Por Amália Safatle
A ilusão da metrópole se desfaz, muda o padrão migratório no Brasil e pede nova organização social e espacial, das cidades pequenas à megalópole
Flores delicadas, pintadas à mão sobre o fundo corde- rosa, borboletas e ramagens se desenrolando em tons azuis e dourados. Assim ricamente decorada, a Princesa da Primavera, belo espécime da Cow Parade*, quase atolou na lama e no verão paulistanos se não tivesse sido arrastada, pela força das águas, de um posto de gasolina na Rua Turiaçu, Zona Oeste da cidade. A última tempestade havia chegado tão rápido que não deu para os funcionários do posto amarrarem suas patas. Ícone do sagrado e cercada de mitologia, a vaca subitamente viu-se deslocada, e teve de ser rebocada na carroceria de uma picape para outro local, não especificado pelo noticiário daquele dia.
*Exposição artística mundial, feita em lugares públicos, em que esculturas de vacas em fibra de vidro são decoradas por artistas locais. Em seguida, leiloam-se as obras e o dinheiro é revertido para entidades beneficentes.
São Paulo é assim, feita de mobilidade quando atrai e expulsa gente, draga objetos pelas ruas e pessoas pelos córregos, ergue e derruba casas, lança tentáculos sobre os territórios à sua volta e neles se espalha, esparrama e dependura, sem pedir muita licença. Também tem seu avesso, o da cidade estacionária. O trânsito parado, a imobilidade social, que congela a desigualdade e trava o acesso a oportunidades em um lugar onde se exige cada vez mais qualificação de uma população com poucas condições de melhorar sua formação educacional e profissional.
Quem migra está em busca de oportunidades objetivas como trabalho, renda, acesso a serviços e a bens de consumo e – em condições mais extremas – ao encalço da própria sobrevivência. A mobilidade física faria, então, as vezes da mobilidade social que não acontece no local de origem, neste país ainda tão díspar.
Mas quem migra também vai em busca de um devir, pertencente a um amanhã desconhecido em que potencialmente cabe tudo – felicidade, sucesso, relacionamentos, realização, mudança, esperança e, quiçá, o esquecimento de um passado, a vida difícil, a labuta inglória.
O Eldorado, a Terra Prometida, o Oriente, mais que lugares, são construções imaginárias, para o Bem ou para o Mal. Edward W. Said, na obra Orientalismo, mostra de forma magistral como o Oriente, antes de tudo, é uma invenção do Ocidente, que o reconhece sob o selo do exotismo e da inferioridade. De certa forma, construiu-se um dia um imaginário positivo para este Sudeste das grandes metrópoles, identificado como a terra das oportunidades. A Amazônia é outra dessas representações míticas que acenam com mais sonhos do que a realidade é capaz de entregar, como mostra a reportagem “Caravana sem fim“, nesta edição.
“Temos de desmanchar isso”, diz o economista André Urani, em referência às ilusões e ao mito do crescimento de São Paulo e Rio, em entrevista nesta edição. “As grandes regiões metropolitanas têm de se convencer de que não estão condenadas a crescer, elas podem encolher, e isso pode ser muito bom”, afirma o sócio-fundador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets).
“Socialmente, as grandes cidades chegaram a seu limiar”, diz Fausto Brito, professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar). “A grande pobreza no Brasil está hoje nas regiões metropolitanas, onde essas pessoas dependem de surtos de investimentos, como obras da construção civil, para arranjarem trabalho.”
Segundo dados expostos em 2007 por Urani na apresentação A encrenca metropolitana e nova agenda de desenvolvimento brasileira, as taxas de desemprego nas metrópoles brasileiras têm sido maiores do que no restante do Brasil, e há regiões metropolitanas em que o nível de indigência voltou a patamares pré-Plano Real.
A miragem da cidade grande, representação máxima da civilização e do progresso no Brasil, então se desfaz. Um novo padrão migratório se desenha. Ele não se aglutina mais em centros como Rio e São Paulo, e sim se espalha por suas franjas e se irradia em busca de novas plagas, como o Centro- Oeste, o Sul, as regiões de Campinas e do Vale do Paraíba, outras cidades da chamada macrometrópole paulista*, e até o Norte. Aguardam-se, a partir de dezembro, os primeiros dados do novo Censo Demográfico, que vão trazer informações atualizadas. “Mas, hoje, quem assiste pela televisão às pessoas sofrendo com a cidade alagada ainda terá vontade de se mudar para São Paulo?”, pergunta Brito.
