O Brasil elevou o número de matrículas, mas é preciso melhorar a capacitação, a gestão e o financiamento
Desafio maior da sustentabilidade, a garantia do bem-estar das gerações futuras envolve a soma das atividades do homem. A multiplicação de formas menos agressivas de interação com o meio ambiente e a redução das desigualdades sociais são fundamentais. A solução jamais será numericamente exata, mas mesmo diante da divisão de parcos recursos, deve envolver a igualdade. Montada dessa forma, a equação mostra claramente que o desafio está nas pessoas. A formação do capital humano é, portanto, o caminho lógico a seguir.
Durante séculos, a sociedade brasileira negligenciou o acesso à educação às camadas mais pobres, ao contrário do que fizeram países vizinhos, como a Argentina, cujo sistema de ensino é centenário. “Nós começamos para valer há 20, 30 anos”, diz Célio da Cunha, coordenador para educação da Unesco no Brasil.
A origem pode ter traços coloniais, mas as conseqüências são atualíssimas. Ler, escrever e fazer contas foi um direito subtraído de muitos, em benefício dos interesses de poucos, e os resultados podem ser vistos em praticamente qualquer cidade do País.
Os prejudicados pela conjuntura histórica hoje fazem questão de enviar os filhos à escola, mas só isso não garante o resultado final. O avanço no acesso à educação registrado nos últimos anos não veio acompanhado da evolução na qualidade do ensino básico público.
Para quem tem condições financeiras, a saída passa pela educação básica privada, garantia de poder usufruir de uma universidade pública de qualidade, bem fornida de recursos. Para quem não tem, perpetua-se a equação sem igualdade.
A solução provavelmente não está na redução dos investimentos no ensino superior – fundamentais para garantir a inovação e a competitividade da economia –, mas sim em achar o xis da questão em relação à educação básica pública.
Quebrar o círculo vicioso em vigor, apontam os especialistas, passa pela qualidade da educação – o que envolve não apenas a gestão mais eficiente do sistema como um todo, mas formas de avaliação e cobrança de performance de alunos, professores e escolas.
Estratégia para milhões
Assegurar que o futuro da educação pública no Brasil, em especial a básica, caminha para a qualidade é uma equação complicada. A começar pelas dimensões envolvidas. O sistema público de educação básica reúne 56 milhões de alunos, orientados por cerca de 2,6 milhões de professores, em aproximadamente 207 mil escolas.
A frieza dos números mostra o óbvio—uma estrutura monstruosa, dispendiosa e de difícil gestão. Mas fundamental na construção de um ativo intangível de importância estratégica para o País: a qualidade da força de trabalho de uma economia que cada vez mais precisa estar inserida no contexto global.
A melhoria na administração tem muito a contribuir para o problema, assim como o aumento na destinação de recursos – embora haja evidências de que o mal que assola a educação básica brasileira não se limita à escassez de dinheiro. Antes, contudo, convém analisar o marco regulatório que baliza a ação de professores, alunos, dirigentes, políticos e das comunidades.
O que não faltam são linhas mestras. A Lei de Diretrizes e Bases, o Plano Nacional de Educação, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), a descentralização e municipalização do ensino, o aumento de autonomia pedagógica para as escolas e os instrumentos de avaliação – criados principalmente na última década – são bem avaliados pelos especialistas da área.
Com a criação do Fundef, há 10 anos, o foco se desviou para a gestão do sistema educacional. Atualmente, a principal preocupação reside na qualidade, o que é uma boa notícia para quem se preocupa com sustentabilidade qualidade não é um assunto que se resolve com uma canetada no gabinete de algum político ou com a mudança de apenas um dos fatores da complexa equação da educação.
“O grande desafio é formular programas e projetos a partir da intersetorialidade das políticas públicas”, acredita Sandra Faria, superintendente da Fundação Abrinq. Por intersetorialidade, deve-se entender maior acesso a saneamento e saúde, com reflexo direto na freqüência dos alunos à escola.
O principal obstáculo é o baixo número de profissionais capacitados para desenvolver os projetos mencionados por Sandra. O que de certa forma, explica-se pelo histórico educacional do País. E mostra a dificuldade de quebrar o ciclo.
Crianças na escola
Apesar dos empecilhos, houve avanços no Brasil nos últimos anos, especialmente quanto ao acesso ao ensino. Atualmente, 97% das crianças entre 7 e 14 anos estão matriculadas na escola, segundo o Ministério da Educação. Trata-se de um índice excepcional diante do tamanho do País, do número de crianças nessa faixa etária e das peculiaridades regionais.
Também é uma conquista digna de nota quando se compara o desempenho nacional com outros países. Em uma faixa etária ampliada—dos 5 aos 14 anos—o Brasil tem um índice (93%) comparável ao da Coréia do Sul (93,5%), exemplo preferido de especialistas quando se fala dos benefícios do investimento em educação. O desempenho brasileiro cai ligeiramente porque na pré-escola (4 a 6 anos), apenas 64% das crianças são atendidas com serviços educacionais.
