Por Amália Safatle e Magali Cabral
Ele frequenta centros espíritas, candomblés, sinagogas, mesquitas, igrejas católicas e as pentecostais. Mas não tem religião. O historiador Leandro Karnal acredita que entre as coisas mais definidoras das sociedades humanas está a expressão religiosa, daí seu interesse “estrutural, antigo, histórico, pela questão”, diz nesta entrevista concedida no fim de maio, na Casa do Saber, em São Paulo.
Por ser um signo aberto, em que tudo cabe – pode-se destruir ou salvar vidas em nome de Deus –, a religião, a seu ver, sempre terá mais adeptos que a ciência, pois é pouco mutável. E ainda oferece todas as respostas que o ser humano quer, suprindo a carência de encontrar sentido onde não tem e preencher o vazio deixado pelo fim das utopias do século XX. Para Karnal, tanto a espiritualidade como as religiões institucionais estão em um momento pendular de ascensão, exercendo grande influência sobre o imaginário e a vida material. Podem ser usadas, portanto, como instrumento poderoso de conservação ambiental.
Em que consiste o curso que o senhor dará até julho, “O Sagrado e O Profano”?
Tenho dado muitos cursos aqui na Casa do Saber para tentar entender que existe uma espiritualidade, uma noção de sagrado e de profano que é muito anterior, muito mais estrutural que a noção de religiões institucionais. As religiões institucionais estão em um excelente momento, tanto em presença midiática como no aspecto financeiro. Parece haver uma tendência de mostrar que estamos em um momento de materialização, mas a espiritualidade é tão fluida, tão líquida e tão adaptadora que neste momento de materialidade existe uma teologia da prosperidade, de busca de espiritualização do material. Então o curso fala disso, de estudar o ser humano a partir da sua pretensão metafísica, ou seja, de que esta vida tem uma realidade além dela, de que existe um plano superior, protetores, Deus, ou seja, as formas que cada um decidir dar a essa questão.
E por que o sagrado e o profano? Temos essa dualidade?
Como brinca o [José] Saramago no Evangelho Segundo Jesus Cristo, não existiria Deus sem o Diabo. É fundamental para definir o sagrado a existência ou a possibilidade do profano. As religiões sempre trabalharam com a ideia de um perfeito inimigo de Deus, de um plano oposto, especialmente as religiões monoteístas, como o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo.
Que fio condutor existe entre as várias religiões e qualquer outra manifestação de busca pelo sagrado? Esse fio é a essência? Para algumas é a alma?
Grosso modo, existem duas escolas a esse respeito. A fenomenologia, cujo principal nome é Mircea Eliade, já falecido, é aquela que busca aproximar todas as expressões do sagrado: aproximam o xamã da Sibéria de um pajé tupi e de um sacerdote jesuíta. E existe uma escola histórica, principalmente a romana, para a qual cada expressão é única e até que a palavra “religião” não pode ser usada em todos os casos, já que vem do verbo “religar”, e religar pressupõe que houve uma unidade anterior a ser restaurada, como a queda do homem do Paraíso. E nem todas falam nisso. O grande contraponto a isso é o pensamento budista, que não tem alma, não tem Deus e não trabalha com a ideia de sentido. É difícil falar em religião além dessas três unidades, que concentram a maior parte da humanidade, porque há mais de 2 bilhões de cristãos no mundo, 1,6 bilhão de islâmicos e provavelmente 15 milhões de judeus.
A espiritualidade pode ocorrer mesmo entre quem é laico?
O laico não se opõe ao religioso, o laico se opõe ao clerical. Essência é um pensamento típico de uma religião metafísica. Espinosa nos ensina que corpo e alma são apenas uma coisa. Separar perfeitamente corpo e alma e entender que a essência é a alma é uma postura dominante entre certas teologias cristãs. O corpo não pertence a este plano, é uma casca, é um veículo que serviu para sua alma voltar a esse mundo, caso do reencarnacionismo cristão, como o kardecista, ou para existir uma só vez, caso do Catolicismo. Você não necessita de religião institucional para estabelecer espiritualidade. Há muitas pessoas fora desse sistema que estabeleceram densa espiritualidade.
Há mais anticlericais do que ateus. O ateísmo é sempre um fenômeno raro, definido pelos estudiosos como branco, urbano, masculino e bem-sucedido. Entre os ateus, há raras mulheres, pobres, grupos étnicos indígenas e camponeses. Se você depender dessa chuva [aponta para a janela] para salvar um ano de trabalho, sua crença em Deus aumenta. Para você essa chuva significa apenas pegar um guarda-chuva, mas para o camponês pode estragar ou possibilitar um ano de trabalho. Quem depende diretamente da terra tem pouca tendência a manifestar crenças racionais. O feminino, envolvido na criação da vida, raramente é ateu. O masculino estabelece certa arrogância, ou autonomia ou orgulho para poder exercer domínio ou controle sobre as coisas. E quando eu sou bem-sucedido e tenho um plano de saúde que dá acesso ao [Hospital Albert] Einstein, tendo a confiar mais nele do que nos outros. Mas é um erro considerar que a religião ocupa apenas o espaço da carência, posto que a religião hoje cresce entre classes altas e bem-sucedidas, conforme uma pesquisa recente. A religião está em uma das fases pendulares de crescimento.
Por que o crescimento é pendular?