*Enquanto a população da cidade de São Paulo praticamente não cresceu de 2000 a 2007, cidades como Paulínia, Itupeva, Santana de Parnaíba, São Lourenço da Serra e Bertioga tiveram taxa geométrica de crescimento anual superior a 4%, segundo
o IBGE.
Desde 2000, a Região Metropolitana de São Paulo tem apresentado um saldo negativo de migração, compensada em parte pelo crescimento vegetativo, mas também em queda.
O APITO FINAL DA FÁBRICA
Nos últimos anos, essa mudança na dinâmica populacional se explica pela desindustrialização de São Paulo e Rio. Segundo Urani, após o voraz crescimento da indústria, que tanto atraiu gente, em especial do Nordeste e de Minas Gerais, até aproximadamente a década de 80, as metrópoles perderam esse parque fabril para outras regiões – que se tornaram mais competitivas economicamente e viraram novos polos de migração, entre cidades médias e pequenas.
E hoje como fazer para que a dinâmica das migrações na direção das cidades pequenas e médias seja ordenada? “Por exemplo, um cara da periferia da Zona Oeste do Rio de Janeiro, se ele soubesse que aquele emprego na indústria que ele esperava não estará mais disponível no subúrbio do Rio, e sim haverá um tão bom quanto em Resende (RJ), ele poderia ir diretamente para lá, e encontrar uma escola de qualidade similar para seus filhos, uma moradia melhor, um contexto de menos violência”, diz Urani. “Ele tem uma série de dificuldades, e a primeira é de informação.”
Não é só isso. Segundo Eloisa Raymundo Holanda Rolim, diretora de planejamento da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), há cidades médias que passaram a atrair gente e a crescer, repetindo erros feitos pelas grandes cidades, por exemplo a construção de avenidas em fundo de vale. Esse tipo de construção foi muito implantado nos anos 60 e 70, pois eram os terrenos planos que sobravam na cidade em explosão imobiliária. Não é de hoje que se pode observar o problema que isso causa: impermeabilização de áreas que deveriam absorver as águas das chuvas, contribuindo para as enchentes que o paulistano conhece tão bem.
Enquanto isso, muitos dos que permanecem nas metrópoles sofrem em razão de oportunidades de trabalho limitadas e de uma perda crescente na qualidade de vida. O que será que ainda as prendem (aqui a reportagem sobre São Paulo e alguns de seus migrantes)? Como se sabe, essas cidades que incharam desordenadamente no boom industrial estão em colapso em termos de transporte público, habitação, educação de qualidade, saúde, lazer etc. Não bastasse isso, precisam destinar investimentos maciços para adaptação às mudanças do clima, em um cenário de intempéries cada vez mais intensas e frequentes.
Com a desindustrialização, o mercado de trabalho se sofisticou nas metrópoles. “Há uma certa ‘elitização’ dos empregos, para os quais se exigem requisitos mínimos. O balconista de uma loja, por exemplo, precisa saber operar um PC”, diz Eloisa. “Há um gap entre a oferta e a demanda de mão de obra para funções mais qualificadas.” Em São Paulo, quase metade da população adulta não tem o equivalente ao Ensino Fundamental. Com a valorização crescente dos imóveis nas áreas centrais da cidade, a população mais pobre foi empurrada para as bordas, e esse distanciamento as aparta também das possibilidades de ascensão, desfazendo aquela ilusão de migrar para conquistar mobilidade social.
“O espaço mais desprovido é o que recebe os migrantes mais pobres, num círculo perverso de localização dos menos qualificados, e com maior proporção de jovens em áreas onde qualquer melhora, ainda que do ponto de vista físico-espacial, torna-se apenas uma remota possibilidade”, escrevem em um artigo as professoras Suzana Pasternak e Lucia Machado Bógus, pesquisadoras do Observatório das Metrópoles* em São Paulo.
*Instituto virtual de pesquisa e formação que reúne mais de 200 pesquisadores de 51 instituições dos campos universitário, governamental e não governamental, sob a coordenação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da UFRJ, e da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional.
