Por oito anos presidente da República, após exercer funções como senador e duas vezes ministro de Estado, Fernando Henrique Cardoso pode falar de cadeira: “Política e sustentabilidade andam muito mal”. Uma se sustenta apenas com apoio local, no aqui e agora. A outra engloba o bem comum e duradouro, e pede uma constituency planetária. Tal incompatibilidade é mais grave no Brasil, que segue a cultura ibérica de favoritismo e de protecionismo. Isso se reflete na posição brasileira sobre o clima: para FHC, o Ministério das Relações Exteriores precisa redefinir o interesse nacional considerando o da humanidade.
Por Amália Safatle e Flavio Lobo
PÁGINA 22: Qual é a sua visão de desenvolvimento?
Fernando Henrique Cardoso: Mexo com essa matéria há 50 anos e acompanhei a transformação da visão de desenvolvimento. Nos anos 50, desenvolvimento era botar a indústria aqui, para falar de forma direta e simples, e Juscelino (Kubitschek) correspondia a essa visão. Getulio (Vargas) tinha uma visão um pouco diferente, mais a de organizar a infra-estrutura. Nos anos da Cepal, desenvolvimento era – e eu trabalhei lá com o (Raúl) Prebisch – “o que falta aqui?” O que nos falta é que somos produtores de matéria-prima, e por isso perdemos para o mercado internacional, favorável aos produtos industrializados. Então precisávamos nos industrializar. Desenvolvimento era industrializar, por causa do componente tecnológico, que aumenta a produtividade, e assim tem o produto mais barato, consegue exportar. Como não havia capital, tinha de abrir os capitais e precisava do Estado, para controlar os mecanismos de entrada e saída, e se possível para algum planejamento. Mas aí entrou a questão social. O Prebisch lançou essa idéia nas conferências de Mar del Plata. Não adiantava crescer sem distribuição, educação. E os anos 70 foram a época da ecologia, em que Ignacy Sachs e (Johan) Galtung convocaram a Conferência de Estocolmo e começaram a construir o conceito de ecodesenvolvimento. Mas era uma idéia que não penetrava no core do pensamento desenvolvimentista. Nos anos 80 e 90, sumiu do mapa a idéia de desenvolvimento, virou mercado. Demos cambalhotas décadas para trás, passou-se a pensar que o mercado resolveria essas questões. Quando houve a Conferência do Rio, em 1992, voltou a questão da Terra. A ONU passou a ter um papel importante, porque era quem havia feito aquelas grandes conferências, sobre meio ambiente, genes, mulher, vários tópicos que não eram absolutamente sobre desenvolvimento. Hoje desenvolvimento é um processo multidimensional e que não pode se restringir mais a crescimento econômico — e nem a medidas sociais. Tem de ter uma visão de gerações, pensar em conseqüências a longo prazo, quais são os limites da natureza, novas formas de viver. Paradoxalmente, quem deu uma cambalhota nessa matéria, talvez sem ter essa consciência, foi o (Mikhail) Gorbatchev, porque, chefiando o Império Russo, chegou à conclusão de que a bomba atômica não adiantaria, destruiria a todos. Não é por acaso que ele teve a idéia da Cruz Verde, porque há problemas que são da humanidade, não de países nem de classes. Para os que vêm da formação dele, é uma revolução copernicana. Ele disse e fez.
22: É um conceito parecido com o de sustentabilidade, então?
FHC: Vem junto, no momento em que você inclui as gerações. É quando você consegue reproduzir a vida. E quando pensa em humanidade, e não mais só num país.
22: Falamos no conceito do “bem comum”, mas na política vemos divisão, visões diferentes, interesses específicos. Como convivem política e sustentabilidade?
FHC: Andam muito mal. Toda política é local. E hoje a visão mais complexa de desenvolvimento, de sustentabilidade, é planetária. Mas não há uma constituency planetária, e o político precisa de voto e se impõe pela força de um exército que é local. É uma imensa dificuldade para o político raciocinar, pensar no universal. O que, aliás, é um desafio que vem de Kant, ter uma visão universal, a paz universal, encontrar mecanismos de controle das forças globais, caso contrário a humanidade se destrói. E esse é o tema, só que não chegou aos políticos ainda porque eles se sustentam a partir do local.
22: Não só a partir do local, como do curto prazo.
FHC: Exatamente. É imediato, para já e para aqui. E como é que se vai conciliar isso é o X da questão.
22: Então, política com sustentabilidade…
FHC: …não vai para a frente. Agora, talvez possa acontecer, pelo caminho contrário. Do local não se chega ao universal, mas o universal pode ir pouco a pouco englobando o local. Hoje temos questões que não podem ser resolvidas localmente, como o terrorismo, a poluição, pois tomaram proporções planetárias. Então devemos robustecer centros, focos universais. Nos últimos anos houve um enfraquecimento desses focos, como a ONU. Os EUA jogaram uma política contrária à ONU, tentaram desqualificá-la como parceira de qualquer jogo. Se não houver alguma instituição com prestígio global, não haverá capacidade de tomar as decisões que contam. O século XXI precisa de líderes que renegociem o pacto mundial. Estão faltando, não se vêem essas lideranças. É uma pena o que aconteceu com o (Tony) Blair, o Iraque liquidou com o Blair. Mas era uma pessoa que tinha essa visão, a visão da ecologia, da pobreza, e tinha capacidade de despertar a Europa. Mas por causa da posição que ele tomou no Iraque, ficou sem.
22: Com o Iraque, tomou uma posição incoerente.