O dado da pré-escola demonstra que o problema do acesso ainda não foi totalmente solucionado, como muitas vezes faz crer uma notícia ou um candidato de plantão.
O aumento das matrículas a partir dessa faixa etária é apontado, aliás, como parte da solução para melhorar a qualidade. De acordo com o relatório do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), crianças que passaram pela préescola têm desempenho médio superior aos demais na quarta série. Enquanto os que entram mais cedo obtêm, em média, 171 pontos na quarta série na avaliação do Saeb (o mínimo seriam 200), os demais atingem média de 151 pontos.
O ensino médio também mostra que a política de acesso não foi concluída, pois 17% dos jovens entre 15 e 17 anos não estão matriculados. Espera-se que tal percentual cresca naturalmente com o fluxo de alunos oriundos do ensino fundamental. Apesar da atual abrangência do ensino fundamental, não se pode perder de vista o gigantismo dos números quando se trata da educação no Brasil, lembra Jorge Abrahão, pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Os 3% de não matriculados representam cerca de 1 milhão de pessoas privadas de educação formal.
O ideal de 100% das crianças nas escolas pode estar longe de ser alcançado, mas deve-se celebrar o aumento no número de matrículas. Até porque é uma das poucas coisas a se comemorar no ensino básico brasileiro. Na matemática da educação, mais crianças na escola é igual a um nível maior de aprendizado. Infelizmente, esta não é a realidade brasileira. Dados do Saeb mostram que apesar do avanço no número de matrículas, entre 1995 e 2003 o desempenho médio dos alunos em português e matemática ficou aquém do que se esperava.
Bê-a-bá difícil
Além disso, nas três séries que passaram pelo teste feito por amostragem – quarta e oitava série do ensino fundamental e terceira série do ensino médio – a performance piorou de 1995 para cá.
Em termos práticos, isso significa que os alunos chegam ao final da quarta série do ensino fundamental com capacidade de fazer multiplicações com números de um dígito e conseguem ler as horas apenas em um relógio digital.
O problema não é apenas brasileiro, como mostra um estudo do Banco Mundial sobre os investimentos realizados pela entidade em 127 países desde o início dos anos 80. Segundo o documento, que tem o subtítulo Uma agenda inacabada, em geral os esforços para matricular e manter as crianças na escola surtiram efeito, mas não foram suficientes para garantir o aprendizado necessário para a vida adulta.
Um fator crítico para aprimorar o aprendizado é dividir de forma equânime os conhecimentos gerenciais para o sistema público e as escolas, diz o relatório do Banco Mundial. E especialistas brasileiros concordam que a gestão é um problema central. Contudo, é preciso traçar uma linha divisória quando se fala da administração do ensino público.
Recursos carimbados?
Parte do problema está na esfera de governo. Apesar das melhorias introduzidas para reduzir o desvio de verbas, um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU), com base em 500 municípios, mostra que 13% dos recursos do Fundef são desviados. O estudo avalia apenas as contribuições federais, que representam a menor parcela de composição do Fundef entre as três níveis de governo, mas é difícil imaginar que a contribuição de estados e municípios tenha destino mais nobre.
A partir do relatório da CGU, a Transparência Internacional realizou um estudo em 67 municípios e encontrou, em 63% deles, documentos fi scais falsos, bens adquiridos que não chegaram à escola, entre outras formas de fraude. Em 60% dessas cidades constatou-se que o dinheiro não foi aplicado em projetos relacionados à educação básica, como determina a legislação. Além disso, 52% dos municípios—que estão entre os mais pobres dos estados da Bahia, Maranhão, Pará e Piauí—dispõem de sistemas ruins de gerenciamento de verbas, caracterizados pela falta de conhecimento técnico para lidar com os recursos e até a emissão de cheques sem fundos.
Os problemas gerenciais não se limitam à questão fi nanceira. Em muitos casos, o planejamento e a administração pedagógica são muito fracos, ou até inexistentes, e isso se refl ete na qualidade do ensino. Não se faz o básico, afi rma Ilona Becskeházy, diretora-executiva da Fundação Lemann. “É parar para se reunir e pensar nas aulas”, diz. As raízes de um problema tão simples, avalia Ilona, são culturais, ideológicas e de capacitação.
No Nordeste, a gestão também tem papel signifi – cativo no desempenho escolar dos alunos. Segundo o secretário de Educação de Pernambuco e presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Mozart Neves Ramos, há casos de escolas no mesmo bairro em que se percebe claramente a importância da gestão. Nessas comparações, relata Ramos, a infra-estrutura, os recursos disponíveis e o perfi l socioeconômico dos alunos são muito similares, mas a diferença de aprendizado é gritante entre uma unidade e outra.
Uma forma de melhorar isso seria atrelar a contrapartida fi nanceira—ao menos os salários de professores, coordenadores e diretores—ao desempenho escolar, avalia Ramos. Penalidades contra os maus profi ssionais também ajudariam. “Sinto que há uma sensação de impunidade muito grande”, completa Ilona.