Nesse sentido, afirmam elas, “o espaço atua reforçando a mobilidade social descendente”. “A chamada ‘mobilidade circular’, que é apresentada por alguns autores como a alternativa possível de mobilidade social, hoje se apresenta apenas para a minoria mais qualificada, com alguma chance de substituir aqueles trabalhadores que, por morte, aposentadoria, promoção ou demissão, liberem alguma vaga no mercado de trabalho.”
E ponha descendente nisso, quando esse espaço, em termos geológicos, é tão suscetível à força da gravidade. Segundo o geólogo e consultor Álvaro Rodrigues dos Santos, ex-diretor de Planejamento e Gestão do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), o crescimento explosivo da população nas bordas de São Paulo a partir da metade do século XX levou a uma ocupação, sem nenhum critério técnico de construção, de terrenos não só com o relevo cada vez mais acidentado, mas também mais suscetível à erosão. Chamados de solos de alteração de rochas cristalinas, são 100 vezes mais erodíveis que os das regiões centrais da metrópole – denominados de solos superficiais laterizados e solos argilosos dos sedimentos terciários.
Não bastasse os riscos de vida implicados nesse tipo de ocupação, ela leva à perda de solos, ao assoreamento dos rios e, consequentemente, às enchentes. Segundo Santos, a perda média de solos por erosão na Região Metropolitana de São Paulo está estimada em algo próximo a 13,5 metros cúbicos por hectare/ano. Isso leva até 8,1 milhões de metros cúbicos/ano de sedimentos à rede de drenagem. “Como resultado, boa parte da rede de drenagem natural e construída perde até mais de 50% de sua capacidade original de vazão”, explica.
UMA NOVA ALEGORIA
Há propostas na praça para encontrar saídas que contemplem a ocupação dos trabalhadores, o revocacionamento das metrópoles e das cidades, a organização espacial da sociedade.
Uma delas, defendida por Urani, do Iets, é a formação planejada de uma megalópole brasileira, compreendendo os 242 municípios entre Rio, São Paulo e Juiz de Fora (MG). “A vantagem disso é criar instâncias de governança compartilhada e desinchar as metrópoles, ocupando essas cidades intermediárias de forma ordenada, e preservando os ativos ambientais que existem aqui”, diz ele. E fazendo desse novo território um polo irradiador de inovação para o mundo.
Para Brito, da UFMG, é preciso resgatar aquilo que estava na concepção original das cidades, criadas primordialmente como espaço de convivência pública. “Hoje elas não são mais o lócus de convivência, e sim o palco de conflitos permanentes”, diz.
Mas há canais que reatam os laços e promovem a sociabilidade e a espontaneidade, criam novas territorialidades e desafiam estruturas sedimentadas de poder e de imobilidade social no espaço urbano. É o que demonstra o geógrafo Alessandro Dozena, ao debruçar-se em estudos sobre uma intensa manifestação cultural brasileira: o samba.
“A estética do samba engloba o improviso, a ginga, a resistência às normas e ao que é disciplinador”, diz Dozena, autor de As Territorialidades do Samba na Cidade de São Paulo. Assim, desafia o ideário nacional de progresso e trabalho que teve São Paulo como representante máximo dentro do “projeto modernizador brasileiro” e hoje se vê imersa em problemas de toda magnitude e uma crise de identidade.
“Em uma perspectiva geográfica, o samba permite cada vez mais a configuração de ‘contraespaços’ dentro das ordens sociais majoritárias, tanto na escala das relações cotidianas quanto nas escalas mais amplas”, diz ele. Essa manifestação – que não aparece na mídia, interessada apenas na indústria espetacularizada do Carnaval – está nos bairros, nos galpões, nos viadutos, o ano inteiro.
É espontâneo e sociável, porque com quase tudo se faz samba: da caixinha de fósforos nasce um chocalho, de uma tampa ou prato surge um agogô, de um balde cria-se uma timba. Embora sua produção possa ser simples, trata-se de uma musicalidade complexa, que requer grande entrosamento para que o ritmo se expresse harmonicamente.
“A roda de samba requer cumplicidade e, quem não toca dança, quem não dança canta ou segura a criança, quem não canta assiste. Eis possivelmente uma das razões pela qual o samba seja gregário, facilitando as demarcações de território e de grupos sociais”, afirma.
