Heterogêneo, pulsante e poderoso, o caldo das periferias desafia estereótipos e empacotamentos. A cultura transformadora de quem vive nas bordas de um suposto centro social-político-econômico prova que a riqueza está em respeitar as diferenças, cultivar a diversidade e tecer pontes
Diante de uma oportunidade, pode ser que muitos moradores de bairros da periferia escolham mudar-se para áreas centrais, onde o poder público se faz mais presente. E o inverso? Será verdadeiro? A técnica em radiologia do serviço público de saúde Eliane Filomena Pedrotti é prova de que sim. Prestes a se aposentar, há um ano ela trocou a Mooca, tradicional bairro no centro expandido de São Paulo, pelo distante Jardim Keralux, que 18 anos atrás começou a brotar sobre um solo contaminado nas franjas de Ermelino Matarazzo, distrito da Zona Leste da cidade, e se tornou o chão de cerca de 2,5 mil famílias. Não, Eliane Filomena não passava por dificuldades financeiras.
Ela veio no rastro da filha Priscila, que cursa Lazer e Turismo na vizinha USP Leste, e encontrou ali um novo projeto de vida. Ao lado da líder comunitária Terezinha Oliveira, Eliane ajuda a engrossar a turma de voluntários organizada pelo incansável Padre Ticão[1], que não dá descanso aos secretários municipais nem ao subprefeito da região. “Fui acolhida pela comunidade do Keralux como nunca havia sido em outro lugar, comprei uma casa aqui e me juntei à luta por melhorias.” A julgar pelo rol de demandas[2] dos moradores reunidos sábado de manhã (15 de fevereiro) na pequena praça do bairro, Eliane Filomena encontrou trabalho para uma vida.
[1] Padre Antonio Marchioni, um dos principais líderes religiosos e comunitários da Zona Leste de São Paulo
[2] As demandas mais urgentes são o asfaltamento — para o qual a Cetesb já deu parecer favorável no laudo das análises de contaminação do solo —, a regularização dos terrenos e uma passarela para pedestres e ciclistas entre o bairro e a estação USP Leste da CPTM
Ao transformar o Jardim Keralux no centro da própria vida, Eliane Filomena sem saber ajudou a problematizar um pouco mais o conceito de “periferia”. Do ponto de vista de quem habita o centro geográfico da cidade, essa mulher se deslocou no contrafluxo. Seria esse um sinal da existência de uma fronteira separando o centro da periferia? Nesse caso, quem a criou? Terá sido o poder público, na medida em que serviços e equipamentos alcançam precariamente as extremidades do município? Ou, quem sabe, é só uma questão de estrato socioeconômico, definido pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) como classes A, B, C, D e E, em que quanto mais “A” mais ao centro? Ou de grau de escolaridade, em que quanto menos títulos acadêmicos mais à periferia? Nenhumas das questões anteriores ou todas elas? Quem souber a resposta, haverá de saber também por que o rolezinho “causou” tanto em São Paulo.
O termo “periferia” é mais usado em São Paulo do que no Rio de Janeiro, onde as favelas estão espalhadas por toda a cidade e não nas extremidades. Assim, o correspondente carioca à dicotomia paulistana “periferia-centro” seria “favela-asfalto”.
PRA LÁ DE MARRAKESH
O intelectual palestino-americano Edward Said se surpreendeu com o sucesso mundial do seu Orientalismo, livro de 1978, em que desvenda o caráter arrogante da construção do termo “Oriente” pelos colonizadores europeus (França e Inglaterra, com o apoio dos Estados Unidos), por denotar uma suposta superioridade da cultura ocidental europeia em relação ao “exotismo” dos países e povos árabes e asiáticos.
