica mil vezes superior. Isso significa que, para aquecer em 1 grau de temperatura uma quantidade de água, você gasta mil vezes mais energia do que para aquecer em 1 grau a mesma quantidade de ar.
Quando a gente está dentro de uma piscina e esfria lá fora, a água continua quente.
Sim. E, quando a água está fria e lá fora esquenta, a água continua fria durante um longo tempo. Então, por que isso é importante? Porque vivemos em um equilíbrio térmico. A radiação do Sol serve para aquecer o planeta, que, aquecido, emite radiação de volta, até chegar a um equilíbrio, ou seja, a quantidade recebida é igual à quantidade devolvida para o espaço. O que aconteceu nos últimos tempos é que, com a concentração de gases de efeito estufa, uma quantidade maior de energia fica aprisionada no sistema, o que induz um maior aquecimento. Se não tivesse água, esse aquecimento na atmosfera seria muito maior. Vamos pegar aqui o Summary for Policy Makers: o aquecimento do oceano absorveu 93% da energia em excesso e, de toda essa energia absorvida, 64% conseguiu chegar a grandes profundidades. Isso significa que até agora ainda estamos brigando para saber se tem ou não aquecimento global porque os oceanos têm a capacidade de amortecer as variações.
Pode chegar um momento em que perderá essa capacidade?
Pior que isso: chegará um momento em que, mesmo cessando as emissões de gás carbônico, o oceano terá aquecido de forma tal que vai manter a temperatura alterada também por muito tempo. A vida como temos hoje só é possível por causa do oceano, porque este tem a capacidade de absorver mais calor onde o calor recebido do espaço é maior que o retransmitido. E leva esse excesso para outras regiões onde existe déficit. Então, tem a capacidade de regular o sistema climático e de homogeneizar a distribuição de energia.
“Sem conhecimento preciso sobre o mar, não há como saber mais sobre o clima”
No relatório anterior, o AR4, eles diziam que os oceanos tinham absorvido mais de 80% do calor. Isso foi para 93%. Então quer dizer que as estimativas eram incorretas ou as pesquisas não atingiam uma profundidade tão grande?
Acontece o seguinte: o oceano é a região mais difícil de observar do sistema climático. A gente observa a atmosfera e o que acontece nos continentes, mas, no oceano, a maior parte das informações está na superfície. Poder observar as grandes profundidades oceânicas é muito caro, complicado, e somente nos últimos dez anos é que a gente começou a produzir uma maior informação que nos permite ter uma ideia do que está acontecendo até uma profundidade de 2 mil metros. A nossa capacidade de observação aumentou muito até 2 mil metros. Abaixo disso, ainda temos grande dificuldade. Nesse Capítulo 3 do Grupo de Trabalho 1, sobre as bases científicas da mudança climática, nós procuramos fazer um diagnóstico do que se conhece do oceano com base puramente em observações. Não utilizamos modelos, tampouco algum tipo de informação que não seja baseado em observações criteriosas e avaliação acurada.
Por que o senhor está enfatizando isso se o IPCC trabalha com tantos modelos para as variáveis?
Porque, para se basear nos modelos, é preciso ter confiança neles. E os modelos oceânicos ainda não são suficientemente validados no mesmo nível do que acontece com a atmosfera. O modelo dinâmico do oceano é uma equação diferencial que descreve o comportamento do sistema ao longo do tempo. Para poder resolver esse sistema de equação, é preciso ter condições iniciais, ou seja, tem de conhecer o sistema em um dado momento para a partir daí ver a sua evolução. Mas, se você não conhece a condição inicial, como pode saber a evolução?
Mas voltando àquela questão: que impactos essas alterações observadas nos oceanos causam?
Se nós quisermos saber se o clima daqui a 10, 20, 30, 50 anos será dessa ou daquela forma, temos de ter um conhecimento muito criterioso do estado atual do sistema, quer dizer, a atmosfera, a biosfera, o componente econômico e humano e o oceano. E o oceano, como os números dizem, é o componente que tem a maior capacidade de controlar o sistema climático.
Seria o principal elemento?
Ele é o controlador, o regulador. Ele é o buffer, como se diz em inglês. É o componente do sistema climático que faz com que as mudanças não sejam muito drásticas. Imagine a vida. A menos que você acredite em criacionismo, sabe que a vida é o resultado de uma série de combinações químicas que aconteceram ao acaso e geraram a primeira molécula de aminoácido. Para que houvesse a vida, era preciso que o sistema climático fosse estável. A água que cobre o planeta garante a estabilidade. Certamente existem as variabilidades naturais do sistema, e precisamos conhecê-las para saber até onde vai a mudança natural e onde começa a interferência humana.
Porém, se acreditarmos que estão ocorrendo alterações no clima, de origem antrópica, significa que o homem está causando uma mudança na atmosfera ou no ecossistema terrestre. O ser humano afeta o oceano poluindo, diminuindo a biodiversidade. Mas o impacto direto do ponto de vista climático é pequeno. O que alteramos é a atmosfera. No entanto, a atmosfera e o oceano interagem, ela aquece determinada região e esse excesso de calor afeta o oceano. Só que o oceano reage de uma forma que não entendemos muito bem. Então, entender como o oceano está sendo afetado fará com que nossas previsões sobre o comportamento do sistema climático sejam mais acuradas. Você não pode fazer uma boa previsão se não conhecer o comportamento de um dos componentes mais importantes, se não o mais importante.
