Por Amália Safatle
Embora nesta eleição o seu espectro ainda domine o espaço de debate, a velha política como a concebemos já era, e com ela suas antigas formas de representatividade e de participação. Pela teia eletrônica, uma nova forma de interação, de diálogo e de arregimentação está apta a constituir daqui para a frente uma outra ágora (onde se dava a grande assembleia na democracia grega), que seja de fato aberta à participação de todos, em um ambiente de inclusão digital.
Essa é a aposta do cientista político Sérgio Abranches, que defende o fim dos partidos e convida a pensar: “Como eu uso toda essa tecnologia da informação para produzir decisões políticas?” Segundo ele, a revolução científica e tecnológica – que já mudou o paradigma das comunicações, do relacionamento social e de diversas áreas do conhecimento – tem tudo para revirar a política, lanterninha desse processo.
Abranches, que se descreve como “pesquisador independente sobre Ecopolítica, a relação entre o desenvolvimento econômico, o progresso social e o meio ambiente”, defende que o Brasil se arme de muito mais ousadia e aproveite as vantagens do atraso para fazer melhor aquilo que não fez. A seu ver, a nossa educação é tão atrasada, que podíamos jogar tudo fora e começar a partir do que é realmente novo.
Para uma efetiva modernização da sociedade, a tecnologia entra com os instrumentos, e o resto é com a gente.
Há um entendimento geral de que esta campanha eleitoral é uma das mais chochas dos últimos tempos. Que avaliação o senhor faz da qualidade do debate político na sociedade neste momento? Vinte e seis anos depois das Diretas Já, quão distante se tornou a campanha eleitoral da vida das pessoas? O ambiente de conversa política no Brasil hoje é de descrédito e desencanto. Por outro lado, há outro ambiente de endeusamento e quase santificação do presidente da República por uma parcela da população. Isso despolitiza, pois ou a pessoa está encantada, ou está desencantada. Não está em uma posição realista, então não consegue ver os erros enormes que o presidente comete e nem os bons políticos que existem. Esse é um ambiente no qual não há profundidade de debate. Nem muita clareza sobre quais são as questões principais. Então vivemos hoje um dos piores momentos para a democracia brasileira desde as Diretas Já, até mesmo porque há uma frustração crescente com o sonho democrático. Na época em que eu dava aula de Ciência Política, quem ia estudar queria ser cientista político etc., tinha uma visão da democracia como um lugar em que você chega e tudo se resolve. A gente construiu essa ideia no Brasil. Que um dia seremos democráticos e nesse dia vai acabar a pobreza, a favela, a corrupção, porque a democracia é boa em si. E não é isso, é um processo penoso. É muito mais difícil fazer uma democracia do que uma ditadura. Para uma ditadura, você precisa de um milico, alguns tanques e uma população relativamente desmobilizada, ou então um grupo grande de milicos dispostos a bater ou a matar se houver resistência. Difícil é fazer uma democracia: primeiro, criar qualidade de governança; segundo, criar lideranças legítimas e escapar a esses processos populistas e carismáticos.
Existe uma frustração por que estamos no estágio inicial desse processo? Porque esse processo não produziu a quantidade de bem-estar imediata que as pessoas queriam, nem tudo o que elas queriam. Algumas queriam que a democracia levasse direto ao socialismo; outras, a uma economia de mercado perfeita; outras, a uma sociedade sem pobreza e violência; outras, que a democracia as levasse para a classe média. E está levando muito tempo para chegar: uma parte da construção da nossa democracia foi feita em um momento extraordinariamente complicado, de hiperinflação, no qual se frustram todas as possibilidades. Quando acabou a inflação, uma parte da população conseguiu ir para a classe média. Isso é um lado bom do atual ambiente. Só existe democracia sólida onde a classe média é dominante. Porque ela tem duas virtudes democráticas. A primeira é que ela não é pobre, não depende do governo para coisas básicas, tem capacidade de se sustentar. A segunda é que, como se sustenta do salário, precisa de previsibilidade, de qualidade de governo, o imposto não pode ser muito alto, a escola tem de ser boa para os filhos, porque só se consegue ter rendimento com boa qualificação. Ela demanda boas coisas da sociedade e do governo. Então, o debate hoje é quase todo ele alienado. De um lado, tem focos ideológicos que não pensam com a razão, e, de outro, uma maioria despolitizada e desinteressada.
Até mesmo os jovens. Sobretudo os jovens. Eu converso muito com o jovem. Eu tenho por alguma razão uma capacidade de atração, tanto no Twitter que eu faço, como no blog. Quando eu escrevia para a Veja, tinha muitos estudantes que me liam. Sempre que vou fazer palestra para estudantes, tem um momento que se repete. Chega um jovem para mim e diz: “Pô, mas a sua geração teve todas as causas, pra lutar, a minha não tem nenhuma causa”. Eu digo: “Caramba, a sua tem muito mais que a minha! A minha só tinha algumas coisas pra fazer”.
Esta geração tem a causa da sustentabilidade, para começo de conversa… Pois é, tem a causa climática, tem um problema de degradação generalizada das instituições educacionais no mundo inteiro, que não são mais compatíveis com as mudanças que o mundo está sofrendo. Tem a causa da integração social – o século XX foi o século das guerras étnicas, o Brasil é um país racista, os EUA continuam tendo barreira racista –, a situação da mulher está longe de ser resolvida, e não só nos países islâmicos.
E o jovem não enxerga essas causas todas? Eu já encontrei meninas que acham que o feminismo já resolveu os problemas. Encontro muita gente que diz que no Brasil não tem racismo. Gente que diz que a questão climática é muito importante, mas acha que a tecnologia vai acabar resolvendo. Uma ideia deus ex machina. Mas nem todo mundo é assim, o crescimento do movimento social e do voluntariado no Brasil é muito auspicioso, porque mostra que tem uma parcela da juventude se associando a uma parte de pessoas mais maduras – as ONGs têm todas as faixas de idade – mobilizadas para resolver problemas. Isso para enfrentar temas específicos. Aí falta fazer as conexões, politizar da maneira correta. As pessoas acham que politizar é partidarizar ou ideologizar, e não é.