Outro ponto sensível é a continuidade das políticas públicas de educação. “A escola é altamente politizada”, avalia Ilona. Mudanças de governo afetam diretamente as unidades, pois as indicações para a direção das escolas públicas ainda são feitas de maneira política, sem seguir qualquer indicador de avaliação. Quando esse ranço nacional pega pela frente um processo estruturado em marcha, subtraem-se anos de avanço à custa dos alunos.
Torcida organizada
Para fugir do desastre, alguns estados introduziram a eleição para diretores, mas a questão está longe de ser solucionada nacionalmente. Enquanto isso, a sociedade dá sinais de saturação. No dia 5 de outubro, alunos de uma escola em Sumaré, no interior de São Paulo, se revoltaram, promoveram um quebra-quebra e forçaram a saída da diretora, que decidiu cobrar dinheiro dos estudantes para a emissão de carteirinha escolar e se recusava a recuperar o telhado da escola.
Embora o uso da violência tal qual o de uma torcida organizada seja questionável, a falta de indignação com o descaso em relação à educação também faz parte do problema. Como diz o vice-presidente da Fundação Itaú Social, Antonio Jacinto Mathias, “ninguém fi ca indignado com a baixa qualidade do ensino no Brasil, mas se a Seleção perde um jogo é aquele drama”.
Apesar disso, um movimento em defesa da qualidade na educação parece começar a tomar corpo. Lançado no início de setembro, o movimento “Todos pela Educação” tem como objetivo reduzir a indiferença da sociedade em relação a um tema tão importante. Baseado em metas quantitativas que devem ser atingidas até 2022, reúne entidades, empresas e pessoas físicas.
Para que a idéia não acabe no limbo como tantas outras tentativas bem-intencionadas, a informação será o motor para levar a idéia adiante, garante a coordenadora-executiva da entidade, Priscila Cruz. Uma agência de notícias divulgará informações relevantes sobre ensino e o desempenho educacional de cada município brasileiro.
Outro aspecto importante para o qual o Todos pela Educação quer chamar a atenção é a participação das empresas no processo educacional. Estudo do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) revela que 87% das empresas têm projetos na área educacional.
Trata-se de uma via de mão dupla, formada pelo interesse no desenvolvimento social e pela necessidade de contratar mão-de-obra com vistas a atingir as metas qualitativas e quantitativas que guiam as decisões gerenciais. Na opinião de Priscila, é fundamental que as empresas refl itam sobre os efeitos reais de tais programas na formação de um sistema de educação básica de qualidade.
Lição de analfabeto
A conjunção de informação e engajamento comunitário tem papel importante no desenvolvimento do ensino básico de qualidade, concordam os especialistas. A participação da comunidade é vista como o principal meio de controle sobre as atividades da escola. E a presença da família garante um melhor acompanhamento tanto das atividades pedagógicas quanto da aplicação dos recursos.
A participação da comunidade pode facilitar a adaptação do conteúdo curricular à realidade local. A estratégia, por um lado, ajuda o aluno a entender a realidade em que vive e, por outro, facilita o aprendizado,
pois trata de temas familiares às crianças. Por exemplo, pode ser mais fácil para alunos de uma comunidade do interior aprender conceitos básicos de matemática com técnicas de cultivo do que com exercícios de livros didáticos elaborados para crianças que vivem em grandes centros urbanos.
Experiências como essa, embora minoritárias, deixaram de ser esperança de românticos em várias cidades do Brasil, e em alguns casos são um importante fator de relacionamento com a sociedade. É o caso de comunidades rurais que trabalham a Proposta Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável (Peads), desenvolvida pelo Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta) de Pernambuco, que inclui atividades de campo onde um lavrador, mesmo sendo analfabeto, passa conceitos de matemática e geometria aos alunos.
A participação da comunidade também reforça a cultura local, pois dificulta que aspectos culturais exóticos sejam introduzidos em detrimento de manifestações locais.
A contribuição da família, por sua vez, é prejudicada pelo triste histórico nacional no setor. Em geral, mesmo os pais que nem sequer foram alfabetizados valorizam a escola. Eles acreditam que o simples fato de seu fi lho freqüentar a escola seja o sufi ciente e deixam de lado a exigência de qualidade.
Ou seja, falta referencial para que as famílias avaliem o ensino dos fi lhos. Daí a importância da capilaridade das informações do amplo sistema de avaliação do ensino público brasileiro.
Apenas o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ligado ao MEC, aplica duas provas rotineiramente para os alunos do ensino básico, o Saeb e o Prova Brasil. Além disso, o Inep dispõe de uma enorme gama de informações referentes às escolas, professores, merenda e transporte escolar.
O principal problema apontado por pedagogos é que os resultados dos exames raramente chegam a quem mais precisa: os profi ssionais de educação, que têm contato diário com os alunos e seus pais e que poderiam usar os dados para aprimorar a técnica pedagógica.
Uma alternativa para levar essas informações à ponta seria transferir a responsabilidade para os órgãos que elaboram os testes, sugere Maria do Carmo Brandt de Carvalho, coordenadora-geral do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Outra são iniciativas como a promovida pelo Todos pela Educação.