FHC: Totalmente. Então precisa de alguém, ou “alguéns”, com visão de um novo Pacto Mundial. Não é só por causa da sustentabilidade, sustentabilidade é política também. A visão dominante no mundo ocidental, a americana, à qual o Blair se aliou, é a de tornar o mundo um grande Ocidente. Não vão tornar o mundo um grande Ocidente. Essa visão é unilateralista, não vai funcionar mais. Precisamos de lideranças que renegociem, que falem como se vai viver com a diferença. Tem a China, que não vai ser igual, tem a Rússia, que voltou a ter palavra importante, tem os EUA, tem o mundo islâmico, tem a dramaticidade da África, e tudo isso deverá ser reequacionado neste século. Essa coisa leva uns cem anos, questões dessa natureza não são locais, não se resolvem de um dia para outro. E junto tem de resolver a questão do meio ambiente, tem de encarar. Não é mais possível aceitar os níveis de poluição da China, nem o nosso. A posição nossa de Kyoto foi defensiva. Não pode haver mais isso de “vocês que poluíram que despoluam, nós vamos continuar poluindo”. Isso tem de mudar, e muda nos debates gerais, não nos locais.
22: Ainda em sustentabilidade, nos seus dois mandatos, o que o senhor não conseguiu fazer nessa direção?
FHC: Muita coisa. Avançamos alguma coisa no controle da Amazônia. Veja como é dramático: conseguimos, por satélite, determinar os focos de fogo, mas não apagá-los. Não temos a estrutura para colocar a decisão em prática, a estrutura do Estado é fraca. Além do mais você não consegue se contrapor aos interesses locais.
22: Mas e os interesses nacionais?
FHC: Isso é uma abstração. Precisa haver uma máquina burocrática de controle e contenção para tudo, e não tem. Acha que a Marina (ministra Marina Silva) não quer? Que o Lula não quer? A Marina não pára porque não consegue.
22: E por que não consegue?
FHC: Porque não existe ainda uma consciência enraizada na sociedade. Nem máquinas: não tem instrumental efetivo pra chegar lá. E por que não proíbe derrubar madeira? Ou melhor, por que depois de proibido continuam derrubando?
22: Essa questão da Amazônia vem de muito tempo. O índice de desmatamento cai um pouco, depois volta…
FHC: Diminui quando cai a expansão da fronteira agrícola. Não é que cai por alguma medida do governo. O governo não tem força para isso, não tem estrutura.
22: Mas e se o governo tiver vontade?
FHC: Não, isso é uma ilusão. Essa é uma visão superficial e idealista, a da vontade política. Não basta.
22: Precisa de vontade política e recursos?
FHC: Vontade política, e recursos, e organização. E uma coisa que seja compatível na sociedade, senão não vai. Não adianta a vontade do presidente, ou do ministro, tem que ter uma coisa que esteja na consciência da sociedade ativa, e instrumentos para dar vazão a isso. Um exemplo mais próximo: a poluição do Tietê. O governo fez um esforço enorme, desde o meu tempo, para arrumar dinheiro, retificar o rio. Mas as pessoas, as fábricas, jogam lixo. E não é que o governo quer que polua, ao contrário, isso traz dor de cabeça para ele, que está fazendo o que pode para não poluir. Mas, se não tiver uma coisa mais enraizada na cultura, não adianta. Por que não se joga lixo nas estradas dos EUA? Porque tem uma multa pesada e ela é cumprida. E isso tem a ver com Estado de Direito, o nosso Estado de Direito é aparente, porque não se tem o respeito à lei. Se tivesse, aí se poderia dizer que falta vontade política. A cultura nacional aceita o não cumprimento da lei. Basta ver o caso das corrupções. Não é só o meio ambiente, é geral, o desrespeito à lei é geral.
22: No caso da Amazônia, o senhor acredita na via da fiscalização e controle?
FHC: As duas coisas têm que vir junto. Não adianta fiscalização e controle se não houver a consciência da importância da questão e meios de sobrevivência para as pessoas. A questão da Amazônia se agrava porque começa a entrar o pequeno produtor, que é mais difícil de conter. E aparece a questão da justiça. Como fica a balança disso?, Por que o grave é a madeireira? Vejamos um Estado, como o Pará. Na prática, qualquer que seja o governo do Pará, ele gostaria mesmo é de ter um bom imposto sobre exportação De madeira, não é? É muito difícil. Mas não quer dizer impossível. Pode ser mais fácil com o “selo verde”. Se não tiver, não compra a madeira. Se cortam a madeira é porque tem quem compre. É mais fácil aumentar a consciência do consumidor do que a do produtor, porque o produtor ganha dinheiro. E dinheiro é uma arma poderosíssima, maior que a lei, em certos casos.
22: Mecanismos de mercado são mais eficazes do que comando-e-controle?
FHC: Eu diria que tem que combinar os dois.
22: Há outra coisa que o senhor deixou de fazer?
FHC: Não é que deixei de fazer. Sempre se pode fazer mais. Sobre a Mata Atlântica, por exemplo, tomamos várias medidas. E melhorou. Fizemos uma proposta para que pelo menos 10% da energia do mundo fosse limpa, em cada país. Apoiar, sempre apoiamos. Kyoto, por exemplo, foi um acordo meu com o Clinton. Chegou um limite em que, pelo telefone, ele me disse: “Olha, todo mundo aqui nos EUA é contra, se vocês não me derem uma mão aí…”, e o pessoal não queria pagar nada, diziam: “A culpa é deles”. Assim também não dá. E isto está enraizado profundamente na nossa cultura. O Ministério das Relações Exteriores custou a entender essa questão, ainda não entendeu inteiramente. Porque na visão passada de defesa do interesse nacional se diria isso. E como é que você vai dizer o contrário do interesse nacional? Então tem que redefinir o interesse nacional, não o separando do interesse da humanidade. Fácil de falar, mas dificílimo de botar na cabeça das pessoas.