O século XIX foi um dos grandes momentos de crise da religião. Desde o fim do Iluminismo até o século XIX, acreditava-se que o futuro seria sem Deus, com o surgimento das vacinas do Dr. [Edward] Jenner, os métodos químicos pelo Dr. Pasteur, a psicoterapia. Até o século XX, os medicamentos psicoterápicos expulsariam a mediunidade, a possessão e assim por diante. A racionalidade encerraria qualquer esforço religioso. A ideia “Deus está morto” era muito forte no século XIX, por exemplo em Nietzsche. Outro momento de esvaziamento das religiões institucionais é a década de 1960, em que se nega a espiritualidade ocidental e se reforça a oriental – ir para Katmandu, purificar os sons na Índia como fizeram os Beatles, valorizar o Budismo. Ninguém aqui supunha o que estava ocorrendo em Mianmar, que os budistas pudessem ser fundamentalistas e estivessem massacrando islâmicos. Ninguém supunha que a sociedade hindu tem violências estruturais. Quando a religião é do outro, sempre parece melhor.
Como as religiões podem estar em alta neste momento de crise das instituições?
Estamos em um momento bem claro de esvaziamento de instituições. A maçonaria, por exemplo, perdeu um número expressivo de membros. Mas as instituições religiosas não vão mal, pegando o caso brasileiro do crescimento das neopentecostais. E um pequeno mas crescente movimento de valorização do islamismo, não apenas por imigração mas por conversão, tenderá a crescer entre as classes baixas brasileiras. O islamismo será um elemento de enfrentamento em breve das neopentecostais.
Na Igreja Católica, voltam as crescer as vocações, os padres que cantam estão em moda e entre os livros mais vendidos estão coisas como Kairós, do Padre Marcelo. Movimentos como a Marcha para Jesus, organizada pela Igreja Renascer em São Paulo, crescem bastante. As igrejas pentecostais se organizam politicamente; a Católica sempre se organizou. O espaço que o papa Francisco ocupa na mídia é notável. A eleição do presidente dos Estados Unidos, homem mais poderoso do mundo, não ocupa o mesmo espaço midiático que a eleição de um papa.
E, fora isso, há uma espiritualidade difusa, aliada a um certo esoterismo, de práticas mágicas. Há 50 anos, quase ninguém se vestia de branco no Ano Novo. A influência dos cultos afro-brasileiros e a devoção a Iemanjá ou Oxalá no Ano Novo faz com que o branco se torne uma cor dominante. Hoje o Ano Novo tem códigos esotéricos mais complicados. Você tem de usar uma roupa de baixo vermelha para o amor, uma amarela para o dinheiro, tem de pular as sete ondinhas, guardar sementes de romã. As pessoas estão cada vez mais com amuletos, cresce o mercado de fitas do Bonfim. As pessoas adotam práticas mágicas, não necessariamente religiosas, como Nhoque da Fortuna todo dia 29 e, quando sobem no avião – eu pego avião toda semana –, uma parte expressiva faz o sinal da cruz. Agora, o que existe hoje é uma customização de Deus, cada um cria um Deus à sua imagem e semelhança. Eu faço o meus Deus, eu faço as minhas regras.
Isso não contradiz a sua afirmação sobre o fortalecimento das religiões institucionais?
Não, porque as pessoas não veem contradição em serem, por exemplo, católicas apostólicas romanas, declararem isso ao IBGE, e não aceitarem a infalibilidade do papa, a virgindade de Maria e o pecado contido no ato de usar a camisinha.
O que explica a alta do movimento pendular neste ponto da História?
Provavelmente o colapso de todo e qualquer sistema de explicação universal no século XX e todas as utopias, como o socialismo. E mesmo o liberalismo mais vitorioso, dessa Pax Americana a partir da era Bill Clinton, não é algo que deixe as pessoas satisfeitas. O único sistema explicativo geral, ainda válido, é o religioso. O pensamento teológico é tão forte que as teologias se transformaram. Vou dar três exemplos. A primeira teologia é a da prosperidade: Deus me ama e por isso comprei uma casa própria, é o que povoa as religiões neopentecostais. A segunda, muito forte desde a década de 1930, é a autoajuda: o que eu penso acontece. Isso é o mais fabuloso, porque só pessoas esquizofrênicas ou crianças em idade pré-operativas, antes de 5 anos, acham que o que pensam acontece. “Não fala de acidente que atrai”. Ou seja, se acham em parte deuses, a palavra tem força, a palavra cria. É uma crença patológica, que em outras épocas levaria à internação, mas hoje é considerada pensamento positivo. E a terceira, que não fala de Deus, mas tem um pensamento teológico total, é o empreendedorismo, a ideia de que, se você tiver energia, será bem-sucedido, o sucesso depende só de você. Há livros sobre esse universo com linguagem totalmente religiosa, “O Paraíso do Empreendedor”, “Os Dez Mandamentos do Empreendedor”.
A religião é mais forte que o empirismo, que a busca da verificação do real. Poderia haver uma etiqueta Made in China no Santo Sudário, que as pessoas continuariam acreditando nele. As pessoas vão a famosos médiuns que fazem operações pelo espaço, como João de Deus em Abadiânia (GO), as pessoas continuam com câncer, morrem e a fé continua. Isso é notável. Isso não é a irracionalidade da religião, mas a sua própria lógica. Este é um dos grandes dramas da ciência. Não posso chegar a um enterro e dizer à mãe que perdeu um filho – tragédia máxima da nossa cultura – que seu filho é constituído de moléculas de carbono e que tudo que é de carbono um dia desaparece, e a senhora também. Eu tenho de dizer: “Seu filho morreu cedo porque Deus chama os bons e ele é um anjo agora, está nos vendo, a senhora vai se reunir com ele em breve e ele está em um lugar em que não sofre”. Isso seca uma lágrima.
A religião é algo que vem preencher vazios e carências, é só isso?
Tudo preenche vazios, compra em shopping, kama sutra, sexualidade, religião. Do ponto de vista técnico, a vida não tem sentido algum e a religião é irracional. Mas isso, para mim, é a força da religião, porque a razão é mutante. Veja: o ovo estava proibido há 15 dias. Esta semana ele não dá mais colesterol, está liberado, e isto é ciência. A ciência oscila porque as explicações científicas mudam. Os médicos um dia já prescreveram sanguessugas. Já a religião diz permanentemente a mesma coisa. “Deus te ama, você é precioso, tem uma parte imortal”, esse discurso é muito forte. Não é só isso, é tudo isso.