Os cientistas dizem que a capacidade de absorção de gás carbônico está diminuindo, isso por quê? Por que o oceano está “empanturrado” de carbono? Qual a relação disso com aqueles 93%?
Este gráfico aqui (que integra o Summary for Policymakers, do relatório Climate Change: The Physical Science Basis, publicado em 27 de setembro pelo IPCC) representa três coisas. Primeiro, mostra que o CO2 vem aumentando de forma inexorável. Segundo, mostra que a pressão parcial do carbono na interface ar-mar está aumentando. Isso significa que está sendo bombeado mais carbono para o oceano, que o absorve.
Como o oceano absorve o carbono?
Através das reações fotossintéticas, pelo plâncton, e também por meio de uma bomba mecânica: o ar atmosférico eventualmente é aprisionado por turbulência e por processos de circulação vertical, e parte do carbono é dissolvida na água. Mas a componente mais importante é a biológica. Inclusive muitos dos céticos costumam dizer: “Gás carbônico é muito bom, você aumenta a quantidade dele em uma estufa e as plantinhas crescem mais”. Isso é verdade, a fotossíntese depende do gás carbônico e é a base da cadeia alimentar. Mas, com mais carbono dissolvido no oceano, vemos esta terceira curva aqui, que representa o pH da água, tornando-a mais ácida. E esse é um ciclo vicioso, uma retroalimentação positiva.
Por que o carbono acidifica a água?
Porque aumenta a quantidade de radicais ácidos na água, elevando sua acidez.
E por que é um círculo vicioso?
Ao aumentar a acidez, você diminui a capacidade de absorção. Isso porque a água do mar, para poder absorver o carbono, precisa de determinadas condições químicas. Quando você começa a comer muito, chega um momento em que não consegue comer mais, se comer mais explode igual à Dona Redonda (personagem da novela Saramandaia). Há um momento em que você dá um basta.
Então por que a absorção de calor passou para 93%, se a capacidade de absorção de carbono vem diminuindo?
Porque o oceano não atingiu o limite do “basta”, e ainda consegue absorver a maior parte do carbono atmosférico. Só que a consequência disso é que está se tornando mais ácido. E vai absorver menos. Quanto menos absorver, mais carbono terá na atmosfera, que cará mais quente. E, quanto mais carbono receber, menos terá capacidade de absorvê-lo.
Isso no futuro, ou já está acontecendo agora?
É um processo. Por enquanto, o oceano ainda está aguentando as pontas. Então, por que é importante saber o que está acontecendo com ele? A Nature desta semana saiu com uma série de artigos sobre a história do IPCC (edição de 19 de setembro, acessível aqui). No primeiro relatório, que saiu em 1990, não tinha (menção ao) oceano. No segundo, o oceano representava só uma capinha de água. No terceiro, o oceano já entrou, mas sem movimento (sem considerá-lo fator relevante na mudança climática). Só no quarto é que começou realmente (a ser motivo de atenção). E, sem o conhecimento mais preciso sobre o oceano, não há muito como acrescentar ao que nós sabemos sobre o sistema climático.
Na Rio+20 já se tinha noção dessa importância, mas a pauta dos oceanos passou à margem das discussões, não é?
É que ainda é muito difícil, complicado e caro fazer observação oceânica. É muito caro. Por exemplo, temos um cruzeiro que fazemos entre o Brasil e a África ao longo do Paralelo 34 (círculo de latitude que passa perto do Arroio Chuí, extremo meridional do Brasil, e cruza a Cidade do Cabo, na África do Sul), no qual observamos o oceano e a atmosfera simultaneamente. Na atmosfera, a gente faz (esta medição) através de uma sonda que custa algumas centenas de dólares e um balão que custa merreca. A medida equivalente no oceano, em profundidade máxima de 4 mil metros, requer a utilização de instrumentos e recursos que são centenas de vezes mais caros.
Então só os países desenvolvidos terão capacidade de fazer essas pesquisas?
O oceano é um exemplo de como a cooperação internacional está se tornando um paradigma. Hoje, os grandes programas de observação dos oceanos são programas em que há uma cooperação de fato. Mesmo os mais desenvolvidos, como os Estados Unidos e os países da Europa em geral, entenderam que é preciso colaborar.
A cooperação é necessária para se conseguir mais recursos?
Um exemplo. Esse projeto que temos no Atlântico Sul reúne Brasil, França, Argentina, África do Sul, Estados Unidos e outros países com menor participação. Então, o navio utilizado é o que a USP recém-adquiriu. Para a gente, logisticamente é mais fácil deslocar com esse navio do que vir um navio francês ou americano. Estes, por sua vez, têm mais conhecimento e tecnologia. Estão nos transferindo tecnologia, provendo instrumentos e conhecimento. Nós entramos com grande parte dos recursos humanos, navio e boa vontade. E os dados coletados são disponibilizados sem nenhuma restrição. Aliás, sem restrição para a comunidade internacional como um todo. O ser humano entendeu que, se não for assim, não vai entender o oceano. Claro, tem algumas restrições em áreas de Zona Econômica Exclusiva.
Só que o Atlântico Norte é extremamente pesquisado, tem a Comissão do Ártico, superinteressada no petróleo. E o Atlântico Sul, fora a Antártida, é muito mal pesquisado. Como fica essa desigualdade, que repete um pouco o tempo da colônia? Eles têm muito mais condição de preparar plano de adaptação, por exemplo.