22: Mas o Ministério das Relações Exteriores é o que oficialmente negocia…
FHC: …mas não o único. Geralmente ele tem uma posição restritiva, e também é preciso pressioná-lo. E quem deveria pressionar? Eu. Mas é difícil, mesmo para o presidente, porque o argumento deles é embasado em uma visão diferente de interesse nacional, e acham que é a única. Está acontecendo agora no governo Lula, estão voltando à tese do governo Geisel. Lógico que não vão dizer isso hoje: “Vamos poluir, porque poluir é bom, industrializa”. Ou: “O problema não é a mata, é o povo”. Como se pudesse haver futuro para um povo sem mata. Isso é muito enraizado e é cultural. É cultural nos EUA também. Na Europa, mas há mais contrapeso. Nenhum desses temas é fácil. Mas acho que nosso problema maior é que não acreditamos realmente na democracia, na lei.
22: O povo brasileiro?
FHC: A nossa cultura. Ela não é só brasileira, é, digamos assim, ibérica. Não é uma cultura racional, é uma cultura de protecionismo, de favoritismo. Não é uma cultura onde todos são iguais. Isso é um esforço grande que alguns fazem,. Se o País tem uma legislação em que não pode derrubar árvore, mas a população não acha isso tão importante, há interesses contrários e não há instrumentos burocráticos que ajudem a levar adiante, fica difícil. Tem a ver com progresso. Acho que houve um avanço muito grande, na consciência nacional, a respeito da poluição. Nos anos 70, ninguém duvidava de que o bom era botar chaminé. Não havia noção dessa questão, agora há. Ainda mais com a mudança climática, isso vai se acelerar muito mais.
22: As conferências de clima têm ritmo lento, e a urgência é grande. O senhor defende a criação de uma cúpula do clima? Como funcionaria?
FHC: Defendo, e a razão principal é aumentar a consciência das populações. A cúpula resolve, objetivamente, muito pouca coisa, mas cria um clima. Tem que fazer de novo o que foi feito em 92, no Rio. Juntar os líderes do mundo, os cientistas, os movimentos sociais, jogar a temática, mostrar dados, chamar a atenção, aumentar a consciência, para que os governos tomem as decisões.
22: Deveria ser mudado o sistema de negociação?
FHC: A única negociação que houve foi Kyoto. Precisaríamos rever as metas, e agregar preocupações que a ciência trouxe. A urgência aumentou muito. Acho que isso criaria condições para compromissos mundiais mais firmes. O fato de a Europa ter entrado, a Rússia, já foi importante. Só os EUA e a Austrália não assinaram. Agora Kyoto não basta, primeiro porque precisa ver se está sendo cumprido, e não está sendo posto em prática de maneira eficaz. E segundo porque precisa mais. Pelo que eu ouvi do Al Gore, tem que ser feita alguma coisa dentro dos próximos dez anos.
22: A renovação das lideranças – Gordon Brown, Nicolas Sarkozy, Angela Merkel – muda alguma coisa? Eles têm alguma preocupação com o tema?
FHC: Vi o Sarkozy convidar o (Bernard) Kouchner para ser o ministro das Relações Exteriores. Se fizer isso, é bom, o Kouchner tem uma visão mais ampla das coisas. O Brown provavelmente não será muito diferente do Blair nessa visão, não sei se tem o mesmo carisma. O Blair é um tipo muito atraente, o Brown é mais “pesado” como liderança. A Angela tem sido uma pessoa surpreendente. Os alemães nessa matéria são muito bons, sempre foram.
22: Na próxima reunião do G8, qual será o peso das questões climáticas e ambientais?
FHC: Algum peso vai haver. Mas o Brasil poderia avançar nisso. O problema é que o Brasil é ambíguo nessa matéria, pelas razões que já disse aqui. É preciso assumir mais responsabilidades, para que tenhamos força moral para falar em relação aos outros. Nosso problema é um pouco menos de retórica e um pouco mais de compromisso efetivo. Não vejo que o Lula tenha dado o apoio necessário à Marina. O Itamaraty tem mais voz do que o Meio Ambiente, e acho que essa voz vai afinar diante das necessidades.
22: O presidente teria de interceder?
FHC: Não necessariamente… mas as orientações do Lula são mais pelo crescimento do que pela sustentabilidade.
22: A sustentabilidade é uma bandeira política eficaz?
FHC: No Brasil, ainda não, mas não importa. É uma bandeira correta.
22: O exemplo de Tony Blair, que seguia na linha da sustentabilidade e perdeu força com a posição sobre o Iraque, indica isso?
FHC: A sustentabilidade é uma bandeira que será crescentemente apoiada. Não sei se o que você chamou de eficaz é ganhar eleição. O Fabio Feldmann perdeu a eleição porque tomou uma medida correta em São Paulo, que foi o rodízio. O que não quer dizer que não se deva seguir o correto. Não sou muito favorável a essa visão de olhar a pesquisa de opinião e seguir o que ela mandar. O político, quando lidera, tem é que mudar a opinião, se ele tiver a razão e acreditar. Não acho que nos próximos anos isso vá ser um divisor de águas no Brasil, mas, pensando a longo prazo, é fundamental. Nossos políticos devem entrar cada vez mais nessa discussão, e vão entrar, porque não é de dentro para fora, vem da sociedade para os políticos. Nesse momento, há uma visão de crescimento um pouco simplória no Brasil, de PIB, de que vai crescer 4% ou 5%. O Brasil, quando cresceu a 7%, foi um desastre social.