Não estaria havendo uma aproximação maior entre ciência e religião?
Essa oposição perfeita estabelecida pelo Iluminismo que eu pareci demonstrar aqui é antiga. Porque grande parte da ciência de ponta trabalha com coisas um pouco menos objetivas do que possa parecer. É um pouco mais imaginativa. Alain de Botton, ateu militante, autor de Religião para Ateus, disse que nós ganharíamos muito se passássemos a usar alguns dos princípios religiosos mesmo sendo ateus. Por exemplo, a humildade do religioso diante do mistério do absoluto e da transcendência, contra a arrogância do cientista que acha que sua razão é o máximo de tudo. Existe muita gente hoje tentando se aproximar. Os religiosos em geral fazem concessões aos dois lados: vão a João de Deus e continuam com a quimioterapia. É muito curioso esse jogo duplo.
E o papa Francisco fará uma encíclica da mudança do clima [oficialmente publicada em 18 de junho]. Isso é um exemplo de aproximação, já que pelo pensamento estritamente religioso a mudança climática seria algo determinado por Deus?
O papa Francisco expôs um pensamento contido na obra de vários teólogos e filósofos, inclusive Hans Küng, e também a obra do próprio [Leonardo] Boff, que tem escrito muito sobre o pensamento ecológico. Há um outro tipo de interpretação que foi muito construído em cima da figura de Francisco de Assis. Mas a religião é um signo aberto, ou seja, não é nada. Você pode salvar o planeta em nome de Deus e matá-lo em nome de Deus. Os católicos de esquerda reunidos na Comissão Pastoral da Terra liderada por dom Tomás Balduíno criaram o Movimento dos Sem Terra. Sob os preceitos dos capítulos 5, 6 e 7 Mateus do Sermão da Montanha, católicos ultraconservadores criaram a TFP, que é totalmente contrária à invasão de terras. Os dois agem em nome de Deus. Se você entrevistar o chefe islâmico Abu Bakr, ele dirá que quer a paz. Ele só está matando infiéis que atrapalham a obra de Alá e que são uma ofensa a Alá. E Alá o mandou fazer isto.
Voltando ao papa, as questões da sustentabilidade podem ter influenciado na atitude que tomou?
Os jesuítas produziram um pensador no século XX, certamente conhecido do papa Francisco, que é Pierre Teilhard de Chardin, o primeiro grande jesuíta que reuniu Teologia com Biologia. E tentou explicar a evolução dentro de um critério teológico. Teilhard de Chardin não viu qualquer contradição entre Darwin e todos os seus seguidores e o Evangelho. Ele quis mostrar aquilo que em parte hoje a gente chama de um design inteligente. A preservação da ecologia já foi tema da Campanha da Fraternidade, há quase 40 anos. A preocupação com a ecologia nas décadas de 70 e 80 nasce aqui no Brasil depois de casos de fetos sem cérebro em Cubatão. São questões ecológicas que vão sendo apropriadas pelo discurso religioso.
Então existe uma permeabilidade entre questões ambientais e religião?
Tem, e este papa tenta adaptar a Igreja ao século XXI. Está fazendo discursos muito claros a esse respeito.
Faz parte de um marketing para ganhar ou não perder adeptos?
Seria uma leitura possível, ainda que maquiavélica. Acho que são as duas coisas. Ele tem uma convicção real de que é preciso fazer isso.
Se a religião está em alta, uma mensagem como essa pode influenciar fortemente decisões ambientais?
Sem sombra de dúvida. Nós estamos em um momento em que a natureza está em alta como discurso e às vezes como prática. Tem mais gente hoje querendo libertar cachorro de laboratório do que presos em prisões. Os temas “Deus”, “cachorros” e “gatos” têm uma popularidade muito grande. Esse é o passo, no fundo, para se pensar um mundo melhor. Está sendo sugerido também porque, com o aquecimento global, tivemos uma consciência inédita de que esta é a primeira geração da espécie humana que pode cometer suicídio global. Essa é uma consciência nova e naturalmente a religião, sendo um signo aberto, também vai passar por isso.
Outras religiões monoteístas também estão atentas para isso?
Bastante! No Judaísmo, por exemplo, a maneira de matar não pode causar sofrimento ao animal. Você não pode torcer o pescoço de uma galinha porque isto é pecado para o judeu. Você tem que decepá-la de uma só vez. Você tem que matar um boi pelo código Kasher com uma faca sem nenhum defeito e de uma só vez. O código islâmico Halal também. A ritualização da morte, a diminuição da dor dos animais também faz parte do discurso religioso. Os militantes ecologistas são com frequência pessoas com sensibilidade pelo menos espiritual. Mas este é um campo que está dominando bastante as pessoas, gerando uma redefinição do que vem a ser o ser humano. Uma redefinição do nosso antropocentrismo.
Os códigos religiosos dialogam bastante com a natureza, considerando que Deus se revelou às pessoas dominantemente em desertos. Moisés, Abraão, Jesus, Maomé só tiveram contato com a divindade em desertos. O deserto nos coloca direto em comunicação com a natureza. Diante da vastidão da natureza, o homem entra em êxtase. No livro do Castañeda A Erva do Diabo, as experiências com os xamãs é uma experiência de deserto.