Qual o ambiente que você quer entender primeiro, se dedica mais? É o ambiente onde você vive. Em relação ao oceano, onde é que as principais economias do mundo estão? No Hemisfério Norte. Então esses países precisam conhecer o oceano melhor ali. Historicamente, eles não se importavam muito em estudar o resto do oceano. E o Atlântico Norte é o local onde ocorre um dos processos mais importantes da contribuição oceânica para o sistema climático. É um processo que se dá da seguinte forma: você tem um sistema de circulação oceânica trazendo calor via a Corrente do Golfo, a Corrente do Atlântico Norte. Esse calor é liberado para a atmosfera. O vento que sopra da América para a Europa passa no oceano, retira esse calor e leva para a Europa.
É o que mantém a Europa não tão fria.
Exatamente. Você pega a Groenlândia de um lado, é gelada. Do outro lado, você tem Suécia, Noruega, Inglaterra, que são países desenvolvidos. Por que isso? Porque tem essa transferência do calor levado pelo oceano. Só que, retirando o calor do oceano, essa água próxima à superfície tem uma alta concentração de sal, o que a torna pesada e a faz afundar. Ao afundar, obviamente não fica um buraco, essa água é substituída pela que vem do Atlântico Sul em direção ao Atlântico Norte. A água que afundou circula pelo oceano como um todo e gradativamente volta para a superfície. Aí se mistura com águas menos salgadas, e em seguida retorna para o Atlântico Norte. Você tem uma máquina térmica que revolve a água do oceano como um todo e o início desse processo é nesse ponto do Hemisfério Norte. Tem outra região que é aqui na Antártida, onde se forma água de fundo. Então, os americanos e europeus sabiam da importância de estudar o Atlântico Norte, e achavam que não precisavam estudar o resto. Hoje a gente sabe que, se não entender o que está acontecendo aqui no Atlântico Sul – por exemplo entre a África e a Antártida, dificilmente vai saber o que está acontecendo no Atlântico Norte. Eles também estão interessados em olhar para outras bacias. Com isso, está havendo essa aproximação maior. Para eles também é muito caro. Para nós é conveniente, porque temos equipamento, apoio técnico, capacidade de formar recursos humanos. É um ganha-ganha.
A gente consegue estimar quanto é aplicado em pesquisa oceânica ou o quanto seria necessário? E o quanto esse investimento tem evoluído nesta atenção maior ao Atlântico Sul?
É difícil mensurar valores. Eu diria que a quantidade de investimento na observação oceânica de forma em geral aumentou muito e não somente nas áreas já estudadas, mas de forma global. Isso nos últimos dez anos. Em 1999, houve um grande simpósio internacional em Saint-Raphaël, na França, chamado Ocean Obs 99, em que foi apresentado um primeiro diagnóstico sobre o que tinha sido feito nos oceanos como um todo e o que precisava urgentemente ser feito. Nessa reunião, pela primeira vez a comunidade do Atlântico Sul conseguiu emplacar as suas necessidades. E a reunião resultou em um dos progressos mais significativos da observação oceânica feita em toda a história da Oceanografia: o Programa Argo.
É um programa no qual os diferentes países concordaram em investir na produção de um determinado instrumento que é lançado na água e programado para afundar até de 2 mil metros, permanecer por um período e aí retornar para a superfície medindo propriedades. Depois, emite essa informação por satélite e afunda novamente. Hoje existem mais de 3 mil desses robôs espalhados pelos oceanos. Por isso, os primeiros 2 mil metros de profundidade do oceano hoje têm uma quantidade de informação astronomicamente superior ao que tínhamos 20 anos atrás.
A acidificação está diretamente ligada à erosão da biodiversidade marinha. Segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) – e o senhor sabe melhor do que nós –, 80% das espécies estão no mar. E os corais são o berçário da vida marinha oceânica. No relatório anterior do IPCC, o pH do mar estava mais baixo em relação ao que se observava há milênios. Neste novo relatório, quais são as notícias sobre a acidificação? Há motivos para o pessimismo de ambientalistas e parte da comunidade científica?
Não vou avançar mais do que tenho conhecimento, mas posso apontar algumas direções. Entre o último e o atual relatório, houve um aumento na confiança do diagnóstico. O que se passa é que as variações de pH são valores muito pequenos. Em seis anos, não é possível ter uma diferença expressiva. Mas o que se deve levar em conta é a confirmação de que o pH está diminuindo. O pH=8 é a fronteira entre “ácido” e “básico”. Nos últimos 25 milhões de anos, o pH do oceano tem estado relativamente acima de 8. Antes de 1800, o valor era algo em torno de 8,2. Atualmente está por volta de 8,1 e diminuindo. A continuar neste ritmo, o oceano se torna ácido. Ou seja, diminui drasticamente sua capacidade de absorver mais carbono, além de se tornar um ambiente não muito bom para a vida como ela é. Fatalmente, a maior parte das espécies será afetada de forma negativa, haverá um desequilíbrio e uma redução na biodiversidade. Mas não sou especialista, terão outros grupos estudando isso de forma muito mais detalhada.
O grande problema que acontece ao comunicar esses dados é que muitas pessoas falam: “Ah, esse número é muito pequeno”.
Mas não em escala global e evolutiva.
