“No Pantanal ninguém pode passar régua. Sobremuito quando chove. A régua é existidura de limite. E o Pantanal não tem limites. (…) Alegria é de manhã ter chovido de noite. (…) A pelagem do gado está limpa. A alma do fazendeiro está limpa. O roceiro está alegre na roça porque sua planta está salva. Pequenos caracóis pregam saliva nas roseiras. E a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeças com sua voz rachada de verde.” Manoel de Barros, conhecido como o “Poeta do Pantanal”, em Livro de Pré-Coisas
Por Giovana Girardi – Fotos: Bento Viana
No princípio se pensou que aquele aguaceiro todo só podia ser um mar, o Mar dos Xaraés, um dos povos indígenas que ocupavam o território onde hoje fica o Mato Grosso do Sul. Confusão dos primeiros espanhóis que, partindo da recém-fundada Buenos Aires, subiam os rios Paraná e Paraguai em busca de ouro quando se depararam com uma imensa área alagada. Engano até plausível. Difícil compreender, apenas de passagem, uma região que fica boa parte do ano debaixo d’água e mistura em alguns milhares de quilômetros características de diferentes biomas do Brasil.
Coube ao povo pantaneiro, gestado entre índios, espanhóis, portugueses, paulistas, gaúchos e mineiros que seguiam rumo ao Oeste do País, aprender a lidar com tanta água.
Só mesmo uma mistura de gente para entender outra – a da natureza. Foi uma história de adequação, de um povo que se moldou aos ciclos das cheias e criou atividades naturalmente sustentáveis. Depois de 200 anos, no entanto, a harmonia cantada nas modas de viola começa a dar sinais de desgaste.
O músico Almir Sater, que cresceu na região do Rio Negro e se inspira nas belezas naturais, resume a questão: “O pantaneiro é conservacionista, sabe explorar sem deixar a terra acabar para ninguém, mas os perigos são os de fora, gente que chegou achando que o pantaneiro é besta”.
Em comparação com os outros biomas brasileiros, o Pantanal ainda é o mais conservado, segundo o Ministério do Meio Ambiente, que considera que apenas 11,5% de sua cobertura vegetaloriginal foi desmatada (esse número pode chegar a até 17% conforme a metodologia, o mesmo aceito em média para a Amazônia).
Mas pesquisadores notam que uma série de fatores acelera a degradação. Alteração no perfil produtivo dos pecuaristas, expansão de carvoarias para alimentar o crescimento da siderurgia e desmatamento nas cabeceiras dos rios que alimentam o Pantanal são alguns deles. São problemas interligados e para entendê-los é preciso, primeiro, visualizar o bioma.
A maior planície inundável do mundo pode ser mais bem definida como grande zona de transição entre Cerrado (mais a leste), Amazônia (a norte e a noroeste) e o Chaco boliviano e paraguaio (a sudoeste).
Ao mesmo tempo que define suas características, o entorno do Pantanal está intimamente ligado às ameaças que sofre.
Tanto que alguns cálculos de desmatamento levam em conta toda a Bacia do Alto Paraguai, onde o Pantanal está inserido. A planície pantaneira é cercada de terras mais altas, onde se encontram as nascentes dos rios que vão formá-la depois. Com pressões da soja e da pecuária, sofre diretamente o cerrado, que é a vegetação local nessas áreas, e o pantanal, por conseqüência.
Mais água, menos peixe
“A remoção da vegetação retira a proteção natural do solo, provocando uma enxurrada de sedimentos para os rios”, explica Sandro Menezes, gerente de Pantanal da ONG Conservação Internacional (CI).
Correr no vale, a água começou a correr na cumeeira e transbordou. Hoje ela não volta nem na época de seca. E uma região de pelo menos 5 mil quilômetros quadrados fica debaixo d’água”, conta.
O dano foi imediato para os fazendeiros do entorno, que perderam todo o gado.
Depois se notou que os peixes também começaram a diminuir. “As espécies do Pantanal têm relação com a alternância entre cheia e seca. Na época das inundações, a vegetação que fica embaixo d’água apodrece e serve de comida para peixes como o curimbatá. Ele é a base da cadeia que vai alimentar pintados, dourados, aves aquáticas, jacarés e onças, entre outros.