22: No que o PAC difere do Avança Brasil?
FHC: Não sei do PAC, não conheço detalhadamente. O Avança Brasil era um conjunto de projetos, que tinha gerência específica, verba sem ser contingenciada e uma força estruturante. E era um planejamento. O primeiro governo do Lula acabou com o Ministério do Planejamento, virou Ministério do Orçamento. O PAC é uma volta da idéia de planejamento, mas tem que ter planejamento mesmo. Cadê as estruturas que controlam isso? Quem está gerenciando? Uma pessoa só não gerencia isso. O PAC vem como impacto, mais como um projeto antigo dos militares do que como um processo. O impacto pode dar voto, mas não dá resultado.
22: No Avança Brasil, o senhor também teve problemas com licenciamentos ambientais. O que se faz nesses casos?
FHC: Negocia, vê o que é razoável, o que não é. Não dá para fazer hidrelétrica sem pensar no lado ambiental. Tucuruí é uma represa em que nós pusemos um linhão pra abastecer o Nordeste. Mas quando chega na época da seca, não adianta nada. O Amazonas tem um regime de águas complicado, e na seca não dá para levar um megawatt sequer para o Nordeste. E, como é longe, na transmissão perde-se muito. Não sou especialista na matéria, não posso dizer se vale a pena ou não. Mas tem que estudar. O que vai acontecer com a dengue lá? E a malária? Tenho um amigo, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, que está em Rondônia. Ele acha que vai ter um problema violento com malária lá, por causa das represas. Mas não pode deixar de fazer as represas, tem é que tomar as medidas necessárias. Às vezes, há uma desconfiança recíproca entre ambientalistas e desenvolvimentistas. O ideal é uma convergência, difícil, mas necessária. Houve um problema assim, no Rio Tocantins, com as rotas de proliferação de peixes, e não foi possível fazer navegação lá. Pensar em grandes obras sem se preocupar com sustentabilidade é loucura. Tem o São Francisco, questão que vem desde o século XIX, e não é à toa. Nesta altura, devíamos chamar grupos de fora do Brasil para analisar os efeitos da transposição. A gente não deve entrar em grandes projetos senão com muita cautela.
22: O biocombustível é de fato uma oportunidade histórica para o Brasil?
FHC: Depende de como fizer. Vejo com grande preocupação essa espécie de febre, de corrida pelo etanol. Não é fácil fazer tanto investimento. E em que condições vão fazer? Tem que haver equilíbrio, zoneamento. Também é possível fazer uma abordagem inteligente, combinada, com cana e gado, por exemplo. Acho que devíamos fazer uma agência reguladora que defina o que pode, como pode, onde pode. Ainda está a tempo de tomar medidas que conduzam a política do etanol, não só tendo em vista o custo financeiro, mas os efeitos globais.
22: Seu governo teve uma política muito restritiva ao crescimento, com juros altos e custo social. Hoje o senhor faria a mesma coisa?
FHC: A mesma coisa. O que fiz foi garantir a estabilidade. A proporção de pobres no Brasil caiu, assim como a de miseráveis, e continua caindo por causa da estabilidade. O principal elemento de distribuição de renda no Brasil foi estabilizado. O único país da América Latina, nos anos 90, em que o Coeficiente de Gini melhorou foi o Brasil.
22: Uma última pergunta, sobre a profundidade do desafio que a sustentabilidade coloca pra humanidade. O senhor acredita que, para dar conta desse desafio, é necessário superar o capitalismo, ou reformas são suficientes?
FHC: Superar o capitalismo para fazer o quê? O socialismo real capotou. A China hoje é capitalista de Estado, que é a pior forma de capitalismo. Não há no horizonte histórico uma alternativa socioeconômica, e há, em um horizonte não muito remoto, uma dramaticidade quanto ao meio ambiente. Então não vamos esperar que mude o socioeconômico para depois mudar o meio ambiente, porque demora tanto tempo que o meio ambiente se liquida. Temos que jogar com o que existe. As empresas são capitalistas, mas estão se movendo. Discute-se agora o que fazer com a emissão de gases estufa. Em vez de colocar uma questão ideológica, é melhor colocar uma questão prática. O que vai ter que mudar são certos aspectos civilizatórios, vai ter que mudar o consumismo. Como vai se adaptar um capitalismo que não seja desse consumismo “desbragado” é uma questão que está posta. Como é que vai generalizar o consumismo americano para a China? E a China pode achar uma injustiça, dizer: “Por que eu não?” Ou muda também nos EUA, ou não tem força para mudar na China. Dá para ter na China o número de carros per capita que temos em São Paulo? Nós aqui vamos ter que mudar também. Não é fácil, estamos fazendo metrô, mas tem os hábitos, a pessoa prefere andar sozinha no seu carro. Nesse sentido, a Europa tem vantagem sobre todos os outros. Do ponto de vista civilizatório, está à frente do mundo, encontrou um equilíbrio maior. Inclusive em termos de capitalismo. E é uma cultura de menos desperdício que a americana, que é a nossa, infelizmente. Por isso é uma pena não haver uma liderança na Europa, porque eles podem segurar a Rússia. Por que a Rússia tem que repetir os EUA? E a China? Estão repetindo. A Europa tem essa possibilidade, de mostrar que é possível um desenvolvimento menos agressivo, sem essa coisa doentia, em que o lixo é indicador da prosperidade. Não consigo dar conta dos papéis que recebo, não leio. Revistas, propagandas…
22: Mas esta aqui (a PÁGINA 22) o senhor lê.