Essa demarcação foi tão clara que é possível contar a história da migração e da expansão de São Paulo por suas escolas e grupos de samba. Enquanto poucas escolas, como Vai-Vai e Camisa Verde e Branco, continuam no Centro, outras 32 estão na Zona Leste e 20 na Zona Norte, sinalizando o espraiamento da população menos favorecida para as periferias, para as quebradas.
A própria palavra “quebrada” sugere um rompimento com a cidade estacionária e impermeável, com os velhos modelos, com aquilo que ruiu e já não oferece mais oportunidade. Da quebra com tudo isso é que pode surgir um novo desenho de alegoria, que se mova de forma dinâmica, vibrante, radiante. A quebrada vira um lugar ao Sol.
A volta dos que não foram
Em movimento paralelo à menor atração das metrópoles, Fausto Brito, da Universidade Federal de Minas Gerais, cita a queda no crescimento vegetativo da população nordestina e mineira, reduzindo assim o contingente de migrantes. “Há uma perda de importância do Nordeste como região expulsora”, completa Raul Silveira Neto, da Universidade Federal de Pernambuco. Um trabalho ainda preliminar realizado por ele e pelo economista Carlos Azzoni, diretor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, indica que o Bolsa Família influi na decisão de não migrar – mas não na de retornar.
O que ainda se prevê, diz Silveira Neto, é uma migração intrarregional do Nordeste, do campo para as capitais. Isso porque 27% da população nordestina ainda é rural, e tende a sair por conta de um grau crescente de escolarização e do aumento da tecnologia no campo. “Isso já aconteceria independente de um movimento de expulsão ligado à mudança climática”, afirma.
A mudança do clima, porém, introduz uma variável muito grande, pois pode levar o Nordeste a perdas de até 11,4% no PIB, no cenário mais pessimista desenhado pelo estudo.
Segundo o estudo Mudanças Climáticas, Migrações e Saúde: Cenários para o Nordeste Brasileiro 2000-2050, elaborado pela Fiocruz e pela UFMG, quase 500 mil pessoas no Brasil deverão migrar em razão da seca no Nordeste e da transformação do Semiárido em uma região árida.
[:en]A ilusão da metrópole se desfaz, muda o padrão migratório no Brasil e pede nova organização social e espacial, das cidades pequenas à megalópole
Flores delicadas, pintadas à mão sobre o fundo corde- rosa, borboletas e ramagens se desenrolando em tons azuis e dourados. Assim ricamente decorada, a Princesa da Primavera, belo espécime da Cow Parade*, quase atolou na lama e no verão paulistanos se não tivesse sido arrastada, pela força das águas, de um posto de gasolina na Rua Turiaçu, Zona Oeste da cidade. A última tempestade havia chegado tão rápido que não deu para os funcionários do posto amarrarem suas patas. Ícone do sagrado e cercada de mitologia, a vaca subitamente viu-se deslocada, e teve de ser rebocada na carroceria de uma picape para outro local, não especificado pelo noticiário daquele dia.
*Exposição artística mundial, feita em lugares públicos, em que esculturas de vacas em fibra de vidro são decoradas por artistas locais. Em seguida, leiloam-se as obras e o dinheiro é revertido para entidades beneficentes.
São Paulo é assim, feita de mobilidade quando atrai e expulsa gente, draga objetos pelas ruas e pessoas pelos córregos, ergue e derruba casas, lança tentáculos sobre os territórios à sua volta e neles se espalha, esparrama e dependura, sem pedir muita licença. Também tem seu avesso, o da cidade estacionária. O trânsito parado, a imobilidade social, que congela a desigualdade e trava o acesso a oportunidades em um lugar onde se exige cada vez mais qualificação de uma população com poucas condições de melhorar sua formação educacional e profissional.
Quem migra está em busca de oportunidades objetivas como trabalho, renda, acesso a serviços e a bens de consumo e – em condições mais extremas – ao encalço da própria sobrevivência. A mobilidade física faria, então, as vezes da mobilidade social que não acontece no local de origem, neste país ainda tão díspar.
Mas quem migra também vai em busca de um devir, pertencente a um amanhã desconhecido em que potencialmente cabe tudo – felicidade, sucesso, relacionamentos, realização, mudança, esperança e, quiçá, o esquecimento de um passado, a vida difícil, a labuta inglória.