A experiência religiosa era tradicionalmente individual e diluída na natureza. É debaixo de uma árvore que Buda se ilumina. É numa caverna que Maomé recebe a iluminação do arcanjo Gabriel. É no deserto que Jesus é servido pela primeira vez por anjos após as tentações do demônio. É no Deserto do Sinai que Moisés encontra a sarça ardente, o arbusto que não se consumia. E é no deserto que Deus diz a Abraão que vai fazer a sua descendência mais numerosa que as estrelas do céu e que os grãos de areia. Há religiões radicalmente contrárias à destruição da natureza, caso do Jainismo. O Jainismo não aceita que as pessoas andem à noite porque podem pisar em insetos sem ver. Exige que se usem máscaras cirúrgicas durante o dia para não engolir um mosquito por acidente. O Jainismo radical não aceita que você arranque uma fruta da árvore porque a machuca, tem que esperá-la cair. Agora imagina 7 bilhões de pessoas no mundo esperando uma fruta.
Não teríamos chegado a 7 bilhões de pessoas no mundo…
É verdade (risos)! Teria resolvido um outro problema. Às vezes, por eu ser um cético, pode parecer que eu estou diminuindo a religião, mas apostaria muito no cavalo religioso e pouco no cavalo racional. O cavalo racional sempre será minoritário. É difícil existir em um mundo sem sentido, em que tudo se encerra com a morte. Como amamos as pessoas, adoraríamos a ideia de que vamos reencontrá-las. Ou de que você terá uma segunda chance e poderá refazer tudo com mais experiência.
A seu ver, é só uma ilusão?
Se você chamar de ilusão como um mal, sim! Mas a ilusão é parte da expressão humana não é? Sexo sem fantasia é fricção. Então você cria sedução, roupas, lingerie, 50 tons de cinza. Eu preferiria dizer que a religião é simbólica, ilusão parece um engano. Sim, ela é um engano, mas não nos esqueçamos de que cientificamente os placebos funcionam. É o que conta o filme As Aventuras de Pi. Temos duas possibilidades: ou essa viagem foi com um francês maluco e violento ou foi com animais em uma ilha mágica. O resultado é o mesmo. Nos dois casos, a minha mãe morre. Qual a melhor história? A que consola mais? Mais que uma ilusão eu penso em um simbolismo muito expressivo para falar de quem nós somos. Do que tememos. Do que gostaríamos de ser neste mundo.
O senhor não acha que temos algo de sagrado, como resultado de milhões de anos de muita força, de muitas energias?
Absolutamente não. Somos resultado de milhões de forças como uma pedra de basalto, como uma bactéria. Se isso for o sagrado, concordo que somos tão sagrados como as fezes petrificadas de um dinossauro.
No seu curso, qual que é a acepção do sagrado?
O sagrado é um discurso que justifica, ampara, transcende, torna a vida aceitável. É poder ver nesta matéria um sentido.
Em que momento da evolução o homem passou a precisar de um sentido para viver?
No momento em que você abstrai e tem um pensamento de causa e efeito, passa a buscar lógica. A religião pode ser vista como uma profunda necessidade de estabelecer lógica. Com isso, a religião acaba sendo, curiosamente, um impulso de base científica. Ela é aquilo que os nossos cientistas mais buscariam. A teoria que explica tudo. Uma médium me disse que eu usei cabelo para seduzir pessoas em outra vida, e agora eu voltei sem que é para eu aprender. Isto é fabuloso.
Abaixo, seguem trechos adicionais da entrevista com Leandro Karnal:
Poderia explicar melhor o conceito do “religar’?
A nossa tradição judaico-cristã pressupõe que houve um homem criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis) este homem era perfeitamente integrado a Deus, falava com Deus. Adam, que em hebraico é homem, falava com Deus a todo instante. Mas, ao ser expulso do Paraíso, todo o esforço da religião é religar essa situação original. Toda espécie humana na tradição judaico-cristã é exilada. A religião é um exercício melancólico de voltar a uma casa que nunca conhecemos, mas que nos dizem que era perfeita. É um exercício de considerar que este mundo não é bom, especialmente no Cristianismo. No Islamismo, esse mundo foi criado por Alá e é perfeito, mas Alá trabalha para criarmos o seu reino neste mundo. O cristão tem uma visão de mundo mais negativa: este mundo é imperfeito e talvez seja até pertencente ao demônio. O mundo é do mal, essa é uma visão essencialmente cristã. Paz só na outra vida, alegria permanente só na outra vida. “Os olhos jamais contemplaram”, diz Paulo em uma Epístola, “Ninguém sabe explicar o que Deus preparou para aqueles que lhe amarem”. É uma religião de uma certa melancolia, a melancolia de um mundo que não é este. O que é , no fundo, como o Cristianismo interpretou Platão. Nietzsche dizia frequentemente que cristianismo é Platão para gente burra, ou seja, o cristianismo seria uma maneira de explicar Platão para as grandes massas. “Não é o que nós vemos, a realidade está fora da caverna, a ideia é abstrata, e a ideia é o real”. Isso é Platão. E o Cristianismo, por influência de Agostinho, seria platonismo para as massas.
Como se explicam fenômenos como a mediunidade e a paranormalidade? São fenômenos que acontecem e não têm uma comprovação científica.
Não só não têm uma comprovação científica como não existem. Eles são compartilhados por quem acredita neles. Então quem acredita em curas encontra curas. Quem não acredita não encontra. Quem acredita em comunicação pelos mortos vai a um médium e o médium pega uma carta e diz: “Mamãe, eu estou bem”. E esta pessoa chora e fica muito feliz que a pessoa se comunicou.
Enquanto não é demonstrável eu posso afirmar taxativamente que não existe? A ciência dizia que a acupuntura não funcionava e hoje ela reconhece.
A ciência só trabalha com a evidência. Se houver foto de saci pererê, se houver o aprisionamento de um saci pererê em condições de laboratório. se nós observarmos o saci pererê deslocar a matéria e representar a sensação térmica, nós teremos saci pererê. Enquanto isto não ocorrer, ele é uma crença. São dois tipos de conhecimento: existe o conhecimento científico e o conhecimento religioso. Mas como eu não tenho uma evidência, aí é a posição do Leandro. Naturalmente eu posso lhe garantir que em 52 anos de vida eu nunca vi um fantasma, nunca senti nada, absolutamente nada que não fosse material.