FHC: Esta eu leio (risos).
Por oito anos presidente da República, após exercer funções como senador e duas vezes ministro de Estado, Fernando Henrique Cardoso pode falar de cadeira: “Política e sustentabilidade andam muito mal”. Uma se sustenta apenas com apoio local, no aqui e agora. A outra engloba o bem comum e duradouro, e pede uma constituency planetária. Tal incompatibilidade é mais grave no Brasil, que segue a cultura ibérica de favoritismo e de protecionismo. Isso se reflete na posição brasileira sobre o clima: para FHC, o Ministério das Relações Exteriores precisa redefinir o interesse nacional considerando o da humanidade.
Por Amália Safatle e Flavio Lobo
Qual é a sua visão de desenvolvimento?
Mexo com essa matéria há 50 anos e acompanhei a transformação da visão de desenvolvimento. Nos anos 50, desenvolvimento era botar a indústria aqui, para falar de forma direta e simples, e Juscelino (Kubitschek) correspondia a essa visão. Getulio (Vargas) tinha uma visão um pouco diferente, mais a de organizar a infra-estrutura. Nos anos da Cepal, desenvolvimento era – e eu trabalhei lá com o (Raúl) Prebisch – “o que falta aqui?” O que nos falta é que somos produtores de matéria-prima, e por isso perdemos para o mercado internacional, favorável aos produtos industrializados.
Então precisávamos nos industrializar. Desenvolvimento era industrializar, por causa do componente tecnológico, que aumenta a produtividade, e assim tem o produto mais barato, consegue exportar. Como não havia capital, tinha de abrir os capitais e precisava do Estado, para controlar os mecanismos de entrada e saída, e se possível para algum planejamento. Mas aí entrou a questão social. O Prebisch lançou essa idéia nas conferências de Mar del Plata. Não adiantava crescer sem distribuição, educação. E os anos 70 foram a época da ecologia, em que Ignacy Sachs e (Johan) Galtung convocaram a Conferência de Estocolmo e começaram a construir o conceito de ecodesenvolvimento. Mas era uma idéia que não penetrava no core do pensamento desenvolvimentista. Nos anos 80 e 90, sumiu do mapa a idéia de desenvolvimento, virou mercado. Demos cambalhotas décadas para trás, passou-se a pensar que o mercado resolveria essas questões.
Quando houve a Conferência do Rio, em 1992, voltou a questão da Terra. A ONU passou a ter um papel importante, porque era quem havia feito aquelas grandes conferências, sobre meio ambiente, genes, mulher, vários tópicos que não eram absolutamente sobre desenvolvimento. Hoje desenvolvimento é um processo multidimensional e que não pode se restringir mais a crescimento econômico — e nem a medidas sociais. Tem de ter uma visão de gerações, pensar em conseqüências a longo prazo, quais são os limites da natureza, novas formas de viver.
Paradoxalmente, quem deu uma cambalhota nessa matéria, talvez sem ter essa consciência, foi o (Mikhail) Gorbatchev, porque, chefiando o Império Russo, chegou à conclusão de que a bomba atômica não adiantaria, destruiria a todos. Não é por acaso que ele teve a idéia da Cruz Verde, porque há problemas que são da humanidade, não de países nem de classes. Para os que vêm da formação dele, é uma revolução copernicana. Ele disse e fez.
É um conceito parecido com o de sustentabilidade, então?
Vem junto, no momento em que você inclui as gerações. É quando você consegue reproduzir a vida. E quando pensa em humanidade, e não mais só num país.
Falamos no conceito do “bem comum”, mas na política vemos divisão, visões diferentes, interesses específicos. Como convivem política e sustentabilidade?
Andam muito mal. Toda política é local. E hoje a visão mais complexa de desenvolvimento, de sustentabilidade, é planetária. Mas não há uma constituency planetária, e o político precisa de voto e se impõe pela força de um exército que é local. É uma imensa dificuldade para o político raciocinar, pensar no universal. O que, aliás, é um desafio que vem de Kant, ter uma visão universal, a paz universal, encontrar mecanismos de controle das forças globais, caso contrário a humanidade se destrói. E esse é o tema, só que não chegou aos políticos ainda porque eles se sustentam a partir do local.
Não só a partir do local, como do curto prazo.
Exatamente. É imediato, para já e para aqui. E como é que se vai conciliar isso é o X da questão.
Então, política com sustentabilidade…
…não vai para a frente. Agora, talvez possa acontecer, pelo caminho contrário. Do local não se chega ao universal, mas o universal pode ir pouco a pouco englobando o local. Hoje temos questões que não podem ser resolvidas localmente, como o terrorismo, a poluição, pois tomaram proporções planetárias. Então devemos robustecer centros, focos universais. Nos últimos anos houve um enfraquecimento desses focos, como a ONU. Os EUA jogaram uma política contrária à ONU, tentaram desqualificá-la como parceira de qualquer jogo.
Se não houver alguma instituição com prestígio global, não haverá capacidade de tomar as decisões que contam. O século XXI precisa de líderes que renegociem o pacto mundial. Estão faltando, não se vêem essas lideranças. É uma pena o que aconteceu com o (Tony) Blair, o Iraque liquidou com o Blair. Mas era uma pessoa que tinha essa visão, a visão da ecologia, da pobreza, e tinha capacidade de despertar a Europa. Mas por causa da posição que ele tomou no Iraque, ficou sem.