O Eldorado, a Terra Prometida, o Oriente, mais que lugares, são construções imaginárias, para o Bem ou para o Mal. Edward W. Said, na obra Orientalismo, mostra de forma magistral como o Oriente, antes de tudo, é uma invenção do Ocidente, que o reconhece sob o selo do exotismo e da inferioridade. De certa forma, construiu-se um dia um imaginário positivo para este Sudeste das grandes metrópoles, identificado como a terra das oportunidades. A Amazônia é outra dessas representações míticas que acenam com mais sonhos do que a realidade é capaz de entregar, como mostra a reportagem “Caravana sem fim“, nesta edição.
“Temos de desmanchar isso”, diz o economista André Urani, em referência às ilusões e ao mito do crescimento de São Paulo e Rio, em entrevista nesta edição. “As grandes regiões metropolitanas têm de se convencer de que não estão condenadas a crescer, elas podem encolher, e isso pode ser muito bom”, afirma o sócio-fundador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets).
“Socialmente, as grandes cidades chegaram a seu limiar”, diz Fausto Brito, professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar). “A grande pobreza no Brasil está hoje nas regiões metropolitanas, onde essas pessoas dependem de surtos de investimentos, como obras da construção civil, para arranjarem trabalho.”
Segundo dados expostos em 2007 por Urani na apresentação A encrenca metropolitana e nova agenda de desenvolvimento brasileira, as taxas de desemprego nas metrópoles brasileiras têm sido maiores do que no restante do Brasil, e há regiões metropolitanas em que o nível de indigência voltou a patamares pré-Plano Real.
A miragem da cidade grande, representação máxima da civilização e do progresso no Brasil, então se desfaz. Um novo padrão migratório se desenha. Ele não se aglutina mais em centros como Rio e São Paulo, e sim se espalha por suas franjas e se irradia em busca de novas plagas, como o Centro- Oeste, o Sul, as regiões de Campinas e do Vale do Paraíba, outras cidades da chamada macrometrópole paulista*, e até o Norte. Aguardam-se, a partir de dezembro, os primeiros dados do novo Censo Demográfico, que vão trazer informações atualizadas. “Mas, hoje, quem assiste pela televisão às pessoas sofrendo com a cidade alagada ainda terá vontade de se mudar para São Paulo?”, pergunta Brito.
*Enquanto a população da cidade de São Paulo praticamente não cresceu de 2000 a 2007, cidades como Paulínia, Itupeva, Santana de Parnaíba, São Lourenço da Serra e Bertioga tiveram taxa geométrica de crescimento anual superior a 4%, segundo
o IBGE.
Desde 2000, a Região Metropolitana de São Paulo tem apresentado um saldo negativo de migração, compensada em parte pelo crescimento vegetativo, mas também em queda.
O APITO FINAL DA FÁBRICA
Nos últimos anos, essa mudança na dinâmica populacional se explica pela desindustrialização de São Paulo e Rio. Segundo Urani, após o voraz crescimento da indústria, que tanto atraiu gente, em especial do Nordeste e de Minas Gerais, até aproximadamente a década de 80, as metrópoles perderam esse parque fabril para outras regiões – que se tornaram mais competitivas economicamente e viraram novos polos de migração, entre cidades médias e pequenas.
E hoje como fazer para que a dinâmica das migrações na direção das cidades pequenas e médias seja ordenada? “Por exemplo, um cara da periferia da Zona Oeste do Rio de Janeiro, se ele soubesse que aquele emprego na indústria que ele esperava não estará mais disponível no subúrbio do Rio, e sim haverá um tão bom quanto em Resende (RJ), ele poderia ir diretamente para lá, e encontrar uma escola de qualidade similar para seus filhos, uma moradia melhor, um contexto de menos violência”, diz Urani. “Ele tem uma série de dificuldades, e a primeira é de informação.”
Não é só isso. Segundo Eloisa Raymundo Holanda Rolim, diretora de planejamento da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), há cidades médias que passaram a atrair gente e a crescer, repetindo erros feitos pelas grandes cidades, por exemplo a construção de avenidas em fundo de vale. Esse tipo de construção foi muito implantado nos anos 60 e 70, pois eram os terrenos planos que sobravam na cidade em explosão imobiliária. Não é de hoje que se pode observar o problema que isso causa: impermeabilização de áreas que deveriam absorver as águas das chuvas, contribuindo para as enchentes que o paulistano conhece tão bem.