O que é exatamente isso que chamamos de “politizar”? Politizar é transformar numa questão pública, de ação coletiva. Quando você politiza, você socializa. Diz o seguinte: não é o problema de uma pessoa, de um partido, de uma liderança, e, sim, da sociedade. Então vou constituir lideranças que entendam como tal e não que queiram apropriar-se disso e depois dizer que me deu alguma coisa. Não me deram nada, nem a ninguém no Brasil. Foi tudo conquistado. Essa confusão que se está fazendo no Brasil de novo, o retorno do populismo, é uma coisa complicada. Politizar é coletivizar e saber que tem interesses em jogo, ou seja, saber que toda política é uma ação de interesses – que podem até ser gerais, bons, mas a maior parte da ação política é uma ação egoísta. Se eu faço, demando um benefício que é pra mim. Se esse benefício é coletivizado, ótimo, mas quero pra mim. Tem de ter noção de que a política é um confronto de interesses. O movimento social é a grande esperança da repolitização adequada do Brasil, mas é muito fragmentado, não faz as conexões, compete com ele mesmo e se enfraquece diante do adversário.
Já temos oito anos de um governo Lula e a possibilidade bem real de mais quatro com Dilma (Rousseff), ou seja, poderão ser 12 anos seguidos com muitos integrantes oriundos dos movimentos sociais participando da máquina do governo. Isso seria uma das causas da perda de qualidade do debate? Isso é muito ruim, porque o movimento social, diferentemente do partido político, não é feito para ir para o governo. É feito para dar a voz à sociedade. Quando vai para o governo ou se atrela a ele, esse processo de cooptação desvirtua o movimento. Ele passa a ser mais parcial do que era no passado, quando era só movimento social, então perde inclusive a capacidade de diálogo coletivo, de influência democrática, ele começa a ficar intolerante com a diversidade de opiniões. E a riqueza do movimento social é exatamente a diversidade, por isso é que ele é criativo.
Há quem argumente que essa é uma forma de modificar o governo por dentro, de fazer as causas se tornarem mais executáveis. É claro que faz parte da vida de um movimento social a ideia de ir se institucionalizando. O caminho mais velho, na minha opinião, é se institucionalizar como partido político. Acho que partido político é um dos males da política atual. Penso o contrário dos meus colegas cientistas políticos: eles acham que é preciso fortalecer os partidos, eu acho que tem que acabar com eles. Porque é uma velha tecnologia institucional para um tipo de política que não tem mais cabimento, a da representação estreita. Com a tecnologia de interação, com a riqueza de interatividade que tenho hoje com a circulação de informações, não preciso de partido para agregar meus interesses. Não preciso de um partido para dizer qual é o programa que devo seguir. Partido hoje é uma camisa de força, é fonte de corrupção e de cooptação.
Mas o que entraria no lugar dos partidos? A gente tem que mudar essa ideia de representação. Temos de fazer uma síntese tecnológica, um retorno tecnológico à democracia grega. No caso da Grécia, era uma democracia elitista, só os cidadãos homens participavam da Ágora, da grande assembleia – as mulheres ficavam em casa cuidando da religião e da economia, e os estrangeiros, os metecos, cuidavam do comércio. Enquanto isso, os cidadãos “branquinhos” da Grécia ficavam deliberando sobre as questões de guerra, paz etc. Mas, com o crescimento demográfico, isso começou a ficar impossível para até mesmo os cidadãos homens e nativos participarem, e se criou a ideia da representação. Agora, a tecnologia nos permite fazer a Ágora eletrônica com a participação de todos. O que precisamos aprender é como essa tecnologia que já está produzindo um diálogo muito mais democrático no Twitter, muito mais criativo, criando comunidades muito mais orgânicas no Facebook do que em qualquer partido, como eu politizo isso? Como uso essa tecnologia para produzir decisões políticas?
Mesmo com a exclusão digital no Brasil? A exclusão digital se resolve com facilidade, a exclusão digital é resultado da existência de partidos, da existência de governos que acham que têm de dar coisas. O que precisamos é revolucionar a política, da mesma maneira que estamos revolucionando o nosso relacionamento social, a maneira como produzimos coisas, a maneira como nos comunicamos! Estamos passando por uma transformação científica e tecnológica que está mudando o paradigma de tudo, da medicina, do jornalismo, da ciência social, das comunicações, da logística, tudo. Menos da política! Você pega um político no Twitter e é a coisa mais, com o perdão da expressão, babaca que tem no Twitter. São pouquíssimos os que sabem usar aquilo, porque não estão acostumados a dialogar.
Como é “saber usar o Twitter”? Primeiro, usar sabendo onde você tá, conhecendo o meio. Não poder ser um twitteiro eventual, que aparece lá na campanha, dá uns pitocos, depois sai. Tem que ser um twitteiro que faz política. Segundo, tem que estar ciente dos trending topics. Do que tá rolando, do que tá bombando, e ter alguma coisa para dizer à maioria daquela população que está lá discutindo essas coisas. Terceiro, você tem que interagir e ser autêntico, quer dizer, não adianta mandar seu assessor de imprensa fazer twittinhos muito bonitinhos de 140 caracteres que você lê e diz: “Putz, maior artificialismo, hein?”