Não só isso. O aumento do nível do mar, de acordo com esse levantamento, foi de 19 centímetros, com incerteza de mais 2 ou menos 2, em 100 anos. Para que isso acontecesse, a quantidade de calor foi de 10²²! Eu não sei nem pronunciar esse número. É mais que 10 bilhões, que é 10 elevado à nona potência, é mais que 10 trilhões, que é 10¹². Dez elevado a 22 é uma quantidade absurda de calor! Em termos de potência, eu fiz esse exercício: a quantidade corresponde a milhares de usinas de Itaipu funcionando a todo vapor. De 1971 a 2010, houve um aumento de quase meio grau na temperatura. Esse meio grau corresponde a uma quantidade estúpida de calor. É preciso entender isso, que pequenas alterações oceânicas estão associadas a efeitos enormes.
“Pequenas alterações oceânicas causam efeitos enormes”
Reduzir a poluição marinha e criar mais reservas marinhas e costeiras podem ser consideradas medidas de mitigação, visto que aumentarão a capacidade dos oceanos de absorver carbono, além de muitos outros benefícios associados? Grosso modo, a criação de reservas marinhas seria como, em terra, evitar emissões por redução de desmatamento e degradação?
Não é a minha especialidade, mas eu me arriscaria a dizer que, apesar dos grandes benefícios de tais medidas, não creio que reservas marinhas e costeiras viriam a acrescentar muito em termos de mitigação.
Como reduzir o gap entre a ciência e a política? Como os dados trazidos pelo IPCC podem provocar a implementação de políticas efetivas de conservação?
Essa é a parte mais complicada. Existe esse jogo “se eu tomar qualquer tipo de atitude agora vou beneficiar gerações futuras mas prejudicar gerações presentes”. Tem muito cético que diz que isso é uma conspiração para evitar que países menos desenvolvidos se desenvolvam. Mas eu diria que os países mais pobres, se a coisa continuar como está, possivelmente serão os mais prejudicados.
Até porque os prejuízos já estão afetando as gerações atuais por não se tomarem medidas.
Exatamente. Os tomadores de decisão devem levar em conta que as medidas mitigatórias hoje podem até ter um efeito negativo pontualmente, mas, no cômputo geral, será benéfico para a humanidade como um todo. Eu sempre costumo dizer uma coisa, de que tenho medo de ser interpretado como fascista. Mas dificilmente se ouvem pessoas falando sobre um pouco mais de critério em relação ao aumento da população no planeta. Não adianta pensar somente em tentar alterar o comportamento das pessoas se o número delas continuar aumentando. Do ponto de vista da ciência, as medidas devem ser tomadas, porque eu não consigo ver que prejuízo a humanidade terá se agirmos de forma responsável no planeta.
As Convenções no âmbito da ONU sobre Clima, Biodiversidade e Direito do Mar conversam pouco entre si? (mais na reportagem “De todos, mas de ninguém”)
Eu, infelizmente, ou felizmente, não me envolvo muito (nesta seara). O que diria é que gradativamente, em Oceonografia, está havendo um aumento de políticas que permitem maior compartilhamento de informações, cooperação e sinergia entre os países. Porque grande parte dos oceanos é terra de ninguém e difícil de se observar, não existe nenhum país com capacidade de observá-lo e estudá-lo sozinho. Grandes programas no âmbito da Unesco e da Organização Meteorológica Mundial, como o Argo, mostram como essa cooperação aumentou de forma excepcional a nossa capacidade de conhecimento.
Mais uma vez a política fica atrás da ciência?
Eu não tenho vontade de entrar na seara política, não é a minha formação. Mas nós dos oceanos estamos fazendo muito para diminuir um pouco essas barreiras e resistências políticas. Como o IPCC, eu não ganhei nada, ao contrário do que muitos céticos dizem, que a gente é pago – até hoje eu não recebi nada! (risos). Pelo contrário, a gente trabalha muito, tem pouco tempo para dedicar à família, é muita coisa que tem para fazer, mas a gente se sente realizado por saber que está contribuindo de alguma forma para um futuro melhor para os nossos descendentes.
Leia mais nesta edição:
Como o homem deu as costas pro mar, em “A Devastação Azul“
Questão da governança das águas internacionais dificulta políticas de preservação, em “De Todos, Mas de Ninguém“
Conservar os oceanos e explorar seus recursos ao mesmo tempo custa caro, em “Oceanos S.A.“
A insustentabilidade da pesca industrial, em “Não está pra peixe“
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Da cidade natal de Anápolis, cercada de terra por todos os lados, este goiano lançou-se ao mar, onde passa, até mesmo, de 30 a 40 dias do ano. Edmo Campos, hoje professor titular do Departamento de Oceanografia Física, Química e Geológica da Universidade de São Paulo, é um dos maiores nomes no Brasil capazes de tratar sobre a sofisticada relação entre oceanos e clima. Em meados de setembro, conversou com PÁGINA22 sobre o Capítulo 3 do relatório que o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) lançaria no dia 30 (leia sobre o relatório em “Não dá mais para ignorar“.
As principais conclusões do documento são de que o oceano está se alterando de forma significativa em resposta à mudança climática, com impactos severos em todo o sistema vivo do planeta, e que o grau de confiança nessa avaliação é muito alto. Personagem secundário até não muito tempo atrás na “pauta” do IPCC, o oceano mais que nunca é reconhecido como um dos principais componentes – se não o mais influente – do sistema climático.
E, para fazer jus a essa importância, driblando os custos elevados e as dificuldades inerentes à pesquisa em alto-mar, o professor nos conta sobre a metade cheia desse copo: o aumento excepcional da cooperação entre países ricos e em desenvolvimento, unindo os hemisférios Norte e Sul com transferência tecnológica, formação de recursos humanos e divulgação de conhecimento a toda a comunidade internacional. “Em Oceanografia, a cooperação tornou-se um paradigma”, diz.