Longe de significar apenas uma referência inocente aos hemisférios, para Said, a divisão do mundo em “Oriente” e “Ocidente” intensificou as diferenças e dificultou a aproximação entre as várias culturas. O geógrafo Jorge Luiz Barbosa, fundador do Observatório de Favelas, de certo modo transporta a tese do Orientalismo para o século XXI e para o Brasil ao afirmar que “construções binárias ocultam contradições e conflitos, perpetuam e naturalizam as desigualdades” (mais em “Outra utopia de cidade”).
Nesse caso, será “periferia” a melhor expressão a ser usada para se referir aos bairros mais afastados do centro da cidade? O filósofo Ludwig Wittgenstein diria que o significado na linguagem está no uso que dela se faz em jogos linguísticos particulares. Nesse caso, a criatividade que pulsa hoje nas periferias urbanas brasileiras (mais no box abaixo) talvez seja de fato um convite à valorização do termo “periferia”.
A jornalista Aline Rodrigues, do coletivo de comunicação Periferia em Movimento, idealizado juntamente com outros três colegas[3] em 2008, pensa que sim. “Entendo que existam várias opiniões sobre esse assunto, mas a minha é a de que ainda é preciso destacar, sim, o termo ‘periferia’.” O coletivo de comunicação foi criado – a princípio seria apenas um trabalho de conclusão de curso da faculdade – porque o centro, e nele a grande imprensa, costuma retratar a periferia como um bloco homogêneo repleto de carências. “Nossa maior missão é mostrar as culturas transformadoras das periferias e deixar implícito que não somos um bolo só, com os mesmos gostos e escolhas na vida”, ressalta Aline.
[3]Ana Paula Fonseca, Sueli Carneiro e Thiago Borges, todos moradores de bairros do extremo sul de São Paulo
Quando não é para mostrar o lado negativo, a grande imprensa se desloca até a periferia atrás de algo ou de alguém que já se tornou uma referência local ou nacional no universo cultural da periferia. “Faça uma busca e repare como os mesmos personagens e as mesmas histórias se repetem na grande mídia”, recomenda. “Portanto, ainda somos um tipo estereotipado.”
A razão do estereótipo pode estar na ignorância sobre o tema. “Quando falamos em periferia, pouco sabemos do que estamos falando”, diz a cientista social Ana Lucia Miranda, diretora da área qualitativa da OMA Pesquisa[4]. “Esses são estudos que o Brasil está devendo a si mesmo.” Nos últimos anos, houve, afinal, um crescimento efetivo de renda, maior acesso a bens de consumo e à informação, embora de péssima qualidade, por meio da internet e da televisão. Tudo isso, segundo ela, criou uma ebulição no País. Muitas pessoas passaram a ter demandas que não tinham, tornaram-se mais críticas e estão realizando uma transformação. “O Brasil passa por um processo de formação de cidadania”, afirma.
[4] Empresa que faz pesquisas de opinião para o mercado
A BELEZA DO MORTO
Independentemente dos estereótipos e da falta de estudos sobre a temática, o “centro”, ou o chamado mainstream, sempre viveu, vestiu e respirou cultura popular. Do samba dos morros cariocas ao soul e ao hip-hop das comunidades afro-americanas, há uma clara apropriação pelo “centro” dessa cultura nas suas várias modalidades – arte de rua, música, moda, literatura etc. (Mais em “O morro tem vez”.)
Produtores, curadores, editores e designers que trabalham para o capital empacotam e vendem tudo isso como tendência de mercado. Esse empacotamento parece funcionar como uma espécie de “linha de segurança”, que demarca o espaço social de cada um.
O rompimento dessa “linha” para além da arte, caso dos rolezinhos, seria um gatilho para expor os conflitos sociais? O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que um aspecto dessa valorização da chamada cultura de periferia é o da formação de novos atores sociais afirmando o orgulho de pertencer aos bairros periféricos da cidade.