Ou seja, abre espaço para o político que seja verdadeiro, autêntico? (Mais na reportagem “Para ser bem amado”, desta edição) Esse tipo de comunicação exige que você seja espontâneo e verdadeiro. Claro que tem falsidades, homem que passa por mulher e vice-versa, mas essa é a parte banal da história. A parte fundamental é a das pessoas que estão ali. E é preciso levar em consideração o seguinte: não adianta saber se tenho mil ou cem mil seguidores, essa disputa narcisista pelo número de seguidores já desapareceu. Todos estão te seguindo, porque você aparece na timeline de todo mundo. As pessoas se interessam por você se você tiver algo interessante a dizer a elas. O Twitter não é diferente da sociedade, ele também tem uma maioria silenciosa. Setenta por cento dos twitteiros não twittam, eles ficam ali prestando atenção no que você está falando, absorvendo informação. Isso é igualzinho ao processo social. Tem uma minoria ativa, que participa, que debate, que faz tudo, e uma maioria passiva, silenciosa, que presta atenção e tem um poder danado, é ela que compra, que vota, ela é a maioria. Os ativos sempre foram e sempre serão a minoria. Como é que se atinge essa maioria silenciosa? Tem que ter algo a dizer; então acho que o conteúdo de informação que um político precisará no futuro para convencer um eleitor será muito maior por causa disso, porque esse eleitor estará treinado numa conversa na rede social que é completamente diferente da conversa que ele tem com o político. Isso é parte desse processo revolucionário pelo qual estamos passando. Estamos discutindo uma política que já morreu. E para não dizerem que não presto atenção às coisas que desmentem as minhas hipóteses, hoje (18 de agosto), no debate promovido pelo UOL, na rede social, na internet, ele foi trending topic número 1 durante um momento no mundo inteiro, e no Brasil nem se fala. A comunidade digitalizada estava completamente interessada no debate político.
Quer dizer, tem uma política viva no meio digital. Tem uma coisa para captar aí, sim. Eu assisti ao debate e vi que os candidatos são analógicos, mas os ouvintes eram digitais. Há um descolamento. Todos eles, na hora do debate, falam um pro outro. E não para a audiência, é como se ela realmente fosse um público espectador. Eles não têm a noção da interatividade.
Nestas eleições, previa-se que a entrada de uma candidata como Marina Silva apimentaria a campanha ao colocar em pauta questões inovadoras, provocativas, e que ampliariam as discussões sobre velhos modelos de desenvolvimento. Por que, até agora, isso parece não ter emplacado? Por três razões principais. Primeiro, porque tem uma regra hoje que chamo de anti-Collor, que conspira contra a emergência de uma nova liderança nas disputas presidenciais, regra pela qual se passou a dar na televisão um tempo proporcional à bancada que foi eleita na eleição anterior. Isso transforma as lideranças em lideranças velhas, é uma regra que faz olhar pelo retrovisor. Então, se nesse espaço de oito anos surgiram novas lideranças que não estão incorporadas a essas velhas estruturas partidárias, e nem querem se incorporar porque estas são viciadas, a regra não permite que essa personalidade aflore.
Mas a campanha na televisão começou ontem (17 de agosto)… Pois é, mas antes você tem problema de acesso por causa de dinheiro, e as regras para entrevistas acabam sendo similares. A Marina só teve chance de aparecer nas entrevistas. A segunda razão é que a estrutura da campanha no Brasil é muito amarrada. Então a campanha foi antecipada pelo Lula, que feriu todas as regras, foi multado e não se importou, aí o PSDB começou a reagir, mas o (José) Serra demorou a entrar, porque estava naquela questão de decidir o vice, com Aécio e tal. E, quando entrou, também começou a usar os recursos para se antecipar na campanha. E a Marina não tem muito recurso para fazer isso. Então, na pré-campanha havia uma certa desigualdade e, na campanha, tem uma desigualdade clara, por causa da distribuição do tempo. Se no começo do ano eleitoral todo mundo que fosse candidato pudesse fazer campanha, seria ótimo, democrático, cada um vai à luta, procura chamar a atenção dos repórteres, produz fatos, eventos. A terceira razão é que a internet aparentemente não teve nesta eleição o efeito que terá no futuro e que teve na eleição do (Barack) Obama e, antes, na eleição do Tony Blair, na Inglaterra. Porque era a única chance de Marina de romper com a regra do tempo desigual. Hoje há cerca de 70 milhões de brasileiros plugados e, se imaginarmos que cada brasileiro “digital” – vamos chamar assim – tenha dois amigos, ou parentes, ou colegas de trabalho com os quais conversa sobre o que vê no mundo digital, você tem aí quase todo o eleitorado brasileiro coberto. A influência da internet não tem mais a ver com o fato de que tem menos gente plugada do que temos eleitores. E a decisão de votar se faz muito no ambiente de trabalho, no ambiente de escola e no ambiente familiar.
Mas tem uma exclusão muito grande, se a gente pegar o interior do Nordeste, do Norte, não é? Essas são áreas muito rarefeitas do ponto de vista eleitoral. O eleitorado urbano brasileiro… se você pegar os colégios eleitorais no Sul, mais Rio, Minas, e São Paulo, no Sudeste, mais Bahia, Goiás, Pará, a maioria do eleitorado taí. Então, a internet não teve o efeito que provavelmente terá na próxima eleição (2014). Por outro lado, a Marina não conseguiu um discurso diferenciador que rompesse com essa polarização Serra-Dilma.
Sim, até agora a gente falou de formatos, de mídias. Mas, em relação a conteúdo mesmo, sobre o que ela pensa, por que isso ainda não emplacou? Não tem conteúdo, o que estamos vendo aqui é um Fla-Flu, um Corinthians vs. Palmeiras! Isso aqui é uma velha rivalidade que se está reproduzindo no cenário eleitoral. Ninguém tá olhando para questões substantivas, para o futuro do Brasil, para a discussão programática. Aí você chega lá com um Botafoguinho, com um programa diferente, querendo discutir ideias. Vão te dizer: “Tudo bem, pode discutir ideias, mas nós vamos ficar aqui com a rivalidade, porque ela é que dá Ibope”. Enquanto não tiver um processo de mobilização que permita romper com isso, chegar ao eleitor de outra forma, esvaziar o estádio e chamar o povo pra rua, vai continuar sendo uma briga de estádio. Agora, a Marina teve influência, porque está de qualquer forma forçando o Serra e a Dilma a entrar em temas que eles provavelmente não entrariam olhando as pesquisas.