É o caso do Rio Taquari, um dos afluentes do Rio Paraguai, que ilustra o que pode ocorrer no futuro. A perda da vegetação natural na área da nascente do rio causou tamanho assoreamento, que o curso d’água chegou a mudar de rumo, provocando inundações permanentes.
Tudo começou nos anos 80, no governo de João Figueiredo, lembra Emiko Kawakami de Resende, pesquisadora da Embrapa Pantanal. “Era a época do ‘Plante que o João garante’. Plantaram sem prestar atenção na conservação do solo. Na cabeceira do Taquari o terreno é bem arenoso, a terra toda foi parar no rio. Com isso o leito ficou mais alto que as laterais. Em vez de A inundação causa uma exuberância de alimento, mas, sem a seca, esse ciclo se interrompe e cria desertos aquáticos”, diz Emiko.
Para os pesquisadores, os danos na parte alta da bacia são as ameaças mais preocupantes ao bioma.
“Não vai adiantar preservar a planície se as cabeceiras forem degradadas. A longo prazo, o Pantanal estará desprotegido”, alerta Michael Becker, coordenador do programa do WWF-Brasil para a área.
Números referentes ao desmatamento mostram que o perigo é iminente. A análise de imagens do satélite Modis, feita pela CI, aponta que em toda a Bacia do Alto Paraguaicerca de 44% da vegetação original foi suprimida até 2004 – no Pantanal propriamente dito a perda foi de 17%.
Pelos cálculos da ONG, o ritmo de desmate é de 2,3% ao ano. Se ele se mantiver, os pesquisadores prevêem que em 45 anos a vegetação original terá desaparecido.
“Parte do problema começa com a mudança no perfil produtivo do pantaneiro”, afirma Menezes, da CI. Ele, que aprendeu a criar o gado de modo extensivo, com baixa densidade populacional e aproveitando o campos naturais como alimento para os animais, diante do aumento da competição no mercado internacional, é pressionado a aumentar sua produção.
O modelo tradicional se tornou inviável.
Grandes fazendas foram divididas em terrenos menores na tentativa de colocar mais gado em menos espaço. Outras foram vendidas para forasteiros que não conhecem o ritmo do Pantanal e usam gramíneas africanas para converter em pasto áreas que não tinham esse fim.
“O pantaneiro não protegeu a região só porque gosta da natureza. Se a área fosse boa para soja, teria plantado. A inundação em parte do ano cria limitação para outros usos. Mas seu mérito foi: em vez de tentar mudar o local, ele se adaptou”, diz Ricardo Machado, diretor do programa Cerrado- Pantanal da CI, que defende incentivos para a manutenção do modelo tradicional.
“A carne produzida de modo sustentável deveria ser mais cara”, diz. O WWF, outra ONG ambientalista, também desenvolve projeto de certificação da carne para valorizar o cuidado na produção.
Aliada à pressão da pecuária está a ação de carvoarias ilegais. Em parceria com os fazendeiros, os carvoeiros “limpam” a área, tanto no alto da bacia quanto na planície, tirando toda madeira que pode virar carvão para abastecer as siderúrgicas que aportaram na região nos últimos anos.
Rica em minério de ferro, Corumbá por muitos anos apenas exportou o produto, sem beneficiamento. Só recentemente surgiram as primeiras siderúrgicas, ainda modestas, mas há planos para uma grandiosa expansão nos arredores de Corumbá.
“Para atender à sede chinesa por aço, a produção deve se elevar a milhões de toneladas por ano”, afirma o pesquisador André Carvalho, do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas, que avaliou o possível impacto desse crescimento no ambiente.
O principal problema é que o estoque legal de madeira plantada que pode ser convertido em carvão em Mato Grosso do Sul é pequeno, incapaz de atender a demanda. “A pressão já se dá sobre a vegetação nativa”, diz Carvalho.