Como o senhor resumiria as principais conclusões do Capítulo 3 do relatório Climate Change 2013: The Physical Science Basis (o primeiro da série de quatro relatórios da quinta avaliação sobre mudança climática)?
São duas conclusões básicas: primeiro, há evidências muito fortes de que as propriedades oceânicas relevantes para o clima sofreram alterações nos últimos 40 anos. Essas propriedades incluem temperatura, salinidade, nível do mar, concentração de carbono, acidez (pH) e concentração de oxigênio. Em segundo lugar, essas alterações são bastante consistentes com o conjunto de observações já feitas, o que leva a uma confiança muito grande nessas avaliações. De forma geral, o que se pode dizer é que o oceano está se alterando de forma significativa, em resposta às mudanças no clima.
E que impactos essa alteração nos oceanos traz para os demais sistemas na Terra?
O oceano é formado por grande quantidade de água. E água é um dos elementos químicos da natureza com maior calor específico, ou seja, é uma substância que, para poder mudar de temperatura, requer uma grande quantidade de energia. Tem uma capacidade muito grande de armazenar calor. E muda de estado de forma bem lenta, mediante uma grande quantidade de energia. Comparada com o ar, a água tem uma capacidade térmica mil vezes superior. Isso significa que, para aquecer em 1 grau de temperatura uma quantidade de água, você gasta mil vezes mais energia do que para aquecer em 1 grau a mesma quantidade de ar.
Quando a gente está dentro de uma piscina e esfria lá fora, a água continua quente.
Sim. E, quando a água está fria e lá fora esquenta, a água continua fria durante um longo tempo. Então, por que isso é importante? Porque vivemos em um equilíbrio térmico. A radiação do Sol serve para aquecer o planeta, que, aquecido, emite radiação de volta, até chegar a um equilíbrio, ou seja, a quantidade recebida é igual à quantidade devolvida para o espaço. O que aconteceu nos últimos tempos é que, com a concentração de gases de efeito estufa, uma quantidade maior de energia fica aprisionada no sistema, o que induz um maior aquecimento. Se não tivesse água, esse aquecimento na atmosfera seria muito maior. Vamos pegar aqui o Summary for Policy Makers: o aquecimento do oceano absorveu 93% da energia em excesso e, de toda essa energia absorvida, 64% conseguiu chegar a grandes profundidades. Isso significa que até agora ainda estamos brigando para saber se tem ou não aquecimento global porque os oceanos têm a capacidade de amortecer as variações.
Pode chegar um momento em que perderá essa capacidade?
Pior que isso: chegará um momento em que, mesmo cessando as emissões de gás carbônico, o oceano terá aquecido de forma tal que vai manter a temperatura alterada também por muito tempo. A vida como temos hoje só é possível por causa do oceano, porque este tem a capacidade de absorver mais calor onde o calor recebido do espaço é maior que o retransmitido. E leva esse excesso para outras regiões onde existe déficit. Então, tem a capacidade de regular o sistema climático e de homogeneizar a distribuição de energia.
“Sem conhecimento preciso sobre o mar, não há como saber mais sobre o clima”
No relatório anterior, o AR4, eles diziam que os oceanos tinham absorvido mais de 80% do calor. Isso foi para 93%. Então quer dizer que as estimativas eram incorretas ou as pesquisas não atingiam uma profundidade tão grande?
Acontece o seguinte: o oceano é a região mais difícil de observar do sistema climático. A gente observa a atmosfera e o que acontece nos continentes, mas, no oceano, a maior parte das informações está na superfície. Poder observar as grandes profundidades oceânicas é muito caro, complicado, e somente nos últimos dez anos é que a gente começou a produzir uma maior informação que nos permite ter uma ideia do que está acontecendo até uma profundidade de 2 mil metros. A nossa capacidade de observação aumentou muito até 2 mil metros. Abaixo disso, ainda temos grande dificuldade. Nesse Capítulo 3 do Grupo de Trabalho 1, sobre as bases científicas da mudança climática, nós procuramos fazer um diagnóstico do que se conhece do oceano com base puramente em observações. Não utilizamos modelos, tampouco algum tipo de informação que não seja baseado em observações criteriosas e avaliação acurada.
Por que o senhor está enfatizando isso se o IPCC trabalha com tantos modelos para as variáveis?
Porque, para se basear nos modelos, é preciso ter confiança neles. E os modelos oceânicos ainda não são suficientemente validados no mesmo nível do que acontece com a atmosfera. O modelo dinâmico do oceano é uma equação diferencial que descreve o comportamento do sistema ao longo do tempo. Para poder resolver esse sistema de equação, é preciso ter condições iniciais, ou seja, tem de conhecer o sistema em um dado momento para a partir daí ver a sua evolução. Mas, se você não conhece a condição inicial, como pode saber a evolução?
Mas voltando àquela questão: que impactos essas alterações observadas nos oceanos causam?
Se nós quisermos saber se o clima daqui a 10, 20, 30, 50 anos será dessa ou daquela forma, temos de ter um conhecimento muito criterioso do estado atual do sistema, quer dizer, a atmosfera, a biosfera, o componente econômico e humano e o oceano. E o oceano, como os números dizem, é o componente que tem a maior capacidade de controlar o sistema climático.
Seria o principal elemento?