Será que está mesmo? Parece que os outros estão ignorando a temática da sustentabilidade. De vez em quando ela suscita neles a necessidade de dizerem alguma coisa a respeito de mudança climática etc. Tem outra questão: a mídia carimbou a Marina como candidata de uma nota só, e acho que ela não conseguiu sair da defesa muito abstrata do fato de que o ambientalismo não é mais uma questão de facção, ou de um setor do governo, ou de um setor da sociedade. Com a ameaça da mudança climática ao abastecimento de água, à produção de alimentos, ela passou a ser o centro de informação de qualquer decisão governamental. Os impactos já estão acontecendo e estão associados à melhoria da qualidade de vida, e à saúde das empresas.
Sim, mas tenho a impressão de que isso não transparece quando ela vai a público, falta uma ligação entre o meio ambiente e tudo isso que é muito real, como comida, enchente etc. É, eu acho a campanha da Marina muito intelectualizada. Talvez essa seja uma tentativa para não cair no populismo.
Mas entre o intelectualismo e o populismo tem um caminho do meio que é o popular, certo? Claro, é preciso explicar para as pessoas que, em um governo sem essa preocupação, elas estão ameaçadas de perder o próprio bem-estar, o emprego, a renda, e tudo o mais.
A Página22 defende um modelo econômico alinhado com a sustentabilidade e, mesmo assim, faz questão de perguntar: como se pode garantir que as demandas sociais de curto prazo serão atendidas a contento no novo modelo de desenvolvimento proposto, que nunca foi testado em escala nacional? Um modelo que exige altas doses de inovação, investimento em pesquisa & desenvolvimento e até mesmo um novo arcabouço macroeconômico, que tenha outros indicadores de riqueza em substituição ao PIB? Essa é uma pergunta boa, mas tem resposta. Para alguns países, fazer a transição para uma economia de baixo carbono é um sacrifício, porque eles têm um problema numa escala tal e com uma oferta de recursos sustentáveis mais complicada. É o caso da Índia, da China, que já destruíram parte considerável da água que tinham, que têm matriz energética muito baseada em carvão. Para eles, é muito difícil substituir rapidamente as termoelétricas a carvão, por exemplo, por fontes que não sejam usinas nucleares, em termos de escala. As escolhas ficam complicadas, porque as usinas nucleares são muito caras para um país como a Índia e é uma tecnologia sobre a qual não terão domínio.
O caso do Brasil é completamente diferente, porque é o único grande país emergente que pode fazer uma transição indolor e altamente competitiva para a economia de baixo carbono. O governo Lula a sujou bastante com carvão, mas a nossa matriz energética é relativamente limpa; temos muita biodiversidade que pode dar base a uma bioindústria bastante complexa em cada um dos biomas; e essas coisas geram emprego, mas implicam um investimento em ciência e tecnologia no qual estamos atrasados, mais que a Índia e a China. O Brasil teria que parar de tentar fazer a mesma educação e fazer uma revolução educacional. O Brasil está precisando de mais ousadia, virou um país muito mais do mesmo.
Não teria que resolver primeiro esse problema da educação? Mas essas coisas você pode fazer simultaneamente. A gente dominou algumas tecnologias que nos dão aí 10, 15 anos de possibilidade. O etanol brasileiro, embora tenha muito problema, trabalho escravo etc., já mudou bastante, e chamar o empresário à responsabilidade não é difícil. Mais o fato de que zerar o desmatamento já reduz fortemente nossas emissões. Essa preocupação (da pergunta) é correta, mas o Brasil pode fazer. A ideia de que a economia verde significa decrescer, ou parar de crescer, está errada. Agora, vou criar empregos verdes na mesma velocidade que destruo os fósseis e permitir que estes empregados transitem para o verde com a rapidez necessária para não ficarem muito tempo desempregados? Isso varia de país para país. Os EUA passaram por uma grande revolução na economia na virada dos anos 80. Destruíram algo como 75 milhões de postos de trabalho e criaram quase 100 milhões de postos novos. Durante três ou quatro anos, a taxa de desemprego foi muito alta, mas, depois que terminou esse processo, mais da metade dos postos de trabalho nos EUA tornaram-se um tipo de emprego que não existia antes.
Então tem um período de sacrifício? Depende da economia. No caso da brasileira, o emprego fóssil dominante está em áreas muito decadentes, que não estão gerando mais emprego, ou geram um emprego de cada vez mais baixa qualidade. Por exemplo, o transporte rodoviário: os caminhoneiros não dormem, recebem um pagamento ridículo por carga transportada que não lhes permite nem sobreviver direito nem fazer a manutenção de seus caminhões, e há muito acidentes por causa disso. Motoristas de ônibus ficam em pé para não dormir. Eu posso pegar esse motorista de ônibus a diesel, com todos os problemas que esse ônibus tem – perto do motor, a cabine é muito quente –, e colocá-lo em um ônibus elétrico, onde ele terá mais qualidade de vida, mas terá de ser retreinado. No caso do Brasil, a construção da economia verde vai gerar emprego provavelmente na mesma proporção que excluirá emprego fóssil. A defasagem de tempo será muito pequena, se houver.
Tem algum estudo que indica isso? Tem muito pouca gente estudando o emprego verde, porque ele é uma novidade, parte dele depende de mudanças tecnológicas que ainda estão no pipeline. Nós estamos nos movendo para uma economia de outro tipo de emprego. E esse novo tipo de emprego implica dois novos tipos de qualificação. O empregado precisa se atualizar para trabalhar nas novas tecnologias, e ele tem de ser treinado também para aprender um ofício novo rapidamente. E isso você começa a aprender lá na escola fundamental. Então temos de mudar toda a estrutura educacional. Alexander Gerschenkron (historiador e economista russo) escreveu um livro bastante interessante muitos anos atrás que falava sobre “as vantagens do atraso”. O livro evidentemente está obsoleto, mas a frase é cada vez mais atual. Ou seja, já que não fez, faz tudo revolucionário, não repete os erros do passado. O Brasil tem muita vantagem no atraso. A nossa educação é tão atrasada, que a gente podia jogar tudo fora e virá-la de ponta-cabeça. Partir realmente do novo e não tentar fazer a estrutura de modernidade que já é decadente lá nos EUA. O Brasil tem uma visão completamente ultrapassada de si mesmo e do que será o século XXI. Se fizermos um excelente país do século XX, seremos o país mais atrasado do século XXI.[:en]Embora nesta eleição o seu espectro ainda domine o espaço de debate, a velha política como a concebemos já era, e com ela suas antigas formas de representatividade e de participação. Pela teia eletrônica, uma nova forma de interação, de diálogo e de arregimentação está apta a constituir daqui para a frente uma outra ágora (onde se dava a grande assembleia na democracia grega), que seja de fato aberta à participação de todos, em um ambiente de inclusão digital.