Ele cita o sociólogo jamaicano Stuart Hall[5], que dizia que a cultura periférica, apesar de marginal em relação ao mainstream, sempre foi um espaço absurdamente produtivo. E não há dúvida de que o mercado vai tentar capitalizar essas movimentações. Assim, conforme Hall, designações como “popular”, “periférico”, “alternativo” ou “negro”, de certa forma, atribuem uma ideia de autenticidade às expressões culturais.
[5] Falecido em fevereiro em Londres, o jamaicano Stuart Hall (1932-2014) dirigiu o Centro de Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, e foi editor fundador da New Left Review
Dependendo da legitimidade popular, muitos desses movimentos passam a ser expostos não mais por agentes da periferia, mas por artistas em posição mais central que querem atribuir originalidade a sua produção e se afirmar como um incentivador da cultura popular.
Ao se falar de apropriação da cultura popular, não se pode esquecer também do conceito da “beleza do morto”, criada pelo historiador francês Michel De Certeau. Ele se referia à valorização de determinadas manifestações culturais sem sequer a participação efetiva desses agentes. “Bom mesmo era o samba de raiz, não esse som deturpado que se ouve e dança atualmente nos bailes da periferia”, ironiza Pereira. A arquiteta e urbanista Natacha Rena[6], professora da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, também vê nesse movimento a lógica do capitalismo. Mais inteligente que o Estado, o capital assimila as produções populares em vez de bater de frente. Lembra o exemplo clássico da calça jeans – originalmente uniforme dos montadores de fábrica nos Estados Unidos –, de que os hippies se apropriaram em um movimento de contracultura anticapital. “Hoje algumas pessoas pagam R$ 2 mil em uma calça jeans com strass”, exemplifica.
[6] É também coordenadora do Programa DESEJA.CA, ou Desenvolvimento Sustentável e Empreendedorismo Solidário no Jardim Canadá
Esse mesmo processo já começa a acontecer com o funk, por exemplo. Para Natacha, essa é a música revolucionária atual, uma vez que é construída dentro de um ambiente rebelde, machista e até racista, cujos habitantes brancos do centro, com uma cultura mais europeizada, não podem suportar. “O corpo nu da menina do funk, da popozuda, também é uma forma de rebeldia, de revolução estética e cultural. Essas meninas têm poder, por mais que o funk seja machista, por mais que a objetifique naquele contexto.” O trabalho costumeiro do capital, prossegue a urbanista, é capturar essa música revolucionária e transformadora, adocicá-la e europeizá-la, substituindo suas letras por outras, de preferência que falem de amor. Assim como um dia aconteceu com o samba.
“ROLE-VOLUÇÃO”
Os recentes rolezinhos promovidos no Rio de Janeiro e em São Paulo jogaram um pouco mais de poeira no cenário sobre a existência ou não de fronteiras separando o centro da periferia, ou o povo do “asfalto” do povo das favelas. E não são só os meninos que se produzem para o rolê no shopping que confundem esse debate. As reações e posturas também dão o que pensar.
No final de fevereiro, a jornalista Cleo Guimarães publicou nota em sua coluna no jornal O Globo sobre a escandalosa foto do Morro do Vidigal, na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, que decorava o Village Mall[7], na Barra da Tijuca. Manipulada digitalmente, a favela do Vidigal, uma das maiores da cidade, simplesmente desapareceu. No lugar, só vegetação. Em tempo: o shopping culpou o decorador.
[7] Encontram-se nesse shopping as filiais de algumas das grifes mais sofisticadas do mundo, como Louis Vuitton, Prada, Burberry’s e Gucci
Navegando em águas opostas às dos argumentos de Natacha, o antropólogo Alexandre Pereira entende que “os rolezinhos, assim como o funk ostentação, não pretendem resgatar nenhuma expressão cultural de raiz e não se propõem a uma contestação política ao sistema – ao contrário, exaltam o consumo de produtos considerados caros e acabam gerando certo desconforto à esquerda e à direita”.