Ele é o controlador, o regulador. Ele é o buffer, como se diz em inglês. É o componente do sistema climático que faz com que as mudanças não sejam muito drásticas. Imagine a vida. A menos que você acredite em criacionismo, sabe que a vida é o resultado de uma série de combinações químicas que aconteceram ao acaso e geraram a primeira molécula de aminoácido. Para que houvesse a vida, era preciso que o sistema climático fosse estável. A água que cobre o planeta garante a estabilidade. Certamente existem as variabilidades naturais do sistema, e precisamos conhecê-las para saber até onde vai a mudança natural e onde começa a interferência humana.
Porém, se acreditarmos que estão ocorrendo alterações no clima, de origem antrópica, significa que o homem está causando uma mudança na atmosfera ou no ecossistema terrestre. O ser humano afeta o oceano poluindo, diminuindo a biodiversidade. Mas o impacto direto do ponto de vista climático é pequeno. O que alteramos é a atmosfera. No entanto, a atmosfera e o oceano interagem, ela aquece determinada região e esse excesso de calor afeta o oceano. Só que o oceano reage de uma forma que não entendemos muito bem. Então, entender como o oceano está sendo afetado fará com que nossas previsões sobre o comportamento do sistema climático sejam mais acuradas. Você não pode fazer uma boa previsão se não conhecer o comportamento de um dos componentes mais importantes, se não o mais importante.
Os cientistas dizem que a capacidade de absorção de gás carbônico está diminuindo, isso por quê? Por que o oceano está “empanturrado” de carbono? Qual a relação disso com aqueles 93%?
Este gráfico aqui (que integra o Summary for Policymakers, do relatório Climate Change: The Physical Science Basis, publicado em 27 de setembro pelo IPCC) representa três coisas. Primeiro, mostra que o CO2 vem aumentando de forma inexorável. Segundo, mostra que a pressão parcial do carbono na interface ar-mar está aumentando. Isso significa que está sendo bombeado mais carbono para o oceano, que o absorve.
Como o oceano absorve o carbono?
Através das reações fotossintéticas, pelo plâncton, e também por meio de uma bomba mecânica: o ar atmosférico eventualmente é aprisionado por turbulência e por processos de circulação vertical, e parte do carbono é dissolvida na água. Mas a componente mais importante é a biológica. Inclusive muitos dos céticos costumam dizer: “Gás carbônico é muito bom, você aumenta a quantidade dele em uma estufa e as plantinhas crescem mais”. Isso é verdade, a fotossíntese depende do gás carbônico e é a base da cadeia alimentar. Mas, com mais carbono dissolvido no oceano, vemos esta terceira curva aqui, que representa o pH da água, tornando-a mais ácida. E esse é um ciclo vicioso, uma retroalimentação positiva.
Por que o carbono acidifica a água?
Porque aumenta a quantidade de radicais ácidos na água, elevando sua acidez.
E por que é um círculo vicioso?
Ao aumentar a acidez, você diminui a capacidade de absorção. Isso porque a água do mar, para poder absorver o carbono, precisa de determinadas condições químicas. Quando você começa a comer muito, chega um momento em que não consegue comer mais, se comer mais explode igual à Dona Redonda (personagem da novela Saramandaia). Há um momento em que você dá um basta.
Então por que a absorção de calor passou para 93%, se a capacidade de absorção de carbono vem diminuindo?
Porque o oceano não atingiu o limite do “basta”, e ainda consegue absorver a maior parte do carbono atmosférico. Só que a consequência disso é que está se tornando mais ácido. E vai absorver menos. Quanto menos absorver, mais carbono terá na atmosfera, que cará mais quente. E, quanto mais carbono receber, menos terá capacidade de absorvê-lo.
Isso no futuro, ou já está acontecendo agora?
É um processo. Por enquanto, o oceano ainda está aguentando as pontas. Então, por que é importante saber o que está acontecendo com ele? A Nature desta semana saiu com uma série de artigos sobre a história do IPCC (edição de 19 de setembro, acessível aqui). No primeiro relatório, que saiu em 1990, não tinha (menção ao) oceano. No segundo, o oceano representava só uma capinha de água. No terceiro, o oceano já entrou, mas sem movimento (sem considerá-lo fator relevante na mudança climática). Só no quarto é que começou realmente (a ser motivo de atenção). E, sem o conhecimento mais preciso sobre o oceano, não há muito como acrescentar ao que nós sabemos sobre o sistema climático.
Na Rio+20 já se tinha noção dessa importância, mas a pauta dos oceanos passou à margem das discussões, não é?
É que ainda é muito difícil, complicado e caro fazer observação oceânica. É muito caro. Por exemplo, temos um cruzeiro que fazemos entre o Brasil e a África ao longo do Paralelo 34 (círculo de latitude que passa perto do Arroio Chuí, extremo meridional do Brasil, e cruza a Cidade do Cabo, na África do Sul), no qual observamos o oceano e a atmosfera simultaneamente. Na atmosfera, a gente faz (esta medição) através de uma sonda que custa algumas centenas de dólares e um balão que custa merreca. A medida equivalente no oceano, em profundidade máxima de 4 mil metros, requer a utilização de instrumentos e recursos que são centenas de vezes mais caros.
Então só os países desenvolvidos terão capacidade de fazer essas pesquisas?
O oceano é um exemplo de como a cooperação internacional está se tornando um paradigma. Hoje, os grandes programas de observação dos oceanos são programas em que há uma cooperação de fato. Mesmo os mais desenvolvidos, como os Estados Unidos e os países da Europa em geral, entenderam que é preciso colaborar.