Eu vou com frequência a centros espíritas, eu vou com frequência a experiências religiosas e acontece sempre a mesma coisa. Eu não sinto nada e os alunos que são religiosos sentem energia, deslocamento, ou seja, depende a subjetividade. Se depende da subjetividade eu posso estar errado ou eles podem estar errados.
Mas há algumas coisas que não dependem de subjetividade. Cortando a cabeça de uma ser humano, todo ser humano morre independentemente da crença.
As religiões e crenças indígenas são mais respeitosas ao ambiente?
A destruição do mundo é proporcional ao domínio técnico. Os indígenas destruíam menos por menor domínio técnico. Aquilo que eles podiam fazer, que era a coivara, o hábito de tocar fogo na floresta para plantar, é desastroso para o meio ambiente e eles faziam. A ideia de um indígena integrado à natureza, preservador da natureza, é uma construção da década de 1960 ou talvez de Rousseau em O Bom Selvagem. Agora, uma sociedade que não acumula como quase todas as sociedades clássicas, uma sociedade não baseada nas diferenças sociais é uma sociedade que destrói menos, com toda certeza. Indígenas podem ser como os incas, como astecas e como maias, grandes sacrificadores de seres humanos, inclusive de crianças.
Qual é sua acepção do sagrado?
O sagrado é uma projeção de tudo que nos desejamos ou tememos. O sagrado ampara. A religião é o ópio do povo” é uma frase do Marx. Mas o Marx continua: “É a luz de um mundo sem luz e o calor de um mundo sem calor”. O que impede que a gente seja o lobo do homem, como diria Hobbes. O sagrado é uma das grandes pretensões para que a gente possa conviver com a diferença, uns com os outros, inventando conceitos como amor. Amor de mãe por filho e de filho por mãe.
Antes do século XVII, nenhuma mãe amava os filhos. É uma invenção que ainda está em debate. De vez em quando ainda alguma mãe joga o filho pela janela. Depois de séculos, de textos, de ideias, de quadros, da invenção do Dia das Mães em 1908, você adapta as pessoas que vão brincar de boneca e vão se preparar para isto. E chega o momento em que todo mundo vai reforçar {a ideia do amor de mãe} e a pessoa ama. Eu digo invenção, não estou dizendo falso. Em História, a invenção cria a realidade então em História a invenção é real. Quer dizer a nossa concepção hoje de maternidade ela é real. Eu sou amado pela minha mãe! É uma questão real, mas há 400 anos isto seria estranhíssimo. Há 400 anos a regra era João e Maria. Os pais estão passando fome e abandonam os filhos para morrer na floresta, mas os filhos voltam para casa. Esta é uma história camponesa.
Então quando a gente inventa um Deus, ele também pode existir?
Sem sombra de dúvida. Você pode lembrar que os deuses já morreram e os deuses que você tem hoje não existiam. Deuses que já foram venerados por milhões de pessoas durante milhares de anos como Ísis, Osíris, Huitzlopochtli, o deus da guerra asteca, e Quetzalcoatl, o deus da cultura asteca. Esses deuses morreram. Eu tenho um texto sobre isto no livro Religiões que o Mundo Esqueceu. Quer dizer os deuses morrem e os deuses um dia foram criados. Zoroastro, Buda, todos são históricos. Não havia Alá até 622. Então os deuses foram criados por nós e servem a um propósito. Ísis durou mais tempo que Jesus . Isis existiu por 3.200 anos e Jesus existe somente há 2 mil anos. Se fosse por decurso de prazo, tempo e respeito, Osíris, Isis, Anúbis e Rá são mais veneráveis que Jesus. E se nos formos buscar raízes mais antigas, os deuses mais antigos são dos aborígenes da Austrália. Que são venerados há 50 mil anos.
Outro deserto…
Exatamente. Aquela pedra que é a pedra venerada por eless no meio da Austrália, aquilo há milhares de anos. São religiões mais antigas que o judaísmo. Religiões nascem, crescem e morrem, mas o fenômeno religioso até o momento é imortal.[:en]Ele frequenta centros espíritas, candomblés, sinagogas, mesquitas, igrejas católicas e as pentecostais. Mas não tem religião. O historiador Leandro Karnal acredita que entre as coisas mais definidoras das sociedades humanas está a expressão religiosa, daí seu interesse “estrutural, antigo, histórico, pela questão”, diz nesta entrevista concedida no fim de maio, na Casa do Saber, em São Paulo.
Por ser um signo aberto, em que tudo cabe – pode-se destruir ou salvar vidas em nome de Deus –, a religião, a seu ver, sempre terá mais adeptos que a ciência, pois é pouco mutável. E ainda oferece todas as respostas que o ser humano quer, suprindo a carência de encontrar sentido onde não tem e preencher o vazio deixado pelo fim das utopias do século XX. Para Karnal, tanto a espiritualidade como as religiões institucionais estão em um momento pendular de ascensão, exercendo grande influência sobre o imaginário e a vida material. Podem ser usadas, portanto, como instrumento poderoso de conservação ambiental.
Em que consiste o curso que o senhor dará até julho, “O Sagrado e O Profano”?
Tenho dado muitos cursos aqui na Casa do Saber para tentar entender que existe uma espiritualidade, uma noção de sagrado e de profano que é muito anterior, muito mais estrutural que a noção de religiões institucionais. As religiões institucionais estão em um excelente momento, tanto em presença midiática como no aspecto financeiro. Parece haver uma tendência de mostrar que estamos em um momento de materialização, mas a espiritualidade é tão fluida, tão líquida e tão adaptadora que neste momento de materialidade existe uma teologia da prosperidade, de busca de espiritualização do material. Então o curso fala disso, de estudar o ser humano a partir da sua pretensão metafísica, ou seja, de que esta vida tem uma realidade além dela, de que existe um plano superior, protetores, Deus, ou seja, as formas que cada um decidir dar a essa questão.