Essa é a aposta do cientista político Sérgio Abranches, que defende o fim dos partidos e convida a pensar: “Como eu uso toda essa tecnologia da informação para produzir decisões políticas?” Segundo ele, a revolução científica e tecnológica – que já mudou o paradigma das comunicações, do relacionamento social e de diversas áreas do conhecimento – tem tudo para revirar a política, lanterninha desse processo.
Abranches, que se descreve como “pesquisador independente sobre Ecopolítica, a relação entre o desenvolvimento econômico, o progresso social e o meio ambiente”, defende que o Brasil se arme de muito mais ousadia e aproveite as vantagens do atraso para fazer melhor aquilo que não fez. A seu ver, a nossa educação é tão atrasada, que podíamos jogar tudo fora e começar a partir do que é realmente novo.
Para uma efetiva modernização da sociedade, a tecnologia entra com os instrumentos, e o resto é com a gente.
Há um entendimento geral de que esta campanha eleitoral é uma das mais chochas dos últimos tempos. Que avaliação o senhor faz da qualidade do debate político na sociedade neste momento? Vinte e seis anos depois das Diretas Já, quão distante se tornou a campanha eleitoral da vida das pessoas? O ambiente de conversa política no Brasil hoje é de descrédito e desencanto. Por outro lado, há outro ambiente de endeusamento e quase santificação do presidente da República por uma parcela da população. Isso despolitiza, pois ou a pessoa está encantada, ou está desencantada. Não está em uma posição realista, então não consegue ver os erros enormes que o presidente comete e nem os bons políticos que existem. Esse é um ambiente no qual não há profundidade de debate. Nem muita clareza sobre quais são as questões principais. Então vivemos hoje um dos piores momentos para a democracia brasileira desde as Diretas Já, até mesmo porque há uma frustração crescente com o sonho democrático. Na época em que eu dava aula de Ciência Política, quem ia estudar queria ser cientista político etc., tinha uma visão da democracia como um lugar em que você chega e tudo se resolve. A gente construiu essa ideia no Brasil. Que um dia seremos democráticos e nesse dia vai acabar a pobreza, a favela, a corrupção, porque a democracia é boa em si. E não é isso, é um processo penoso. É muito mais difícil fazer uma democracia do que uma ditadura. Para uma ditadura, você precisa de um milico, alguns tanques e uma população relativamente desmobilizada, ou então um grupo grande de milicos dispostos a bater ou a matar se houver resistência. Difícil é fazer uma democracia: primeiro, criar qualidade de governança; segundo, criar lideranças legítimas e escapar a esses processos populistas e carismáticos.
Existe uma frustração por que estamos no estágio inicial desse processo? Porque esse processo não produziu a quantidade de bem-estar imediata que as pessoas queriam, nem tudo o que elas queriam. Algumas queriam que a democracia levasse direto ao socialismo; outras, a uma economia de mercado perfeita; outras, a uma sociedade sem pobreza e violência; outras, que a democracia as levasse para a classe média. E está levando muito tempo para chegar: uma parte da construção da nossa democracia foi feita em um momento extraordinariamente complicado, de hiperinflação, no qual se frustram todas as possibilidades. Quando acabou a inflação, uma parte da população conseguiu ir para a classe média. Isso é um lado bom do atual ambiente. Só existe democracia sólida onde a classe média é dominante. Porque ela tem duas virtudes democráticas. A primeira é que ela não é pobre, não depende do governo para coisas básicas, tem capacidade de se sustentar. A segunda é que, como se sustenta do salário, precisa de previsibilidade, de qualidade de governo, o imposto não pode ser muito alto, a escola tem de ser boa para os filhos, porque só se consegue ter rendimento com boa qualificação. Ela demanda boas coisas da sociedade e do governo. Então, o debate hoje é quase todo ele alienado. De um lado, tem focos ideológicos que não pensam com a razão, e, de outro, uma maioria despolitizada e desinteressada.
Até mesmo os jovens. Sobretudo os jovens. Eu converso muito com o jovem. Eu tenho por alguma razão uma capacidade de atração, tanto no Twitter que eu faço, como no blog. Quando eu escrevia para a Veja, tinha muitos estudantes que me liam. Sempre que vou fazer palestra para estudantes, tem um momento que se repete. Chega um jovem para mim e diz: “Pô, mas a sua geração teve todas as causas, pra lutar, a minha não tem nenhuma causa”. Eu digo: “Caramba, a sua tem muito mais que a minha! A minha só tinha algumas coisas pra fazer”.
Esta geração tem a causa da sustentabilidade, para começo de conversa… Pois é, tem a causa climática, tem um problema de degradação generalizada das instituições educacionais no mundo inteiro, que não são mais compatíveis com as mudanças que o mundo está sofrendo. Tem a causa da integração social – o século XX foi o século das guerras étnicas, o Brasil é um país racista, os EUA continuam tendo barreira racista –, a situação da mulher está longe de ser resolvida, e não só nos países islâmicos.
E o jovem não enxerga essas causas todas? Eu já encontrei meninas que acham que o feminismo já resolveu os problemas. Encontro muita gente que diz que no Brasil não tem racismo. Gente que diz que a questão climática é muito importante, mas acha que a tecnologia vai acabar resolvendo. Uma ideia deus ex machina. Mas nem todo mundo é assim, o crescimento do movimento social e do voluntariado no Brasil é muito auspicioso, porque mostra que tem uma parcela da juventude se associando a uma parte de pessoas mais maduras – as ONGs têm todas as faixas de idade – mobilizadas para resolver problemas. Isso para enfrentar temas específicos. Aí falta fazer as conexões, politizar da maneira correta. As pessoas acham que politizar é partidarizar ou ideologizar, e não é.