Natacha Rena reconhece que o desconforto, de fato, atinge todos os lados. No entanto, ela vê, sim, um movimento político nos rolezinhos, ainda que não partidário. Normalmente, à periferia é permitido adentrar os centros mais ricos da cidade para trabalhar ou para consumir em silêncio. O rolezinho passa então a ser um movimento político, na medida em que as pessoas encontraram uma forma de furar a barreira do racismo associado à questão social e se colocar dentro dos shoppings de uma maneira empoderada, em grupo.
“Não podemos achar que porque eles entraram no shopping e falaram que estão ali para pegar mulher e ostentar, que isso é um movimento da direita ou um movimento do capital. Não é. Usar a ostentação como ‘ingresso’ para frequentar o shopping é uma forma de rebeldia também às avessas da lógica de esquerda. Acho que a gente tem de entender tudo isso com um olhar muito cuidadoso, mais antropológico e menos racista”, opina.
FELICIDADE NO EXTREMO
Sem nunca ter ouvido falar em Eliane Filomena Pedrotti e sua guinada rumo à periferia da periferia, Natacha Rena a desvenda por acaso ao expor sua teoria sobre a potência de um país com o hibridismo brasileiro, formada por culturas negra, indígena, italiana, japonesa, espanhola e portuguesa. Segundo ela, deixar-se contagiar por essa mistura de forma menos preconceituosa é criar um Brasil mais autônomo e único no mundo, o que seria positivo até para o capital.
“A potência da precariedade também faz surgir um estilo de vida, muito mais visível nas favelas, baseado em solidariedade e no uso do espaço público. A rua é continuidade da casa, e a casa, continuidade da rua. Juntar todo mundo para assar um churrasquinho, beber cerveja e ouvir um samba ou um funk; essa alegria de viver em comunidade, o centro não tem. Lá, cada família na sua caixinha.”
A chuva que caiu forte naquele sábado de manhã sobre o Jardim Keralux não dispersou de todo a reunião por melhorias do Padre Ticão.
Logo alguém abriu a porta de casa para abrigar o encontro e pediu para a nova vizinha Eliane Filomena se apressar. “Aqui eu sou muito mais feliz”, despediu-se. Colaboraram: Amália Safatle e Mônica C. Ribeiro
Leia a íntegra da entrevista com Ana Lucia Miranda
PULSAÇÃO NAS EXTREMIDADES
O sentimento que parece predominar entre os inúmeros agentes transformadores de bairros da periferia é o de que, se não dá para ir ao centro por ser muito longe ou muito caro, por que não transformar em centro o nosso bairro. “Depois de décadas de mobilização por saúde, moradia, transporte é hora de lutar também por coisas não materiais”, diz Jéssica Moreira, do Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento de Perus, na Zona Norte da capital paulista, cujo objetivo é converter o prédio abandonado em centro cultural.Do outro lado da cidade, o catador Pedro Henrique Mesquita conta: “Brigar com o poder público a gente não tem condições, então o jeito é botar a mão na massa”. Assim, ele mesmo coordenou a retirada de um lixão na entrada do Jardim Eliane, na Cidade Líder, Zona Leste. Reciclou o que pôde, criou esculturas de pneus e transformou o terreno limpo em um amplo campo de futebol que, na falta da grama, cobriu com capa de fio moída para a criançada não se machucar quando cair.
Em outra borda da cidade, rolam saraus e cinema na laje. São programas da agenda regular no Bar do Zé Batidão, no jardim São Luís, na Zona Sul, promovidos pela Cooperifa, um movimento cultural criado pelo poeta Sérgio Vaz (mais em “Boca a Boca”). Essa história está bem descrita no livro Cooperifa, Antropofagia Periférica (em alusão à Semana de Arte Moderna de 1922), que pode ser acessado online. Conheça dezenas de outras ideias e soluções criativas em execução nas muitas periferias paulistanas no vídeo São Paulo – Criatividade Sem Limite (mais na nota “Criatividade ao extremo”).