Enquanto isso, muitos dos que permanecem nas metrópoles sofrem em razão de oportunidades de trabalho limitadas e de uma perda crescente na qualidade de vida. O que será que ainda as prendem (aqui a reportagem sobre São Paulo e alguns de seus migrantes)? Como se sabe, essas cidades que incharam desordenadamente no boom industrial estão em colapso em termos de transporte público, habitação, educação de qualidade, saúde, lazer etc. Não bastasse isso, precisam destinar investimentos maciços para adaptação às mudanças do clima, em um cenário de intempéries cada vez mais intensas e frequentes.
Com a desindustrialização, o mercado de trabalho se sofisticou nas metrópoles. “Há uma certa ‘elitização’ dos empregos, para os quais se exigem requisitos mínimos. O balconista de uma loja, por exemplo, precisa saber operar um PC”, diz Eloisa. “Há um gap entre a oferta e a demanda de mão de obra para funções mais qualificadas.” Em São Paulo, quase metade da população adulta não tem o equivalente ao Ensino Fundamental. Com a valorização crescente dos imóveis nas áreas centrais da cidade, a população mais pobre foi empurrada para as bordas, e esse distanciamento as aparta também das possibilidades de ascensão, desfazendo aquela ilusão de migrar para conquistar mobilidade social.
“O espaço mais desprovido é o que recebe os migrantes mais pobres, num círculo perverso de localização dos menos qualificados, e com maior proporção de jovens em áreas onde qualquer melhora, ainda que do ponto de vista físico-espacial, torna-se apenas uma remota possibilidade”, escrevem em um artigo as professoras Suzana Pasternak e Lucia Machado Bógus, pesquisadoras do Observatório das Metrópoles* em São Paulo.
*Instituto virtual de pesquisa e formação que reúne mais de 200 pesquisadores de 51 instituições dos campos universitário, governamental e não governamental, sob a coordenação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da UFRJ, e da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional.
Nesse sentido, afirmam elas, “o espaço atua reforçando a mobilidade social descendente”. “A chamada ‘mobilidade circular’, que é apresentada por alguns autores como a alternativa possível de mobilidade social, hoje se apresenta apenas para a minoria mais qualificada, com alguma chance de substituir aqueles trabalhadores que, por morte, aposentadoria, promoção ou demissão, liberem alguma vaga no mercado de trabalho.”
E ponha descendente nisso, quando esse espaço, em termos geológicos, é tão suscetível à força da gravidade. Segundo o geólogo e consultor Álvaro Rodrigues dos Santos, ex-diretor de Planejamento e Gestão do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), o crescimento explosivo da população nas bordas de São Paulo a partir da metade do século XX levou a uma ocupação, sem nenhum critério técnico de construção, de terrenos não só com o relevo cada vez mais acidentado, mas também mais suscetível à erosão. Chamados de solos de alteração de rochas cristalinas, são 100 vezes mais erodíveis que os das regiões centrais da metrópole – denominados de solos superficiais laterizados e solos argilosos dos sedimentos terciários.
Não bastasse os riscos de vida implicados nesse tipo de ocupação, ela leva à perda de solos, ao assoreamento dos rios e, consequentemente, às enchentes. Segundo Santos, a perda média de solos por erosão na Região Metropolitana de São Paulo está estimada em algo próximo a 13,5 metros cúbicos por hectare/ano. Isso leva até 8,1 milhões de metros cúbicos/ano de sedimentos à rede de drenagem. “Como resultado, boa parte da rede de drenagem natural e construída perde até mais de 50% de sua capacidade original de vazão”, explica.
UMA NOVA ALEGORIA
Há propostas na praça para encontrar saídas que contemplem a ocupação dos trabalhadores, o revocacionamento das metrópoles e das cidades, a organização espacial da sociedade.
Uma delas, defendida por Urani, do Iets, é a formação planejada de uma megalópole brasileira, compreendendo os 242 municípios entre Rio, São Paulo e Juiz de Fora (MG). “A vantagem disso é criar instâncias de governança compartilhada e desinchar as metrópoles, ocupando essas cidades intermediárias de forma ordenada, e preservando os ativos ambientais que existem aqui”, diz ele. E fazendo desse novo território um polo irradiador de inovação para o mundo.