O que é exatamente isso que chamamos de “politizar”? Politizar é transformar numa questão pública, de ação coletiva. Quando você politiza, você socializa. Diz o seguinte: não é o problema de uma pessoa, de um partido, de uma liderança, e, sim, da sociedade. Então vou constituir lideranças que entendam como tal e não que queiram apropriar-se disso e depois dizer que me deu alguma coisa. Não me deram nada, nem a ninguém no Brasil. Foi tudo conquistado. Essa confusão que se está fazendo no Brasil de novo, o retorno do populismo, é uma coisa complicada. Politizar é coletivizar e saber que tem interesses em jogo, ou seja, saber que toda política é uma ação de interesses – que podem até ser gerais, bons, mas a maior parte da ação política é uma ação egoísta. Se eu faço, demando um benefício que é pra mim. Se esse benefício é coletivizado, ótimo, mas quero pra mim. Tem de ter noção de que a política é um confronto de interesses. O movimento social é a grande esperança da repolitização adequada do Brasil, mas é muito fragmentado, não faz as conexões, compete com ele mesmo e se enfraquece diante do adversário.
Já temos oito anos de um governo Lula e a possibilidade bem real de mais quatro com Dilma (Rousseff), ou seja, poderão ser 12 anos seguidos com muitos integrantes oriundos dos movimentos sociais participando da máquina do governo. Isso seria uma das causas da perda de qualidade do debate? Isso é muito ruim, porque o movimento social, diferentemente do partido político, não é feito para ir para o governo. É feito para dar a voz à sociedade. Quando vai para o governo ou se atrela a ele, esse processo de cooptação desvirtua o movimento. Ele passa a ser mais parcial do que era no passado, quando era só movimento social, então perde inclusive a capacidade de diálogo coletivo, de influência democrática, ele começa a ficar intolerante com a diversidade de opiniões. E a riqueza do movimento social é exatamente a diversidade, por isso é que ele é criativo.
Há quem argumente que essa é uma forma de modificar o governo por dentro, de fazer as causas se tornarem mais executáveis. É claro que faz parte da vida de um movimento social a ideia de ir se institucionalizando. O caminho mais velho, na minha opinião, é se institucionalizar como partido político. Acho que partido político é um dos males da política atual. Penso o contrário dos meus colegas cientistas políticos: eles acham que é preciso fortalecer os partidos, eu acho que tem que acabar com eles. Porque é uma velha tecnologia institucional para um tipo de política que não tem mais cabimento, a da representação estreita. Com a tecnologia de interação, com a riqueza de interatividade que tenho hoje com a circulação de informações, não preciso de partido para agregar meus interesses. Não preciso de um partido para dizer qual é o programa que devo seguir. Partido hoje é uma camisa de força, é fonte de corrupção e de cooptação.
Mas o que entraria no lugar dos partidos? A gente tem que mudar essa ideia de representação. Temos de fazer uma síntese tecnológica, um retorno tecnológico à democracia grega. No caso da Grécia, era uma democracia elitista, só os cidadãos homens participavam da Ágora, da grande assembleia – as mulheres ficavam em casa cuidando da religião e da economia, e os estrangeiros, os metecos, cuidavam do comércio. Enquanto isso, os cidadãos “branquinhos” da Grécia ficavam deliberando sobre as questões de guerra, paz etc. Mas, com o crescimento demográfico, isso começou a ficar impossível para até mesmo os cidadãos homens e nativos participarem, e se criou a ideia da representação. Agora, a tecnologia nos permite fazer a Ágora eletrônica com a participação de todos. O que precisamos aprender é como essa tecnologia que já está produzindo um diálogo muito mais democrático no Twitter, muito mais criativo, criando comunidades muito mais orgânicas no Facebook do que em qualquer partido, como eu politizo isso? Como uso essa tecnologia para produzir decisões políticas?
Mesmo com a exclusão digital no Brasil? A exclusão digital se resolve com facilidade, a exclusão digital é resultado da existência de partidos, da existência de governos que acham que têm de dar coisas. O que precisamos é revolucionar a política, da mesma maneira que estamos revolucionando o nosso relacionamento social, a maneira como produzimos coisas, a maneira como nos comunicamos! Estamos passando por uma transformação científica e tecnológica que está mudando o paradigma de tudo, da medicina, do jornalismo, da ciência social, das comunicações, da logística, tudo. Menos da política! Você pega um político no Twitter e é a coisa mais, com o perdão da expressão, babaca que tem no Twitter. São pouquíssimos os que sabem usar aquilo, porque não estão acostumados a dialogar.
Como é “saber usar o Twitter”? Primeiro, usar sabendo onde você tá, conhecendo o meio. Não poder ser um twitteiro eventual, que aparece lá na campanha, dá uns pitocos, depois sai. Tem que ser um twitteiro que faz política. Segundo, tem que estar ciente dos trending topics. Do que tá rolando, do que tá bombando, e ter alguma coisa para dizer à maioria daquela população que está lá discutindo essas coisas. Terceiro, você tem que interagir e ser autêntico, quer dizer, não adianta mandar seu assessor de imprensa fazer twittinhos muito bonitinhos de 140 caracteres que você lê e diz: “Putz, maior artificialismo, hein?”