[:en]Heterogêneo, pulsante e poderoso, o caldo das periferias desafia estereótipos e empacotamentos. A cultura transformadora de quem vive nas bordas de um suposto centro social-político-econômico prova que a riqueza está em respeitar as diferenças, cultivar a diversidade e tecer pontes
Diante de uma oportunidade, pode ser que muitos moradores de bairros da periferia escolham mudar-se para áreas centrais, onde o poder público se faz mais presente. E o inverso? Será verdadeiro? A técnica em radiologia do serviço público de saúde Eliane Filomena Pedrotti é prova de que sim. Prestes a se aposentar, há um ano ela trocou a Mooca, tradicional bairro no centro expandido de São Paulo, pelo distante Jardim Keralux, que 18 anos atrás começou a brotar sobre um solo contaminado nas franjas de Ermelino Matarazzo, distrito da Zona Leste da cidade, e se tornou o chão de cerca de 2,5 mil famílias. Não, Eliane Filomena não passava por dificuldades financeiras.
Ela veio no rastro da filha Priscila, que cursa Lazer e Turismo na vizinha USP Leste, e encontrou ali um novo projeto de vida. Ao lado da líder comunitária Terezinha Oliveira, Eliane ajuda a engrossar a turma de voluntários organizada pelo incansável Padre Ticão[1], que não dá descanso aos secretários municipais nem ao subprefeito da região. “Fui acolhida pela comunidade do Keralux como nunca havia sido em outro lugar, comprei uma casa aqui e me juntei à luta por melhorias.” A julgar pelo rol de demandas[2] dos moradores reunidos sábado de manhã (15 de fevereiro) na pequena praça do bairro, Eliane Filomena encontrou trabalho para uma vida.
[1] Padre Antonio Marchioni, um dos principais líderes religiosos e comunitários da Zona Leste de São Paulo
[2] As demandas mais urgentes são o asfaltamento — para o qual a Cetesb já deu parecer favorável no laudo das análises de contaminação do solo —, a regularização dos terrenos e uma passarela para pedestres e ciclistas entre o bairro e a estação USP Leste da CPTM
Ao transformar o Jardim Keralux no centro da própria vida, Eliane Filomena sem saber ajudou a problematizar um pouco mais o conceito de “periferia”. Do ponto de vista de quem habita o centro geográfico da cidade, essa mulher se deslocou no contrafluxo. Seria esse um sinal da existência de uma fronteira separando o centro da periferia? Nesse caso, quem a criou? Terá sido o poder público, na medida em que serviços e equipamentos alcançam precariamente as extremidades do município? Ou, quem sabe, é só uma questão de estrato socioeconômico, definido pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) como classes A, B, C, D e E, em que quanto mais “A” mais ao centro? Ou de grau de escolaridade, em que quanto menos títulos acadêmicos mais à periferia? Nenhumas das questões anteriores ou todas elas? Quem souber a resposta, haverá de saber também por que o rolezinho “causou” tanto em São Paulo.
O termo “periferia” é mais usado em São Paulo do que no Rio de Janeiro, onde as favelas estão espalhadas por toda a cidade e não nas extremidades. Assim, o correspondente carioca à dicotomia paulistana “periferia-centro” seria “favela-asfalto”.
PRA LÁ DE MARRAKESH
O intelectual palestino-americano Edward Said se surpreendeu com o sucesso mundial do seu Orientalismo, livro de 1978, em que desvenda o caráter arrogante da construção do termo “Oriente” pelos colonizadores europeus (França e Inglaterra, com o apoio dos Estados Unidos), por denotar uma suposta superioridade da cultura ocidental europeia em relação ao “exotismo” dos países e povos árabes e asiáticos.
