INTEGRIDADE
Comer é alimentar corpo e espírito e deve ser entendido como um meio e não um fim
Comer não é apenas ingerir nutrientes e calorias para matar a fome. Fosse assim, valeria recorrermos às pílulas de astronauta que a ficção científica do século XIX imaginou que teríamos à mesa nos anos 2000.
Comer é, então, uma relação entre nosso corpo, nossas sensações, nossa cultura e tudo o que envolveu aquele alimento: sua formação natural, seu processo de colheita, transporte e venda. Seu preparo e apreciação, sua história, sua cultura.
Um alimento é íntegro, portanto, quando completo no sentido mais amplo. “Alimentação é mais que nutrição física. É nutrição também do nosso espírito”, diz Carlos Armenio Khatounian, da Esalq/USP (mais na reportagem “Alimento da alma“).
Nossas relações com a comida, no entanto, estão cada vez mais distantes. A era dos processados diminuiu nossa necessidade de preparar o que comemos. Basta “colher” de uma prateleira. E, dela, a comida vai ao prato. Esquecemos, assim, todo os aspectos envolvidos na produção, desde sua origem, e os processos de nossa refeição. “Um pão industrializado pode até ser muito saboroso. Mas aquele feito em casa tem outros aspectos que o tornam ainda mais gostoso”, diz ele.
“Quando lemos um rótulo de produto processado, podemos pensar ‘quais desses agentes e aditivos eu tenho na minha cozinha?’. Quase nenhum”, diz a nutricionista Samantha Peixoto. Para ela, esse é um indicativo de que mal sabemos o que comemos, e ingerimos o que não precisamos.
INFORMAÇÃO
Para saber o que comemos, é preciso entender os alimentos além dos rótulos
O que é um sequestrante? Ou um agente de firmeza? Esses termos podem até causar estranheza, mas estão em muitos alimentos que ingerimos. O primeiro é uma substância que forma complexos químicos com íons metálicos. De forma simplificada: é um elemento artificial que evita a deterioração do alimento durante o processamento. Já os agentes de firmeza são usados em bolos e iogurtes para melhorar sua consistência e para tornar o tecido de frutas ou hortaliças mais resistentes.
Esses e outros aditivos alimentares podem ser encontrados na lista de ingredientes das embalagens dos produtos industrializados, mas nem todo mundo consegue entender seu significado. A linguagem técnica e as letras miúdas são as maiores queixas dos consumidores sobre a leitura dos rótulos dos alimentos, diz a nutricionista Samantha Peixoto. Ela é cofundadora do site FechandoZiper.com, que tem como objetivo desvendar cada item escrito nos rótulos, explicando o que são os ingredientes e analisando se o alimento é mesmo o que diz ser. Para cada produto analisado no site, os especialistas pesquisam os ingredientes com base em artigos científicos, dados da legislação e consultas ao Ministério da Saúde e Anvisa. “Se para nutricionistas como eu é difícil entender, imagine para os leigos!”, diz Samantha.
As tabelas nutricionais também confundem ao apresentar valores referentes a porções. Há algumas, por exemplo, que são de “dois biscoitos e meio”, medida um tanto irrealista, uma vez que ninguém come ou pensa no “meio biscoito”. Ou são fornecidas em gramas, sem que o consumidor saiba o peso exato do que coloca no prato.
O excesso também pode ser prejudicial. Às vezes, as informações das embalagens mais confundem do que esclarecem. “O produto se diz fonte de vitaminas, com pouco sódio, menos açúcar, entre outras coisas. É tanta propaganda e informação que há quem se sinta inseguro por não entender tudo aquilo”, afirma.
DIVERSIDADE
A alimentação brasileira perde com a padronização do cardápio e a desvalorização de produtos locais
A diversidade de alimentos que pode ser acessada pela população em feiras, mercados e supermercados não condiz com a variedade do que chega cotidianamente ao prato da família brasileira, composto basicamente por arroz, feijão, alface e tomate, aponta Carlos Armenio Khatounian, da Esalq/USP.
Ele completa: em todo o mundo, apenas dez itens respondem por 90% da alimentação das pessoas. Entre eles: o milho, o trigo e o leite. “Caminhamos para uma simplificação alimentar. As pessoas vão às compras e voltam sempre com os mesmos itens na sacola, porque podem comprá-los durante o ano todo.”
Entre os alimentos processados, a simplificação se dá na produção de sabores e tipos. É efeito do sistema agroalimentar moderno, centrado em poucas indústrias que dominam a produção e distribuição do que comemos. Segundo Khatounian, as companhias têm dificuldade em se adaptar às peculiaridades de tradições locais e oferecem os mesmos produtos, a partir dos mesmos ingredientes e métodos de processamento.
Outro problema da homogeneização das refeições é não seguir as estações do ano e transpor as diferenças entre os locais de origem das plantas, como se pudessem brotar em qualquer bioma. O resultado é que ingerimos muito mais agrotóxicos – empregados pelos produtores para que o arroz, feijão, alface e o tomate se desenvolvam mesmo em condições desfavoráveis.
Além disso, o modelo de produção dominante no Brasil pouco valoriza as espécies locais (mais em “Chega de anonimato“). Para Sandro Marques, professor de Cozinha Brasileira no Senac, o brasileiro aprendeu ao longo de nossa história a valorizar mais o que é estrangeiro. “Conhecemos melhor a maçã do que a mangaba. Uma criança reconhece mais o sabor artificial de morango do que o sabor de uma jabuticaba. Embora a história da cozinha seja feita de permutas e empréstimos entre diferentes culturas, a valorização dos produtos locais é importante para a criação de uma identidade nacional”, diz.
SABOR
Educar o paladar é o primeiro passo para a alimentação saudável. Quem se acostuma com os sabores “grosseiros” perde a sensibilidade para os “sutis”
Na hora de escolher os alimentos, as pessoas colocam a praticidade à frente do sabor, revelou uma pesquisa encomendada ao Ibope pela da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) junto ao Ibope, que traçou o perfil do consumo de alimentos no Brasil (acesse aqui). Trinta e quatro por cento dos entrevistados disseram que praticidade e conveniência eram as prioridades na decisão, e 23%, que era o prazer e a sensorialidade.
Os números são um indicativo de como a vida apressada nos desconectou do ato de comer. E explorar as experiências do paladar é fundamental para o prazer e a boa educação alimentar. A infância é a fase crucial para essa educação. É nesse período que desenvolvemos nossos gostos e treinamos as papilas gustativas. Quem não aprende a comer alimentos variados na infância tem mais dificuldade em aprender depois.
Crianças tendem a preferir os sabores “brutos” (muito salgados ou muito doces), que tornam os alimentos mais fáceis de comer, e a não gostar dos “sutis”(como amargo e azedo). Quando as pessoas se acostumam com os sabores grosseiros, perdem a sensibilidade para os sutis. Por isso, oferecer apenas “alimentos de crianças” a elas pode ser uma armadilha. É preciso aprender a comer aos poucos os alimentos dos adultos.
A nutricionista Valdirene Neves ressalta que, ao comer, devemos explorar os outros quatro sentidos: olfato, audição, visão e tato. Ao ouvir a “crocância” de um alimento, percebemos se está fresco, enquanto os aromas podem revelar os temperos, por exemplo. “Além disso, comer com as mãos é uma experiência que nos aproxima muito do alimento. Há a etiqueta, mas não podemos ser hipócritas e fingir que não comemos nada com as mãos. Há quem diga que esse gesto torna os alimentos ainda mais saborosos.”
Leia um texto de Sandro Marques sobre a diversidade na alimentação em “Entre a tapioca e o hambúrguer“