Ou seja, abre espaço para o político que seja verdadeiro, autêntico? (Mais na reportagem “Para ser bem amado”, desta edição) Esse tipo de comunicação exige que você seja espontâneo e verdadeiro. Claro que tem falsidades, homem que passa por mulher e vice-versa, mas essa é a parte banal da história. A parte fundamental é a das pessoas que estão ali. E é preciso levar em consideração o seguinte: não adianta saber se tenho mil ou cem mil seguidores, essa disputa narcisista pelo número de seguidores já desapareceu. Todos estão te seguindo, porque você aparece na timeline de todo mundo. As pessoas se interessam por você se você tiver algo interessante a dizer a elas. O Twitter não é diferente da sociedade, ele também tem uma maioria silenciosa. Setenta por cento dos twitteiros não twittam, eles ficam ali prestando atenção no que você está falando, absorvendo informação. Isso é igualzinho ao processo social. Tem uma minoria ativa, que participa, que debate, que faz tudo, e uma maioria passiva, silenciosa, que presta atenção e tem um poder danado, é ela que compra, que vota, ela é a maioria. Os ativos sempre foram e sempre serão a minoria. Como é que se atinge essa maioria silenciosa? Tem que ter algo a dizer; então acho que o conteúdo de informação que um político precisará no futuro para convencer um eleitor será muito maior por causa disso, porque esse eleitor estará treinado numa conversa na rede social que é completamente diferente da conversa que ele tem com o político. Isso é parte desse processo revolucionário pelo qual estamos passando. Estamos discutindo uma política que já morreu. E para não dizerem que não presto atenção às coisas que desmentem as minhas hipóteses, hoje (18 de agosto), no debate promovido pelo UOL, na rede social, na internet, ele foi trending topic número 1 durante um momento no mundo inteiro, e no Brasil nem se fala. A comunidade digitalizada estava completamente interessada no debate político.
Quer dizer, tem uma política viva no meio digital. Tem uma coisa para captar aí, sim. Eu assisti ao debate e vi que os candidatos são analógicos, mas os ouvintes eram digitais. Há um descolamento. Todos eles, na hora do debate, falam um pro outro. E não para a audiência, é como se ela realmente fosse um público espectador. Eles não têm a noção da interatividade.
Nestas eleições, previa-se que a entrada de uma candidata como Marina Silva apimentaria a campanha ao colocar em pauta questões inovadoras, provocativas, e que ampliariam as discussões sobre velhos modelos de desenvolvimento. Por que, até agora, isso parece não ter emplacado? Por três razões principais. Primeiro, porque tem uma regra hoje que chamo de anti-Collor, que conspira contra a emergência de uma nova liderança nas disputas presidenciais, regra pela qual se passou a dar na televisão um tempo proporcional à bancada que foi eleita na eleição anterior. Isso transforma as lideranças em lideranças velhas, é uma regra que faz olhar pelo retrovisor. Então, se nesse espaço de oito anos surgiram novas lideranças que não estão incorporadas a essas velhas estruturas partidárias, e nem querem se incorporar porque estas são viciadas, a regra não permite que essa personalidade aflore.
Mas a campanha na televisão começou ontem (17 de agosto)… Pois é, mas antes você tem problema de acesso por causa de dinheiro, e as regras para entrevistas acabam sendo similares. A Marina só teve chance de aparecer nas entrevistas. A segunda razão é que a estrutura da campanha no Brasil é muito amarrada. Então a campanha foi antecipada pelo Lula, que feriu todas as regras, foi multado e não se importou, aí o PSDB começou a reagir, mas o (José) Serra demorou a entrar, porque estava naquela questão de decidir o vice, com Aécio e tal. E, quando entrou, também começou a usar os recursos para se antecipar na campanha. E a Marina não tem muito recurso para fazer isso. Então, na pré-campanha havia uma certa desigualdade e, na campanha, tem uma desigualdade clara, por causa da distribuição do tempo. Se no começo do ano eleitoral todo mundo que fosse candidato pudesse fazer campanha, seria ótimo, democrático, cada um vai à luta, procura chamar a atenção dos repórteres, produz fatos, eventos. A terceira razão é que a internet aparentemente não teve nesta eleição o efeito que terá no futuro e que teve na eleição do (Barack) Obama e, antes, na eleição do Tony Blair, na Inglaterra. Porque era a única chance de Marina de romper com a regra do tempo desigual. Hoje há cerca de 70 milhões de brasileiros plugados e, se imaginarmos que cada brasileiro “digital” – vamos chamar assim – tenha dois amigos, ou parentes, ou colegas de trabalho com os quais conversa sobre o que vê no mundo digital, você tem aí quase todo o eleitorado brasileiro coberto. A influência da internet não tem mais a ver com o fato de que tem menos gente plugada do que temos eleitores. E a decisão de votar se faz muito no ambiente de trabalho, no ambiente de escola e no ambiente familiar.
Mas tem uma exclusão muito grande, se a gente pegar o interior do Nordeste, do Norte, não é? Essas são áreas muito rarefeitas do ponto de vista eleitoral. O eleitorado urbano brasileiro… se você pegar os colégios eleitorais no Sul, mais Rio, Minas, e São Paulo, no Sudeste, mais Bahia, Goiás, Pará, a maioria do eleitorado taí. Então, a internet não teve o efeito que provavelmente terá na próxima eleição (2014). Por outro lado, a Marina não conseguiu um discurso diferenciador que rompesse com essa polarização Serra-Dilma.
Sim, até agora a gente falou de formatos, de mídias. Mas, em relação a conteúdo mesmo, sobre o que ela pensa, por que isso ainda não emplacou? Não tem conteúdo, o que estamos vendo aqui é um Fla-Flu, um Corinthians vs. Palmeiras! Isso aqui é uma velha rivalidade que se está reproduzindo no cenário eleitoral. Ninguém tá olhando para questões substantivas, para o futuro do Brasil, para a discussão programática. Aí você chega lá com um Botafoguinho, com um programa diferente, querendo discutir ideias. Vão te dizer: “Tudo bem, pode discutir ideias, mas nós vamos ficar aqui com a rivalidade, porque ela é que dá Ibope”. Enquanto não tiver um processo de mobilização que permita romper com isso, chegar ao eleitor de outra forma, esvaziar o estádio e chamar o povo pra rua, vai continuar sendo uma briga de estádio. Agora, a Marina teve influência, porque está de qualquer forma forçando o Serra e a Dilma a entrar em temas que eles provavelmente não entrariam olhando as pesquisas.
Será que está mesmo? Parece que os outros estão ignorando a temática da sustentabilidade. De vez em quando ela suscita neles a necessidade de dizerem alguma coisa a respeito de mudança climática etc. Tem outra questão: a mídia carimbou a Marina como candidata de uma nota só, e acho que ela não conseguiu sair da defesa muito abstrata do fato de que o ambientalismo não é mais uma questão de facção, ou de um setor do governo, ou de um setor da sociedade. Com a ameaça da mudança climática ao abastecimento de água, à produção de alimentos, ela passou a ser o centro de informação de qualquer decisão governamental. Os impactos já estão acontecendo e estão associados à melhoria da qualidade de vida, e à saúde das empresas.