Longe de significar apenas uma referência inocente aos hemisférios, para Said, a divisão do mundo em “Oriente” e “Ocidente” intensificou as diferenças e dificultou a aproximação entre as várias culturas. O geógrafo Jorge Luiz Barbosa, fundador do Observatório de Favelas, de certo modo transporta a tese do Orientalismo para o século XXI e para o Brasil ao afirmar que “construções binárias ocultam contradições e conflitos, perpetuam e naturalizam as desigualdades” (mais em “Outra utopia de cidade”).
Nesse caso, será “periferia” a melhor expressão a ser usada para se referir aos bairros mais afastados do centro da cidade? O filósofo Ludwig Wittgenstein diria que o significado na linguagem está no uso que dela se faz em jogos linguísticos particulares. Nesse caso, a criatividade que pulsa hoje nas periferias urbanas brasileiras (mais no box abaixo) talvez seja de fato um convite à valorização do termo “periferia”.
A jornalista Aline Rodrigues, do coletivo de comunicação Periferia em Movimento, idealizado juntamente com outros três colegas[3] em 2008, pensa que sim. “Entendo que existam várias opiniões sobre esse assunto, mas a minha é a de que ainda é preciso destacar, sim, o termo ‘periferia’.” O coletivo de comunicação foi criado – a princípio seria apenas um trabalho de conclusão de curso da faculdade – porque o centro, e nele a grande imprensa, costuma retratar a periferia como um bloco homogêneo repleto de carências. “Nossa maior missão é mostrar as culturas transformadoras das periferias e deixar implícito que não somos um bolo só, com os mesmos gostos e escolhas na vida”, ressalta Aline.
[3]Ana Paula Fonseca, Sueli Carneiro e Thiago Borges, todos moradores de bairros do extremo sul de São Paulo
Quando não é para mostrar o lado negativo, a grande imprensa se desloca até a periferia atrás de algo ou de alguém que já se tornou uma referência local ou nacional no universo cultural da periferia. “Faça uma busca e repare como os mesmos personagens e as mesmas histórias se repetem na grande mídia”, recomenda. “Portanto, ainda somos um tipo estereotipado.”
A razão do estereótipo pode estar na ignorância sobre o tema. “Quando falamos em periferia, pouco sabemos do que estamos falando”, diz a cientista social Ana Lucia Miranda, diretora da área qualitativa da OMA Pesquisa[4]. “Esses são estudos que o Brasil está devendo a si mesmo.” Nos últimos anos, houve, afinal, um crescimento efetivo de renda, maior acesso a bens de consumo e à informação, embora de péssima qualidade, por meio da internet e da televisão. Tudo isso, segundo ela, criou uma ebulição no País. Muitas pessoas passaram a ter demandas que não tinham, tornaram-se mais críticas e estão realizando uma transformação. “O Brasil passa por um processo de formação de cidadania”, afirma.
[4] Empresa que faz pesquisas de opinião para o mercado
A BELEZA DO MORTO
Independentemente dos estereótipos e da falta de estudos sobre a temática, o “centro”, ou o chamado mainstream, sempre viveu, vestiu e respirou cultura popular. Do samba dos morros cariocas ao soul e ao hip-hop das comunidades afro-americanas, há uma clara apropriação pelo “centro” dessa cultura nas suas várias modalidades – arte de rua, música, moda, literatura etc. (Mais em “O morro tem vez”.)
Produtores, curadores, editores e designers que trabalham para o capital empacotam e vendem tudo isso como tendência de mercado. Esse empacotamento parece funcionar como uma espécie de “linha de segurança”, que demarca o espaço social de cada um.
O rompimento dessa “linha” para além da arte, caso dos rolezinhos, seria um gatilho para expor os conflitos sociais? O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que um aspecto dessa valorização da chamada cultura de periferia é o da formação de novos atores sociais afirmando o orgulho de pertencer aos bairros periféricos da cidade.