E por que o sagrado e o profano? Temos essa dualidade?
Como brinca o [José] Saramago no Evangelho Segundo Jesus Cristo, não existiria Deus sem o Diabo. É fundamental para definir o sagrado a existência ou a possibilidade do profano. As religiões sempre trabalharam com a ideia de um perfeito inimigo de Deus, de um plano oposto, especialmente as religiões monoteístas, como o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo.
Que fio condutor existe entre as várias religiões e qualquer outra manifestação de busca pelo sagrado? Esse fio é a essência? Para algumas é a alma?
Grosso modo, existem duas escolas a esse respeito. A fenomenologia, cujo principal nome é Mircea Eliade, já falecido, é aquela que busca aproximar todas as expressões do sagrado: aproximam o xamã da Sibéria de um pajé tupi e de um sacerdote jesuíta. E existe uma escola histórica, principalmente a romana, para a qual cada expressão é única e até que a palavra “religião” não pode ser usada em todos os casos, já que vem do verbo “religar”, e religar pressupõe que houve uma unidade anterior a ser restaurada, como a queda do homem do Paraíso. E nem todas falam nisso. O grande contraponto a isso é o pensamento budista, que não tem alma, não tem Deus e não trabalha com a ideia de sentido. É difícil falar em religião além dessas três unidades, que concentram a maior parte da humanidade, porque há mais de 2 bilhões de cristãos no mundo, 1,6 bilhão de islâmicos e provavelmente 15 milhões de judeus.
A espiritualidade pode ocorrer mesmo entre quem é laico?
O laico não se opõe ao religioso, o laico se opõe ao clerical. Essência é um pensamento típico de uma religião metafísica. Espinosa nos ensina que corpo e alma são apenas uma coisa. Separar perfeitamente corpo e alma e entender que a essência é a alma é uma postura dominante entre certas teologias cristãs. O corpo não pertence a este plano, é uma casca, é um veículo que serviu para sua alma voltar a esse mundo, caso do reencarnacionismo cristão, como o kardecista, ou para existir uma só vez, caso do Catolicismo. Você não necessita de religião institucional para estabelecer espiritualidade. Há muitas pessoas fora desse sistema que estabeleceram densa espiritualidade.
Há mais anticlericais do que ateus. O ateísmo é sempre um fenômeno raro, definido pelos estudiosos como branco, urbano, masculino e bem-sucedido. Entre os ateus, há raras mulheres, pobres, grupos étnicos indígenas e camponeses. Se você depender dessa chuva [aponta para a janela] para salvar um ano de trabalho, sua crença em Deus aumenta. Para você essa chuva significa apenas pegar um guarda-chuva, mas para o camponês pode estragar ou possibilitar um ano de trabalho. Quem depende diretamente da terra tem pouca tendência a manifestar crenças racionais. O feminino, envolvido na criação da vida, raramente é ateu. O masculino estabelece certa arrogância, ou autonomia ou orgulho para poder exercer domínio ou controle sobre as coisas. E quando eu sou bem-sucedido e tenho um plano de saúde que dá acesso ao [Hospital Albert] Einstein, tendo a confiar mais nele do que nos outros. Mas é um erro considerar que a religião ocupa apenas o espaço da carência, posto que a religião hoje cresce entre classes altas e bem-sucedidas, conforme uma pesquisa recente. A religião está em uma das fases pendulares de crescimento.
Por que o crescimento é pendular?
O século XIX foi um dos grandes momentos de crise da religião. Desde o fim do Iluminismo até o século XIX, acreditava-se que o futuro seria sem Deus, com o surgimento das vacinas do Dr. [Edward] Jenner, os métodos químicos pelo Dr. Pasteur, a psicoterapia. Até o século XX, os medicamentos psicoterápicos expulsariam a mediunidade, a possessão e assim por diante. A racionalidade encerraria qualquer esforço religioso. A ideia “Deus está morto” era muito forte no século XIX, por exemplo em Nietzsche. Outro momento de esvaziamento das religiões institucionais é a década de 1960, em que se nega a espiritualidade ocidental e se reforça a oriental – ir para Katmandu, purificar os sons na Índia como fizeram os Beatles, valorizar o Budismo. Ninguém aqui supunha o que estava ocorrendo em Mianmar, que os budistas pudessem ser fundamentalistas e estivessem massacrando islâmicos. Ninguém supunha que a sociedade hindu tem violências estruturais. Quando a religião é do outro, sempre parece melhor.
Como as religiões podem estar em alta neste momento de crise das instituições?
Estamos em um momento bem claro de esvaziamento de instituições. A maçonaria, por exemplo, perdeu um número expressivo de membros. Mas as instituições religiosas não vão mal, pegando o caso brasileiro do crescimento das neopentecostais. E um pequeno mas crescente movimento de valorização do islamismo, não apenas por imigração mas por conversão, tenderá a crescer entre as classes baixas brasileiras. O islamismo será um elemento de enfrentamento em breve das neopentecostais.
Na Igreja Católica, voltam as crescer as vocações, os padres que cantam estão em moda e entre os livros mais vendidos estão coisas como Kairós, do Padre Marcelo. Movimentos como a Marcha para Jesus, organizada pela Igreja Renascer em São Paulo, crescem bastante. As igrejas pentecostais se organizam politicamente; a Católica sempre se organizou. O espaço que o papa Francisco ocupa na mídia é notável. A eleição do presidente dos Estados Unidos, homem mais poderoso do mundo, não ocupa o mesmo espaço midiático que a eleição de um papa.