Para Brito, da UFMG, é preciso resgatar aquilo que estava na concepção original das cidades, criadas primordialmente como espaço de convivência pública. “Hoje elas não são mais o lócus de convivência, e sim o palco de conflitos permanentes”, diz.
Mas há canais que reatam os laços e promovem a sociabilidade e a espontaneidade, criam novas territorialidades e desafiam estruturas sedimentadas de poder e de imobilidade social no espaço urbano. É o que demonstra o geógrafo Alessandro Dozena, ao debruçar-se em estudos sobre uma intensa manifestação cultural brasileira: o samba.
“A estética do samba engloba o improviso, a ginga, a resistência às normas e ao que é disciplinador”, diz Dozena, autor de As Territorialidades do Samba na Cidade de São Paulo. Assim, desafia o ideário nacional de progresso e trabalho que teve São Paulo como representante máximo dentro do “projeto modernizador brasileiro” e hoje se vê imersa em problemas de toda magnitude e uma crise de identidade.
“Em uma perspectiva geográfica, o samba permite cada vez mais a configuração de ‘contraespaços’ dentro das ordens sociais majoritárias, tanto na escala das relações cotidianas quanto nas escalas mais amplas”, diz ele. Essa manifestação – que não aparece na mídia, interessada apenas na indústria espetacularizada do Carnaval – está nos bairros, nos galpões, nos viadutos, o ano inteiro.
É espontâneo e sociável, porque com quase tudo se faz samba: da caixinha de fósforos nasce um chocalho, de uma tampa ou prato surge um agogô, de um balde cria-se uma timba. Embora sua produção possa ser simples, trata-se de uma musicalidade complexa, que requer grande entrosamento para que o ritmo se expresse harmonicamente.
“A roda de samba requer cumplicidade e, quem não toca dança, quem não dança canta ou segura a criança, quem não canta assiste. Eis possivelmente uma das razões pela qual o samba seja gregário, facilitando as demarcações de território e de grupos sociais”, afirma.
Essa demarcação foi tão clara que é possível contar a história da migração e da expansão de São Paulo por suas escolas e grupos de samba. Enquanto poucas escolas, como Vai-Vai e Camisa Verde e Branco, continuam no Centro, outras 32 estão na Zona Leste e 20 na Zona Norte, sinalizando o espraiamento da população menos favorecida para as periferias, para as quebradas.
A própria palavra “quebrada” sugere um rompimento com a cidade estacionária e impermeável, com os velhos modelos, com aquilo que ruiu e já não oferece mais oportunidade. Da quebra com tudo isso é que pode surgir um novo desenho de alegoria, que se mova de forma dinâmica, vibrante, radiante. A quebrada vira um lugar ao Sol.
A volta dos que não foram
Em movimento paralelo à menor atração das metrópoles, Fausto Brito, da Universidade Federal de Minas Gerais, cita a queda no crescimento vegetativo da população nordestina e mineira, reduzindo assim o contingente de migrantes. “Há uma perda de importância do Nordeste como região expulsora”, completa Raul Silveira Neto, da Universidade Federal de Pernambuco. Um trabalho ainda preliminar realizado por ele e pelo economista Carlos Azzoni, diretor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, indica que o Bolsa Família influi na decisão de não migrar – mas não na de retornar.
O que ainda se prevê, diz Silveira Neto, é uma migração intrarregional do Nordeste, do campo para as capitais. Isso porque 27% da população nordestina ainda é rural, e tende a sair por conta de um grau crescente de escolarização e do aumento da tecnologia no campo. “Isso já aconteceria independente de um movimento de expulsão ligado à mudança climática”, afirma.
A mudança do clima, porém, introduz uma variável muito grande, pois pode levar o Nordeste a perdas de até 11,4% no PIB, no cenário mais pessimista desenhado pelo estudo.
Segundo o estudo Mudanças Climáticas, Migrações e Saúde: Cenários para o Nordeste Brasileiro 2000-2050, elaborado pela Fiocruz e pela UFMG, quase 500 mil pessoas no Brasil deverão migrar em razão da seca no Nordeste e da transformação do Semiárido em uma região árida.