Ele cita o sociólogo jamaicano Stuart Hall[5], que dizia que a cultura periférica, apesar de marginal em relação ao mainstream, sempre foi um espaço absurdamente produtivo. E não há dúvida de que o mercado vai tentar capitalizar essas movimentações. Assim, conforme Hall, designações como “popular”, “periférico”, “alternativo” ou “negro”, de certa forma, atribuem uma ideia de autenticidade às expressões culturais.
[5] Falecido em fevereiro em Londres, o jamaicano Stuart Hall (1932-2014) dirigiu o Centro de Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, e foi editor fundador da New Left Review
Dependendo da legitimidade popular, muitos desses movimentos passam a ser expostos não mais por agentes da periferia, mas por artistas em posição mais central que querem atribuir originalidade a sua produção e se afirmar como um incentivador da cultura popular.
Ao se falar de apropriação da cultura popular, não se pode esquecer também do conceito da “beleza do morto”, criada pelo historiador francês Michel De Certeau. Ele se referia à valorização de determinadas manifestações culturais sem sequer a participação efetiva desses agentes. “Bom mesmo era o samba de raiz, não esse som deturpado que se ouve e dança atualmente nos bailes da periferia”, ironiza Pereira. A arquiteta e urbanista Natacha Rena[6], professora da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, também vê nesse movimento a lógica do capitalismo. Mais inteligente que o Estado, o capital assimila as produções populares em vez de bater de frente. Lembra o exemplo clássico da calça jeans – originalmente uniforme dos montadores de fábrica nos Estados Unidos –, de que os hippies se apropriaram em um movimento de contracultura anticapital. “Hoje algumas pessoas pagam R$ 2 mil em uma calça jeans com strass”, exemplifica.
[6] É também coordenadora do Programa DESEJA.CA, ou Desenvolvimento Sustentável e Empreendedorismo Solidário no Jardim Canadá
Esse mesmo processo já começa a acontecer com o funk, por exemplo. Para Natacha, essa é a música revolucionária atual, uma vez que é construída dentro de um ambiente rebelde, machista e até racista, cujos habitantes brancos do centro, com uma cultura mais europeizada, não podem suportar. “O corpo nu da menina do funk, da popozuda, também é uma forma de rebeldia, de revolução estética e cultural. Essas meninas têm poder, por mais que o funk seja machista, por mais que a objetifique naquele contexto.” O trabalho costumeiro do capital, prossegue a urbanista, é capturar essa música revolucionária e transformadora, adocicá-la e europeizá-la, substituindo suas letras por outras, de preferência que falem de amor. Assim como um dia aconteceu com o samba.
“ROLE-VOLUÇÃO”
Os recentes rolezinhos promovidos no Rio de Janeiro e em São Paulo jogaram um pouco mais de poeira no cenário sobre a existência ou não de fronteiras separando o centro da periferia, ou o povo do “asfalto” do povo das favelas. E não são só os meninos que se produzem para o rolê no shopping que confundem esse debate. As reações e posturas também dão o que pensar.
No final de fevereiro, a jornalista Cleo Guimarães publicou nota em sua coluna no jornal O Globo sobre a escandalosa foto do Morro do Vidigal, na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, que decorava o Village Mall[7], na Barra da Tijuca. Manipulada digitalmente, a favela do Vidigal, uma das maiores da cidade, simplesmente desapareceu. No lugar, só vegetação. Em tempo: o shopping culpou o decorador.
[7] Encontram-se nesse shopping as filiais de algumas das grifes mais sofisticadas do mundo, como Louis Vuitton, Prada, Burberry’s e Gucci
Navegando em águas opostas às dos argumentos de Natacha, o antropólogo Alexandre Pereira entende que “os rolezinhos, assim como o funk ostentação, não pretendem resgatar nenhuma expressão cultural de raiz e não se propõem a uma contestação política ao sistema – ao contrário, exaltam o consumo de produtos considerados caros e acabam gerando certo desconforto à esquerda e à direita”.