Com o Iraque, tomou uma posição incoerente.
Totalmente. Então precisa de alguém, ou “alguéns”, com visão de um novo Pacto Mundial. Não é só por causa da sustentabilidade, sustentabilidade é política também. A visão dominante no mundo ocidental, a americana, à qual o Blair se aliou, é a de tornar o mundo um grande Ocidente. Não vão tornar o mundo um grande Ocidente. Essa visão é unilateralista, não vai funcionar mais. Precisamos de lideranças que renegociem, que falem como se vai viver com a diferença.
Tem a China, que não vai ser igual, tem a Rússia, que voltou a ter palavra importante, tem os EUA, tem o mundo islâmico, tem a dramaticidade da África, e tudo isso deverá ser reequacionado neste século. Essa coisa leva uns cem anos, questões dessa natureza não são locais, não se resolvem de um dia para outro. E junto tem de resolver a questão do meio ambiente, tem de encarar. Não é mais possível aceitar os níveis de poluição da China, nem o nosso. A posição nossa de Kyoto foi defensiva. Não pode haver mais isso de “vocês que poluíram que despoluam, nós vamos continuar poluindo”. Isso tem de mudar, e muda nos debates gerais, não nos locais.
Ainda em sustentabilidade, nos seus dois mandatos, o que o senhor não conseguiu fazer nessa direção?
Muita coisa. Avançamos alguma coisa no controle da Amazônia. Veja como é dramático: conseguimos, por satélite, determinar os focos de fogo, mas não apagá-los. Não temos a estrutura para colocar a decisão em prática, a estrutura do Estado é fraca. Além do mais você não consegue se contrapor aos interesses locais.
Mas e os interesses nacionais?
Isso é uma abstração. Precisa haver uma máquina burocrática de controle e contenção para tudo, e não tem. Acha que a Marina (ministra Marina Silva) não quer? Que o Lula não quer? A Marina não pára porque não consegue.
E por que não consegue?
Porque não existe ainda uma consciência enraizada na sociedade. Nem máquinas: não tem instrumental efetivo pra chegar lá. E por que não proíbe derrubar madeira? Ou melhor, por que depois de proibido continuam derrubando?
Essa questão da Amazônia vem de muito tempo. O índice de desmatamento cai um pouco, depois volta…
Diminui quando cai a expansão da fronteira agrícola. Não é que cai por alguma medida do governo. O governo não tem força para isso, não tem estrutura.
Mas e se o governo tiver vontade?
Não, isso é uma ilusão. Essa é uma visão superficial e idealista, a da vontade política. Não basta.
Precisa de vontade política e recursos?
Vontade política, e recursos, e organização. E uma coisa que seja compatível na sociedade, senão não vai. Não adianta a vontade do presidente, ou do ministro, tem que ter uma coisa que esteja na consciência da sociedade ativa, e instrumentos para dar vazão a isso. Um exemplo mais próximo: a poluição do Tietê. O governo fez um esforço enorme, desde o meu tempo, para arrumar dinheiro, retificar o rio. Mas as pessoas, as fábricas, jogam lixo. E não é que o governo quer que polua, ao contrário, isso traz dor de cabeça para ele, que está fazendo o que pode para não poluir. Mas, se não tiver uma coisa mais enraizada na cultura, não adianta. Por que não se joga lixo nas estradas dos EUA? Porque tem uma multa pesada e ela é cumprida.
E isso tem a ver com Estado de Direito, o nosso Estado de Direito é aparente, porque não se tem o respeito à lei. Se tivesse, aí se poderia dizer que falta vontade política. A cultura nacional aceita o não cumprimento da lei. Basta ver o caso das corrupções. Não é só o meio ambiente, é geral, o desrespeito à lei é geral.
No caso da Amazônia, o senhor acredita na via da fiscalização e controle?
As duas coisas têm que vir junto. Não adianta fiscalização e controle se não houver a consciência da importância da questão e meios de sobrevivência para as pessoas. A questão da Amazônia se agrava porque começa a entrar o pequeno produtor, que é mais difícil de conter. E aparece a questão da justiça. Como fica a balança disso?, Por que o grave é a madeireira? Vejamos um Estado, como o Pará. Na prática, qualquer que seja o governo do Pará, ele gostaria mesmo é de ter um bom imposto sobre exportação De madeira, não é? É muito difícil. Mas não quer dizer impossível. Pode ser mais fácil com o “selo verde”. Se não tiver, não compra a madeira. Se cortam a madeira é porque tem quem compre. É mais fácil aumentar a consciência do consumidor do que a do produtor, porque o produtor ganha dinheiro. E dinheiro é uma arma poderosíssima, maior que a lei, em certos casos.
Mecanismos de mercado são mais eficazes do que comando-e-controle?
Eu diria que tem que combinar os dois.
Há outra coisa que o senhor deixou de fazer?
Não é que deixei de fazer. Sempre se pode fazer mais. Sobre a Mata Atlântica, por exemplo, tomamos várias medidas. E melhorou. Fizemos uma proposta para que pelo menos 10% da energia do mundo fosse limpa, em cada país. Apoiar, sempre apoiamos. Kyoto, por exemplo, foi um acordo meu com o Clinton. Chegou um limite em que, pelo telefone, ele me disse: “Olha, todo mundo aqui nos EUA é contra, se vocês não me derem uma mão aí…”, e o pessoal não queria pagar nada, diziam: “A culpa é deles”.