E, fora isso, há uma espiritualidade difusa, aliada a um certo esoterismo, de práticas mágicas. Há 50 anos, quase ninguém se vestia de branco no Ano Novo. A influência dos cultos afro-brasileiros e a devoção a Iemanjá ou Oxalá no Ano Novo faz com que o branco se torne uma cor dominante. Hoje o Ano Novo tem códigos esotéricos mais complicados. Você tem de usar uma roupa de baixo vermelha para o amor, uma amarela para o dinheiro, tem de pular as sete ondinhas, guardar sementes de romã. As pessoas estão cada vez mais com amuletos, cresce o mercado de fitas do Bonfim. As pessoas adotam práticas mágicas, não necessariamente religiosas, como Nhoque da Fortuna todo dia 29 e, quando sobem no avião – eu pego avião toda semana –, uma parte expressiva faz o sinal da cruz. Agora, o que existe hoje é uma customização de Deus, cada um cria um Deus à sua imagem e semelhança. Eu faço o meus Deus, eu faço as minhas regras.
Isso não contradiz a sua afirmação sobre o fortalecimento das religiões institucionais?
Não, porque as pessoas não veem contradição em serem, por exemplo, católicas apostólicas romanas, declararem isso ao IBGE, e não aceitarem a infalibilidade do papa, a virgindade de Maria e o pecado contido no ato de usar a camisinha.
O que explica a alta do movimento pendular neste ponto da História?
Provavelmente o colapso de todo e qualquer sistema de explicação universal no século XX e todas as utopias, como o socialismo. E mesmo o liberalismo mais vitorioso, dessa Pax Americana a partir da era Bill Clinton, não é algo que deixe as pessoas satisfeitas. O único sistema explicativo geral, ainda válido, é o religioso. O pensamento teológico é tão forte que as teologias se transformaram. Vou dar três exemplos. A primeira teologia é a da prosperidade: Deus me ama e por isso comprei uma casa própria, é o que povoa as religiões neopentecostais. A segunda, muito forte desde a década de 1930, é a autoajuda: o que eu penso acontece. Isso é o mais fabuloso, porque só pessoas esquizofrênicas ou crianças em idade pré-operativas, antes de 5 anos, acham que o que pensam acontece. “Não fala de acidente que atrai”. Ou seja, se acham em parte deuses, a palavra tem força, a palavra cria. É uma crença patológica, que em outras épocas levaria à internação, mas hoje é considerada pensamento positivo. E a terceira, que não fala de Deus, mas tem um pensamento teológico total, é o empreendedorismo, a ideia de que, se você tiver energia, será bem-sucedido, o sucesso depende só de você. Há livros sobre esse universo com linguagem totalmente religiosa, “O Paraíso do Empreendedor”, “Os Dez Mandamentos do Empreendedor”.
A religião é mais forte que o empirismo, que a busca da verificação do real. Poderia haver uma etiqueta Made in China no Santo Sudário, que as pessoas continuariam acreditando nele. As pessoas vão a famosos médiuns que fazem operações pelo espaço, como João de Deus em Abadiânia (GO), as pessoas continuam com câncer, morrem e a fé continua. Isso é notável. Isso não é a irracionalidade da religião, mas a sua própria lógica. Este é um dos grandes dramas da ciência. Não posso chegar a um enterro e dizer à mãe que perdeu um filho – tragédia máxima da nossa cultura – que seu filho é constituído de moléculas de carbono e que tudo que é de carbono um dia desaparece, e a senhora também. Eu tenho de dizer: “Seu filho morreu cedo porque Deus chama os bons e ele é um anjo agora, está nos vendo, a senhora vai se reunir com ele em breve e ele está em um lugar em que não sofre”. Isso seca uma lágrima.
A religião é algo que vem preencher vazios e carências, é só isso?
Tudo preenche vazios, compra em shopping, kama sutra, sexualidade, religião. Do ponto de vista técnico, a vida não tem sentido algum e a religião é irracional. Mas isso, para mim, é a força da religião, porque a razão é mutante. Veja: o ovo estava proibido há 15 dias. Esta semana ele não dá mais colesterol, está liberado, e isto é ciência. A ciência oscila porque as explicações científicas mudam. Os médicos um dia já prescreveram sanguessugas. Já a religião diz permanentemente a mesma coisa. “Deus te ama, você é precioso, tem uma parte imortal”, esse discurso é muito forte. Não é só isso, é tudo isso.
Não estaria havendo uma aproximação maior entre ciência e religião?
Essa oposição perfeita estabelecida pelo Iluminismo que eu pareci demonstrar aqui é antiga. Porque grande parte da ciência de ponta trabalha com coisas um pouco menos objetivas do que possa parecer. É um pouco mais imaginativa. Alain de Botton, ateu militante, autor de Religião para Ateus, disse que nós ganharíamos muito se passássemos a usar alguns dos princípios religiosos mesmo sendo ateus. Por exemplo, a humildade do religioso diante do mistério do absoluto e da transcendência, contra a arrogância do cientista que acha que sua razão é o máximo de tudo. Existe muita gente hoje tentando se aproximar. Os religiosos em geral fazem concessões aos dois lados: vão a João de Deus e continuam com a quimioterapia. É muito curioso esse jogo duplo.
E o papa Francisco fará uma encíclica da mudança do clima [oficialmente publicada em 18 de junho]. Isso é um exemplo de aproximação, já que pelo pensamento estritamente religioso a mudança climática seria algo determinado por Deus?