Natacha Rena reconhece que o desconforto, de fato, atinge todos os lados. No entanto, ela vê, sim, um movimento político nos rolezinhos, ainda que não partidário. Normalmente, à periferia é permitido adentrar os centros mais ricos da cidade para trabalhar ou para consumir em silêncio. O rolezinho passa então a ser um movimento político, na medida em que as pessoas encontraram uma forma de furar a barreira do racismo associado à questão social e se colocar dentro dos shoppings de uma maneira empoderada, em grupo.
“Não podemos achar que porque eles entraram no shopping e falaram que estão ali para pegar mulher e ostentar, que isso é um movimento da direita ou um movimento do capital. Não é. Usar a ostentação como ‘ingresso’ para frequentar o shopping é uma forma de rebeldia também às avessas da lógica de esquerda. Acho que a gente tem de entender tudo isso com um olhar muito cuidadoso, mais antropológico e menos racista”, opina.
FELICIDADE NO EXTREMO
Sem nunca ter ouvido falar em Eliane Filomena Pedrotti e sua guinada rumo à periferia da periferia, Natacha Rena a desvenda por acaso ao expor sua teoria sobre a potência de um país com o hibridismo brasileiro, formada por culturas negra, indígena, italiana, japonesa, espanhola e portuguesa. Segundo ela, deixar-se contagiar por essa mistura de forma menos preconceituosa é criar um Brasil mais autônomo e único no mundo, o que seria positivo até para o capital.
“A potência da precariedade também faz surgir um estilo de vida, muito mais visível nas favelas, baseado em solidariedade e no uso do espaço público. A rua é continuidade da casa, e a casa, continuidade da rua. Juntar todo mundo para assar um churrasquinho, beber cerveja e ouvir um samba ou um funk; essa alegria de viver em comunidade, o centro não tem. Lá, cada família na sua caixinha.”
A chuva que caiu forte naquele sábado de manhã sobre o Jardim Keralux não dispersou de todo a reunião por melhorias do Padre Ticão.
Logo alguém abriu a porta de casa para abrigar o encontro e pediu para a nova vizinha Eliane Filomena se apressar. “Aqui eu sou muito mais feliz”, despediu-se. Colaboraram: Amália Safatle e Mônica C. Ribeiro
Leia a íntegra da entrevista com Ana Lucia Miranda
PULSAÇÃO NAS EXTREMIDADES
O sentimento que parece predominar entre os inúmeros agentes transformadores de bairros da periferia é o de que, se não dá para ir ao centro por ser muito longe ou muito caro, por que não transformar em centro o nosso bairro. “Depois de décadas de mobilização por saúde, moradia, transporte é hora de lutar também por coisas não materiais”, diz Jéssica Moreira, do Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento de Perus, na Zona Norte da capital paulista, cujo objetivo é converter o prédio abandonado em centro cultural.Do outro lado da cidade, o catador Pedro Henrique Mesquita conta: “Brigar com o poder público a gente não tem condições, então o jeito é botar a mão na massa”. Assim, ele mesmo coordenou a retirada de um lixão na entrada do Jardim Eliane, na Cidade Líder, Zona Leste. Reciclou o que pôde, criou esculturas de pneus e transformou o terreno limpo em um amplo campo de futebol que, na falta da grama, cobriu com capa de fio moída para a criançada não se machucar quando cair.
Em outra borda da cidade, rolam saraus e cinema na laje. São programas da agenda regular no Bar do Zé Batidão, no jardim São Luís, na Zona Sul, promovidos pela Cooperifa, um movimento cultural criado pelo poeta Sérgio Vaz (mais em “Boca a Boca”). Essa história está bem descrita no livro Cooperifa, Antropofagia Periférica (em alusão à Semana de Arte Moderna de 1922), que pode ser acessado online. Conheça dezenas de outras ideias e soluções criativas em execução nas muitas periferias paulistanas no vídeo São Paulo – Criatividade Sem Limite (mais na nota “Criatividade ao extremo”).