A cooperação é necessária para se conseguir mais recursos?
Um exemplo. Esse projeto que temos no Atlântico Sul reúne Brasil, França, Argentina, África do Sul, Estados Unidos e outros países com menor participação. Então, o navio utilizado é o que a USP recém-adquiriu. Para a gente, logisticamente é mais fácil deslocar com esse navio do que vir um navio francês ou americano. Estes, por sua vez, têm mais conhecimento e tecnologia. Estão nos transferindo tecnologia, provendo instrumentos e conhecimento. Nós entramos com grande parte dos recursos humanos, navio e boa vontade. E os dados coletados são disponibilizados sem nenhuma restrição. Aliás, sem restrição para a comunidade internacional como um todo. O ser humano entendeu que, se não for assim, não vai entender o oceano. Claro, tem algumas restrições em áreas de Zona Econômica Exclusiva.
Só que o Atlântico Norte é extremamente pesquisado, tem a Comissão do Ártico, superinteressada no petróleo. E o Atlântico Sul, fora a Antártida, é muito mal pesquisado. Como fica essa desigualdade, que repete um pouco o tempo da colônia? Eles têm muito mais condição de preparar plano de adaptação, por exemplo.
Qual o ambiente que você quer entender primeiro, se dedica mais? É o ambiente onde você vive. Em relação ao oceano, onde é que as principais economias do mundo estão? No Hemisfério Norte. Então esses países precisam conhecer o oceano melhor ali. Historicamente, eles não se importavam muito em estudar o resto do oceano. E o Atlântico Norte é o local onde ocorre um dos processos mais importantes da contribuição oceânica para o sistema climático. É um processo que se dá da seguinte forma: você tem um sistema de circulação oceânica trazendo calor via a Corrente do Golfo, a Corrente do Atlântico Norte. Esse calor é liberado para a atmosfera. O vento que sopra da América para a Europa passa no oceano, retira esse calor e leva para a Europa.
É o que mantém a Europa não tão fria.
Exatamente. Você pega a Groenlândia de um lado, é gelada. Do outro lado, você tem Suécia, Noruega, Inglaterra, que são países desenvolvidos. Por que isso? Porque tem essa transferência do calor levado pelo oceano. Só que, retirando o calor do oceano, essa água próxima à superfície tem uma alta concentração de sal, o que a torna pesada e a faz afundar. Ao afundar, obviamente não fica um buraco,essa água é substituída pela que vem do Atlântico Sul em direção ao Atlântico Norte. A água que afundou circula pelo oceano como um todo e gradativamente volta para a superfície. Aí se mistura com águas menos salgadas, e em seguida retorna para o Atlântico Norte. Você tem uma máquina térmica que revolve a água do oceano como um todo e o início desse processo é nesse ponto do Hemisfério Norte. Tem outra região que é aqui na Antártida, onde se forma água de fundo. Então, os americanos e europeus sabiam da importância de estudar o Atlântico Norte, e achavam que não precisavam estudar o resto. Hoje a gente sabe que, se não entender o que está acontecendo aqui no Atlântico Sul – por exemplo entre a África e a Antártida, dificilmente vai saber o que está acontecendo no Atlântico Norte. Eles também estão interessados em olhar para outras bacias. Com isso, está havendo essa aproximação maior. Para eles também é muito caro. Para nós é conveniente, porque temos equipamento, apoio técnico, capacidade de formar recursos humanos. É um ganha-ganha.
A gente consegue estimar quanto é aplicado em pesquisa oceânica ou o quanto seria necessário? E o quanto esse investimento tem evoluído nesta atenção maior ao Atlântico Sul?
É difícil mensurar valores. Eu diria que a quantidade de investimento na observação oceânica de forma em geral aumentou muito e não somente nas áreas já estudadas, mas de forma global. Isso nos últimos dez anos. Em 1999, houve um grande simpósio internacional em Saint-Raphaël, na França, chamado Ocean Obs 99, em que foi apresentado um primeiro diagnóstico sobre o que tinha sido feito nos oceanos como um todo e o que precisava urgentemente ser feito. Nessa reunião, pela primeira vez a comunidade do Atlântico Sul conseguiu emplacar as suas necessidades. E a reunião resultou em um dos progressos mais significativos da observação oceânica feita em toda a história da Oceanografia: o Programa Argo.
É um programa no qual os diferentes países concordaram em investir na produção de um determinado instrumento que é lançado na água e programado para afundar até de 2 mil metros, permanecer por um período e aí retornar para a superfície medindo propriedades. Depois, emite essa informação por satélite e afunda novamente. Hoje existem mais de 3 mil desses robôs espalhados pelos oceanos. Por isso, os primeiros 2 mil metros de profundidade do oceano hoje têm uma quantidade de informação astronomicamente superior ao que tínhamos 20 anos atrás.
A acidificação está diretamente ligada à erosão da biodiversidade marinha. Segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) – e o senhor sabe melhor do que nós –, 80% das espécies estão no mar. E os corais são o berçário da vida marinha oceânica. No relatório anterior do IPCC, o pH do mar estava mais baixo em relação ao que se observava há milênios. Neste novo relatório, quais são as notícias sobre a acidificação? Há motivos para o pessimismo de ambientalistas e parte da comunidade científica?