Sim, mas tenho a impressão de que isso não transparece quando ela vai a público, falta uma ligação entre o meio ambiente e tudo isso que é muito real, como comida, enchente etc. É, eu acho a campanha da Marina muito intelectualizada. Talvez essa seja uma tentativa para não cair no populismo.
Mas entre o intelectualismo e o populismo tem um caminho do meio que é o popular, certo? Claro, é preciso explicar para as pessoas que, em um governo sem essa preocupação, elas estão ameaçadas de perder o próprio bem-estar, o emprego, a renda, e tudo o mais.
A Página22 defende um modelo econômico alinhado com a sustentabilidade e, mesmo assim, faz questão de perguntar: como se pode garantir que as demandas sociais de curto prazo serão atendidas a contento no novo modelo de desenvolvimento proposto, que nunca foi testado em escala nacional? Um modelo que exige altas doses de inovação, investimento em pesquisa & desenvolvimento e até mesmo um novo arcabouço macroeconômico, que tenha outros indicadores de riqueza em substituição ao PIB? Essa é uma pergunta boa, mas tem resposta. Para alguns países, fazer a transição para uma economia de baixo carbono é um sacrifício, porque eles têm um problema numa escala tal e com uma oferta de recursos sustentáveis mais complicada. É o caso da Índia, da China, que já destruíram parte considerável da água que tinham, que têm matriz energética muito baseada em carvão. Para eles, é muito difícil substituir rapidamente as termoelétricas a carvão, por exemplo, por fontes que não sejam usinas nucleares, em termos de escala. As escolhas ficam complicadas, porque as usinas nucleares são muito caras para um país como a Índia e é uma tecnologia sobre a qual não terão domínio.
O caso do Brasil é completamente diferente, porque é o único grande país emergente que pode fazer uma transição indolor e altamente competitiva para a economia de baixo carbono. O governo Lula a sujou bastante com carvão, mas a nossa matriz energética é relativamente limpa; temos muita biodiversidade que pode dar base a uma bioindústria bastante complexa em cada um dos biomas; e essas coisas geram emprego, mas implicam um investimento em ciência e tecnologia no qual estamos atrasados, mais que a Índia e a China. O Brasil teria que parar de tentar fazer a mesma educação e fazer uma revolução educacional. O Brasil está precisando de mais ousadia, virou um país muito mais do mesmo.
Não teria que resolver primeiro esse problema da educação? Mas essas coisas você pode fazer simultaneamente. A gente dominou algumas tecnologias que nos dão aí 10, 15 anos de possibilidade. O etanol brasileiro, embora tenha muito problema, trabalho escravo etc., já mudou bastante, e chamar o empresário à responsabilidade não é difícil. Mais o fato de que zerar o desmatamento já reduz fortemente nossas emissões. Essa preocupação (da pergunta) é correta, mas o Brasil pode fazer. A ideia de que a economia verde significa decrescer, ou parar de crescer, está errada. Agora, vou criar empregos verdes na mesma velocidade que destruo os fósseis e permitir que estes empregados transitem para o verde com a rapidez necessária para não ficarem muito tempo desempregados? Isso varia de país para país. Os EUA passaram por uma grande revolução na economia na virada dos anos 80. Destruíram algo como 75 milhões de postos de trabalho e criaram quase 100 milhões de postos novos. Durante três ou quatro anos, a taxa de desemprego foi muito alta, mas, depois que terminou esse processo, mais da metade dos postos de trabalho nos EUA tornaram-se um tipo de emprego que não existia antes.
Então tem um período de sacrifício? Depende da economia. No caso da brasileira, o emprego fóssil dominante está em áreas muito decadentes, que não estão gerando mais emprego, ou geram um emprego de cada vez mais baixa qualidade. Por exemplo, o transporte rodoviário: os caminhoneiros não dormem, recebem um pagamento ridículo por carga transportada que não lhes permite nem sobreviver direito nem fazer a manutenção de seus caminhões, e há muito acidentes por causa disso. Motoristas de ônibus ficam em pé para não dormir. Eu posso pegar esse motorista de ônibus a diesel, com todos os problemas que esse ônibus tem – perto do motor, a cabine é muito quente –, e colocá-lo em um ônibus elétrico, onde ele terá mais qualidade de vida, mas terá de ser retreinado. No caso do Brasil, a construção da economia verde vai gerar emprego provavelmente na mesma proporção que excluirá emprego fóssil. A defasagem de tempo será muito pequena, se houver.
Tem algum estudo que indica isso? Tem muito pouca gente estudando o emprego verde, porque ele é uma novidade, parte dele depende de mudanças tecnológicas que ainda estão no pipeline. Nós estamos nos movendo para uma economia de outro tipo de emprego. E esse novo tipo de emprego implica dois novos tipos de qualificação. O empregado precisa se atualizar para trabalhar nas novas tecnologias, e ele tem de ser treinado também para aprender um ofício novo rapidamente. E isso você começa a aprender lá na escola fundamental. Então temos de mudar toda a estrutura educacional. Alexander Gerschenkron (historiador e economista russo) escreveu um livro bastante interessante muitos anos atrás que falava sobre “as vantagens do atraso”. O livro evidentemente está obsoleto, mas a frase é cada vez mais atual. Ou seja, já que não fez, faz tudo revolucionário, não repete os erros do passado. O Brasil tem muita vantagem no atraso. A nossa educação é tão atrasada, que a gente podia jogar tudo fora e virá-la de ponta-cabeça. Partir realmente do novo e não tentar fazer a estrutura de modernidade que já é decadente lá nos EUA. O Brasil tem uma visão completamente ultrapassada de si mesmo e do que será o século XXI. Se fizermos um excelente país do século XX, seremos o país mais atrasado do século XXI.