Em 2007, o complexo minerossiderúrgico do Estado consumiu 240 mil toneladas de carvão – o equivalente, em área de madeira plantada para corte, a 5,5 mil hectares, segundo estudo realizado por Carvalho para a CI. A previsão é de que a demanda salte para 400 mil toneladas de carvão, ou 9 mil hectares de madeira plantada, até 2009. E continue subindo: para 1,4 milhão de toneladas de carvão, até 2011, e para 2,4 milhões de toneladas de carvão, o equivalente a uma área de 56 mil hectares, a partir de 2015.
A área de cultivo de madeira para abastecer continuamente o complexo equivale a sete vezes a estimada para o corte, uma vez que a árvore mais usada nas plantações é o eucalipto, que leva sete anos para chegar ao ponto de corte. Assim, no auge da produção de ferro-gusa, seria necessário plantar 392 mil hectares, calcula Carvalho.
Hoje, no entanto, há no máximo 5 mil hectares prontos para o corte no Estado, o que resulta no déficit de 4 mil hectares e, provavelmente, na pressão imediata sobre 40 mil hectares de mata nativa, cuja produtividade é cerca de dez vezes menor Boa parte do Cerrado já se perdeu exatamente para esse fim, quando as matas mineiras se exauriram e as siderúrgicas locais recorreram a outros estados para abastecer as usinas. “As empresas até plantaram eucalipto e pínus. Mas enquanto as árvores cresciam, tiveram de buscar carvão em outro lugar. Só em Mato Grosso do Sul, pelo menos 5 milhões de hectares de mata nativa foram derrubados e levados para Minas”, afirma Carvalho.
Para evitar que o novo alvo seja o Pantanal, o pesquisador sugere que se comece a plantar em áreas degradadas para, com base nos planos de expansão das companhias, gerar capacidade de abastecer o complexo de Mato Grosso do Sul no futuro. “Além de reduzir a pressão sobre os remanescentes, vai aquecer o mercado. Os 392 mil hectares de área plantada fora da Bacia do Alto Paraguai demandariam cerca de 49 mil empregos diretos e indiretos”, diz.
Natureza cheia
Apesar da cadeia de ações humanas que põe a natureza em risco, em parte graças a seus ciclos, ela continua forte como o tronco do quebracho – árvore nativa cuja madeira, de tão dura, foi usada na Guerra do Paraguai para furar os cascos dos navios.
Embora conte com aproximadamente só 4% do território em Unidades de Conservação e com a menor proporção de reserva legal – 20% – prevista no Código Florestal, o Pantanal tem as cheias como defesa. À primeira vista um obstáculo às atividades econômicas que “enriqueceram” o Cerrado, são elas que protegem o Pantanal das ameaças que pairam sobre seu vizinho.
É também o regime de cheias que diferencia o Pantanal das vegetações do entorno e possibilita que espécies de outros biomas do País se abriguem ali. Além de lhe garantir a beleza única e, com ela, o título de Patrimônio da Humanidade concedido pela Unesco. Elo entre as bacias do Prata e a Amazônica, o Pantanal exerce a função de corredor biogeográfico ao permitir a dispersão e a troca de espécies. Vivem em seus campos, brejos, matas ciliares, capões de mata e de cerrado cerca de 3.500 espécies de plantas, 463 de aves, 124 de mamíferos, 177 de répteis, 41 de anfíbios e 325 de peixes, segundo a CI.
Há poucas espécies endêmicas quando se compara com a Amazônia e a Mata Atlântica, mas o Pantanal contribui para a conservação de populações saudáveis de espécies ameaçadas originárias de outros estados. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, 41 espécies das que vivem no bioma estão ameaçadas por conta da diminuição do número de indivíduos em outras regiões. Algumas praticamente desapareceram fora do Pantanal, mas ali são encontradas facilmente , como a arara-azulgrande, a ariranha e o cervo-do-pantanal.
Por fim, a planície pantaneira regula o fluxo de água para a Bacia do Prata, ao reter por meses, no período da cheia, a água que desce das nascentes, liberando-a aos poucos para a bacia. Sem a vegetação, o fluxo pode descer rapidamente e provocar enchentes nas cidades à beira do Rio Paraguai.
“É o Pantanal que regula o ciclo de cheia do rio”, resume Machado, da CI.
Nas palavras de Almir Sater, “bestas são os outros, que não aprenderam com os pantaneiros como se cuida daquela imensidão”.