Não vou avançar mais do que tenho conhecimento, mas posso apontar algumas direções. Entre o último e o atual relatório, houve um aumento na confiança do diagnóstico. O que se passa é que as variações de pH são valores muito pequenos. Em seis anos, não é possível ter uma diferença expressiva. Mas o que se deve levar em conta é a confirmação de que o pH está diminuindo. O pH=8 é a fronteira entre “ácido” e “básico”. Nos últimos 25 milhões de anos, o pH do oceano tem estado relativamente acima de 8. Antes de 1800, o valor era algo em torno de 8,2. Atualmente está por volta de 8,1 e diminuindo. A continuar neste ritmo, o oceano se torna ácido. Ou seja, diminui drasticamente sua capacidade de absorver mais carbono, além de se tornar um ambiente não muito bom para a vida como ela é. Fatalmente, a maior parte das espécies será afetada de forma negativa, haverá um desequilíbrio e uma redução na biodiversidade. Mas não sou especialista, terão outros grupos estudando isso de forma muito mais detalhada.
O grande problema que acontece ao comunicar esses dados é que muitas pessoas falam: “Ah, esse número é muito pequeno”.
Mas não em escala global e evolutiva.
Não só isso. O aumento do nível do mar, de acordo com esse levantamento, foi de 19 centímetros, com incerteza de mais 2 ou menos 2, em 100 anos. Para que isso acontecesse, a quantidade de calor foi de 10²²! Eu não sei nem pronunciar esse número. É mais que 10 bilhões, que é 10 elevado à nona potência, é mais que 10 trilhões, que é 10¹². Dez elevado a 22 é uma quantidade absurda de calor! Em termos de potência, eu fiz esse exercício: a quantidade corresponde a milhares de usinas de Itaipu funcionando a todo vapor. De 1971 a 2010, houve um aumento de quase meio grau na temperatura. Esse meio grau corresponde a uma quantidade estúpida de calor. É preciso entender isso, que pequenas alterações oceânicas estão associadas a efeitos enormes.
“Pequenas alterações oceânicas causam efeitos enormes”
Reduzir a poluição marinha e criar mais reservas marinhas e costeiras podem ser consideradas medidas de mitigação, visto que aumentarão a capacidade dos oceanos de absorver carbono, além de muitos outros benefícios associados? Grosso modo, a criação de reservas marinhas seria como, em terra, evitar emissões por redução de desmatamento e degradação?
Não é a minha especialidade, mas eu me arriscaria a dizer que, apesar dos grandes benefícios de tais medidas, não creio que reservas marinhas e costeiras viriam a acrescentar muito em termos de mitigação.
Como reduzir o gap entre a ciência e a política? Como os dados trazidos pelo IPCC podem provocar a implementação de políticas efetivas de conservação?
Essa é a parte mais complicada. Existe esse jogo “se eu tomar qualquer tipo de atitude agora vou beneficiar gerações futuras mas prejudicar gerações presentes”. Tem muito cético que diz que isso é uma conspiração para evitar que países menos desenvolvidos se desenvolvam. Mas eu diria que os países mais pobres, se a coisa continuar como está, possivelmente serão os mais prejudicados.
Até porque os prejuízos já estão afetando as gerações atuais por não se tomarem medidas.
Exatamente. Os tomadores de decisão devem levar em conta que as medidas mitigatórias hoje podem até ter um efeito negativo pontualmente, mas, no cômputo geral, será benéfico para a humanidade como um todo. Eu sempre costumo dizer uma coisa, de que tenho medo de ser interpretado como fascista. Mas dificilmente se ouvem pessoas falando sobre um pouco mais de critério em relação ao aumento da população no planeta. Não adianta pensar somente em tentar alterar o comportamento das pessoas se o número delas continuar aumentando. Do ponto de vista da ciência, as medidas devem ser tomadas, porque eu não consigo ver que prejuízo a humanidade terá se agirmos de forma responsável no planeta.
As Convenções no âmbito da ONU sobre Clima, Biodiversidade e Direito do Mar conversam pouco entre si? (mais em “Interfaces Leagais” e na reportagem “De todos, mas de ninguém”)
Eu, infelizmente, ou felizmente, não me envolvo muito (nesta seara). O que diria é que gradativamente, em Oceonografia, está havendo um aumento de políticas que permitem maior compartilhamento de informações, cooperação e sinergia entre os países. Porque grande parte dos oceanos é terra de ninguém e difícil de se observar, não existe nenhum país com capacidade de observá-lo e estudá-lo sozinho. Grandes programas no âmbito da Unesco e da Organização Meteorológica Mundial, como o Argo, mostram como essa cooperação aumentou de forma excepcional a nossa capacidade de conhecimento.
Mais uma vez a política fica atrás da ciência?
Eu não tenho vontade de entrar na seara política, não é a minha formação. Mas nós dos oceanos estamos fazendo muito para diminuir um pouco essas barreiras e resistências políticas. Como o IPCC, eu não ganhei nada, ao contrário do que muitos céticos dizem, que a gente é pago – até hoje eu não recebi nada! (risos). Pelo contrário, a gente trabalha muito, tem pouco tempo para dedicar à família, é muita coisa que tem para fazer, mas a gente se sente realizado por saber que está contribuindo de alguma forma para um futuro melhor para os nossos descendentes.
Leia mais nesta edição:
Como o homem deu as costas pro mar, em “A Devastação Azul“
Questão da governança das águas internacionais dificulta políticas de preservação, em “De Todos, Mas de Ninguém“
Conservar os oceanos e explorar seus recursos ao memso tempo custa caro, em “Oceanos S.A.“
A insustentabilidade da pesca industrial, em “Não está pra peixe“