Assim também não dá. E isto está enraizado profundamente na nossa cultura. O Ministério das Relações Exteriores custou a entender essa questão, ainda não entendeu inteiramente. Porque na visão passada de defesa do interesse nacional se diria isso. E como é que você vai dizer o contrário do interesse nacional? Então tem que redefinir o interesse nacional, não o separando do interesse da humanidade. Fácil de falar, mas dificílimo de botar na cabeça das pessoas.
Mas o Ministério das Relações Exteriores é o que oficialmente negocia…
…mas não o único. Geralmente ele tem uma posição restritiva, e também é preciso pressioná-lo. E quem deveria pressionar? Eu. Mas é difícil, mesmo para o presidente, porque o argumento deles é embasado em uma visão diferente de interesse nacional, e acham que é a única. Está acontecendo agora no governo Lula, estão voltando à tese do governo Geisel. Lógico que não vão dizer isso hoje: “Vamos poluir, porque poluir é bom, industrializa”. Ou: “O problema não é a mata, é o povo”. Como se pudesse haver futuro para um povo sem mata. Isso é muito enraizado e é cultural. É cultural nos EUA também. Na Europa, mas há mais contrapeso. Nenhum desses temas é fácil. Mas acho que nosso problema maior é que não acreditamos realmente na democracia, na lei.
O povo brasileiro?
A nossa cultura. Ela não é só brasileira, é, digamos assim, ibérica. Não é uma cultura racional, é uma cultura de protecionismo, de favoritismo. Não é uma cultura onde todos são iguais. Isso é um esforço grande que alguns fazem,. Se o País tem uma legislação em que não pode derrubar árvore, mas a população não acha isso tão importante, há interesses contrários e não há instrumentos burocráticos que ajudem a levar adiante, fica difícil. Tem a ver com progresso. Acho que houve um avanço muito grande, na consciência nacional, a respeito da poluição. Nos anos 70, ninguém duvidava de que o bom era botar chaminé. Não havia noção dessa questão, agora há. Ainda mais com a mudança climática, isso vai se acelerar muito mais.
As conferências de clima têm ritmo lento, e a urgência é grande. O senhor defende a criação de uma cúpula do clima? Como funcionaria?
Defendo, e a razão principal é aumentar a consciência das populações. A cúpula resolve, objetivamente, muito pouca coisa, mas cria um clima. Tem que fazer de novo o que foi feito em 92, no Rio. Juntar os líderes do mundo, os cientistas, os movimentos sociais, jogar a temática, mostrar dados, chamar a atenção, aumentar a consciência, para que os governos tomem as decisões.
Deveria ser mudado o sistema de negociação?
A única negociação que houve foi Kyoto. Precisaríamos rever as metas, e agregar preocupações que a ciência trouxe. A urgência aumentou muito. Acho que isso criaria condições para compromissos mundiais mais firmes. O fato de a Europa ter entrado, a Rússia, já foi importante. Só os EUA e a Austrália não assinaram. Agora Kyoto não basta, primeiro porque precisa ver se está sendo cumprido, e não está sendo posto em prática de maneira eficaz. E segundo porque precisa mais. Pelo que eu ouvi do Al Gore, tem que ser feita alguma coisa dentro dos próximos dez anos.
A renovação das lideranças – Gordon Brown, Nicolas Sarkozy, Angela Merkel – muda alguma coisa? Eles têm alguma preocupação com o tema?
Vi o Sarkozy convidar o (Bernard) Kouchner para ser o ministro das Relações Exteriores. Se fizer isso, é bom, o Kouchner tem uma visão mais ampla das coisas. O Brown provavelmente não será muito diferente do Blair nessa visão, não sei se tem o mesmo carisma. O Blair é um tipo muito atraente, o Brown é mais “pesado” como liderança. A Angela tem sido uma pessoa surpreendente. Os alemães nessa matéria são muito bons, sempre foram.
Na próxima reunião do G8, qual será o peso das questões climáticas e ambientais?
Algum peso vai haver. Mas o Brasil poderia avançar nisso. O problema é que o Brasil é ambíguo nessa matéria, pelas razões que já disse aqui. É preciso assumir mais responsabilidades, para que tenhamos força moral para falar em relação aos outros. Nosso problema é um pouco menos de retórica e um pouco mais de compromisso efetivo. Não vejo que o Lula tenha dado o apoio necessário à Marina. O Itamaraty tem mais voz do que o Meio Ambiente, e acho que essa voz vai afinar diante das necessidades.
O presidente teria de interceder?
Não necessariamente… mas as orientações do Lula são mais pelo crescimento do que pela sustentabilidade.
A sustentabilidade é uma bandeira política eficaz?
No Brasil, ainda não, mas não importa. É uma bandeira correta.
O exemplo de Tony Blair, que seguia na linha da sustentabilidade e perdeu força com a posição sobre o Iraque, indica isso?
A sustentabilidade é uma bandeira que será crescentemente apoiada. Não sei se o que você chamou de eficaz é ganhar eleição. O Fabio Feldmann perdeu a eleição porque tomou uma medida correta em São Paulo, que foi o rodízio. O que não quer dizer que não se deva seguir o correto. Não sou muito favorável a essa visão de olhar a pesquisa de opinião e seguir o que ela mandar. O político, quando lidera, tem é que mudar a opinião, se ele tiver a razão e acreditar. Não acho que nos próximos anos isso vá ser um divisor de águas no Brasil, mas, pensando a longo prazo, é fundamental. Nossos políticos devem entrar cada vez mais nessa discussão, e vão entrar, porque não é de dentro para fora, vem da sociedade para os políticos. Nesse momento, há uma visão de crescimento um pouco simplória no Brasil, de PIB, de que vai crescer 4% ou 5%. O Brasil, quando cresceu a 7%, foi um desastre social.
No que o PAC difere do Avança Brasil?
Não sei do PAC, não conheço detalhadamente. O Avança Brasil era um conjunto de projetos, que tinha gerência específica, verba sem ser contingenciada e uma força estruturante. E era um planejamento. O primeiro governo do Lula acabou com o Ministério do Planejamento, virou Ministério do Orçamento. O PAC é uma volta da idéia de planejamento, mas tem que ter planejamento mesmo. Cadê as estruturas que controlam isso? Quem está gerenciando? Uma pessoa só não gerencia isso. O PAC vem como impacto, mais como um projeto antigo dos militares do que como um processo. O impacto pode dar voto, mas não dá resultado.
No Avança Brasil, o senhor também teve problemas com licenciamentos ambientais. O que se faz nesses casos?
Negocia, vê o que é razoável, o que não é. Não dá para fazer hidrelétrica sem pensar no lado ambiental. Tucuruí é uma represa em que nós pusemos um linhão pra abastecer o Nordeste. Mas quando chega na época da seca, não adianta nada. O Amazonas tem um regime de águas complicado, e na seca não dá para levar um megawatt sequer para o Nordeste. E, como é longe, na transmissão perde-se muito. Não sou especialista na matéria, não posso dizer se vale a pena ou não. Mas tem que estudar. O que vai acontecer com a dengue lá? E a malária?
Tenho um amigo, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, que está em Rondônia. Ele acha que vai ter um problema violento com malária lá, por causa das represas. Mas não pode deixar de fazer as represas, tem é que tomar as medidas necessárias. Às vezes, há uma desconfiança recíproca entre ambientalistas e desenvolvimentistas. O ideal é uma convergência, difícil, mas necessária. Houve um problema assim, no Rio Tocantins, com as rotas de proliferação de peixes, e não foi possível fazer navegação lá. Pensar em grandes obras sem se preocupar com sustentabilidade é loucura.
Tem o São Francisco, questão que vem desde o século XIX, e não é à toa. Nesta altura, devíamos chamar grupos de fora do Brasil para analisar os efeitos da transposição. A gente não deve entrar em grandes projetos senão com muita cautela.
O biocombustível é de fato uma oportunidade histórica para o Brasil?
Depende de como fizer. Vejo com grande preocupação essa espécie de febre, de corrida pelo etanol. Não é fácil fazer tanto investimento. E em que condições vão fazer? Tem que haver equilíbrio, zoneamento. Também é possível fazer uma abordagem inteligente, combinada, com cana e gado, por exemplo. Acho que devíamos fazer uma agência reguladora que defina o que pode, como pode, onde pode. Ainda está a tempo de tomar medidas que conduzam a política do etanol, não só tendo em vista o custo financeiro, mas os efeitos globais.
Seu governo teve uma política muito restritiva ao crescimento, com juros altos e custo social. Hoje o senhor faria a mesma coisa?
A mesma coisa. O que fiz foi garantir a estabilidade. A proporção de pobres no Brasil caiu, assim como a de miseráveis, e continua caindo por causa da estabilidade. O principal elemento de distribuição de renda no Brasil foi estabilizado. O único país da América Latina, nos anos 90, em que o Coeficiente de Gini melhorou foi o Brasil.
Uma última pergunta, sobre a profundidade do desafio que a sustentabilidade coloca pra humanidade. O senhor acredita que, para dar conta desse desafio, é necessário superar o capitalismo, ou reformas são suficientes?
Superar o capitalismo para fazer o quê? O socialismo real capotou. A China hoje é capitalista de Estado, que é a pior forma de capitalismo. Não há no horizonte histórico uma alternativa socioeconômica, e há, em um horizonte não muito remoto, uma dramaticidade quanto ao meio ambiente. Então não vamos esperar que mude o socioeconômico para depois mudar o meio ambiente, porque demora tanto tempo que o meio ambiente se liquida. Temos que jogar com o que existe. As empresas são capitalistas, mas estão se movendo.
Discute-se agora o que fazer com a emissão de gases estufa. Em vez de colocar uma questão ideológica, é melhor colocar uma questão prática. O que vai ter que mudar são certos aspectos civilizatórios, vai ter que mudar o consumismo. Como vai se adaptar um capitalismo que não seja desse consumismo “desbragado” é uma questão que está posta. Como é que vai generalizar o consumismo americano para a China? E a China pode achar uma injustiça, dizer: “Por que eu não?” Ou muda também nos EUA, ou não tem força para mudar na China. Dá para ter na China o número de carros per capita que temos em São Paulo? Nós aqui vamos ter que mudar também. Não é fácil, estamos fazendo metrô, mas tem os hábitos, a pessoa prefere andar sozinha no seu carro.
Nesse sentido, a Europa tem vantagem sobre todos os outros. Do ponto de vista civilizatório, está à frente do mundo, encontrou um equilíbrio maior. Inclusive em termos de capitalismo. E é uma cultura de menos desperdício que a americana, que é a nossa, infelizmente. Por isso é uma pena não haver uma liderança na Europa, porque eles podem segurar a Rússia. Por que a Rússia tem que repetir os EUA? E a China? Estão repetindo. A Europa tem essa possibilidade, de mostrar que é possível um desenvolvimento menos agressivo, sem essa coisa doentia, em que o lixo é indicador da prosperidade. Não consigo dar conta dos papéis que recebo, não leio. Revistas, propagandas…
Mas esta aqui (a PÁGINA 22) o senhor lê.
Esta eu leio (risos).