O papa Francisco expôs um pensamento contido na obra de vários teólogos e filósofos, inclusive Hans Küng, e também a obra do próprio [Leonardo] Boff, que tem escrito muito sobre o pensamento ecológico. Há um outro tipo de interpretação que foi muito construído em cima da figura de Francisco de Assis. Mas a religião é um signo aberto, ou seja, não é nada. Você pode salvar o planeta em nome de Deus e matá-lo em nome de Deus. Os católicos de esquerda reunidos na Comissão Pastoral da Terra liderada por dom Tomás Balduíno criaram o Movimento dos Sem Terra. Sob os preceitos dos capítulos 5, 6 e 7 Mateus do Sermão da Montanha, católicos ultraconservadores criaram a TFP, que é totalmente contrária à invasão de terras. Os dois agem em nome de Deus. Se você entrevistar o chefe islâmico Abu Bakr, ele dirá que quer a paz. Ele só está matando infiéis que atrapalham a obra de Alá e que são uma ofensa a Alá. E Alá o mandou fazer isto.
Voltando ao papa, as questões da sustentabilidade podem ter influenciado na atitude que tomou?
Os jesuítas produziram um pensador no século XX, certamente conhecido do papa Francisco, que é Pierre Teilhard de Chardin, o primeiro grande jesuíta que reuniu Teologia com Biologia. E tentou explicar a evolução dentro de um critério teológico. Teilhard de Chardin não viu qualquer contradição entre Darwin e todos os seus seguidores e o Evangelho. Ele quis mostrar aquilo que em parte hoje a gente chama de um design inteligente. A preservação da ecologia já foi tema da Campanha da Fraternidade, há quase 40 anos. A preocupação com a ecologia nas décadas de 70 e 80 nasce aqui no Brasil depois de casos de fetos sem cérebro em Cubatão. São questões ecológicas que vão sendo apropriadas pelo discurso religioso.
Então existe uma permeabilidade entre questões ambientais e religião?
Tem, e este papa tenta adaptar a Igreja ao século XXI. Está fazendo discursos muito claros a esse respeito.
Faz parte de um marketing para ganhar ou não perder adeptos?
Seria uma leitura possível, ainda que maquiavélica. Acho que são as duas coisas. Ele tem uma convicção real de que é preciso fazer isso.
Se a religião está em alta, uma mensagem como essa pode influenciar fortemente decisões ambientais?
Sem sombra de dúvida. Nós estamos em um momento em que a natureza está em alta como discurso e às vezes como prática. Tem mais gente hoje querendo libertar cachorro de laboratório do que presos em prisões. Os temas “Deus”, “cachorros” e “gatos” têm uma popularidade muito grande. Esse é o passo, no fundo, para se pensar um mundo melhor. Está sendo sugerido também porque, com o aquecimento global, tivemos uma consciência inédita de que esta é a primeira geração da espécie humana que pode cometer suicídio global. Essa é uma consciência nova e naturalmente a religião, sendo um signo aberto, também vai passar por isso.
Outras religiões monoteístas também estão atentas para isso?
Bastante! No Judaísmo, por exemplo, a maneira de matar não pode causar sofrimento ao animal. Você não pode torcer o pescoço de uma galinha porque isto é pecado para o judeu. Você tem que decepá-la de uma só vez. Você tem que matar um boi pelo código Kasher com uma faca sem nenhum defeito e de uma só vez. O código islâmico Halal também. A ritualização da morte, a diminuição da dor dos animais também faz parte do discurso religioso. Os militantes ecologistas são com frequência pessoas com sensibilidade pelo menos espiritual. Mas este é um campo que está dominando bastante as pessoas, gerando uma redefinição do que vem a ser o ser humano. Uma redefinição do nosso antropocentrismo.
Os códigos religiosos dialogam bastante com a natureza, considerando que Deus se revelou às pessoas dominantemente em desertos. Moisés, Abraão, Jesus, Maomé só tiveram contato com a divindade em desertos. O deserto nos coloca direto em comunicação com a natureza. Diante da vastidão da natureza, o homem entra em êxtase. No livro do Castañeda A Erva do Diabo, as experiências com os xamãs é uma experiência de deserto.
A experiência religiosa era tradicionalmente individual e diluída na natureza. É debaixo de uma árvore que Buda se ilumina. É numa caverna que Maomé recebe a iluminação do arcanjo Gabriel. É no deserto que Jesus é servido pela primeira vez por anjos após as tentações do demônio. É no Deserto do Sinai que Moisés encontra a sarça ardente, o arbusto que não se consumia. E é no deserto que Deus diz a Abraão que vai fazer a sua descendência mais numerosa que as estrelas do céu e que os grãos de areia. Há religiões radicalmente contrárias à destruição da natureza, caso do Jainismo. O Jainismo não aceita que as pessoas andem à noite porque podem pisar em insetos sem ver. Exige que se usem máscaras cirúrgicas durante o dia para não engolir um mosquito por acidente. O Jainismo radical não aceita que você arranque uma fruta da árvore porque a machuca, tem que esperá-la cair. Agora imagina 7 bilhões de pessoas no mundo esperando uma fruta.
Não teríamos chegado a 7 bilhões de pessoas no mundo…
É verdade (risos)! Teria resolvido um outro problema. Às vezes, por eu ser um cético, pode parecer que eu estou diminuindo a religião, mas apostaria muito no cavalo religioso e pouco no cavalo racional. O cavalo racional sempre será minoritário. É difícil existir em um mundo sem sentido, em que tudo se encerra com a morte. Como amamos as pessoas, adoraríamos a ideia de que vamos reencontrá-las. Ou de que você terá uma segunda chance e poderá refazer tudo com mais experiência.
A seu ver, é só uma ilusão?
Se você chamar de ilusão como um mal, sim! Mas a ilusão é parte da expressão humana não é? Sexo sem fantasia é fricção. Então você cria sedução, roupas, lingerie, 50 tons de cinza. Eu preferiria dizer que a religião é simbólica, ilusão parece um engano. Sim, ela é um engano, mas não nos esqueçamos de que cientificamente os placebos funcionam. É o que conta o filme As Aventuras de Pi. Temos duas possibilidades: ou essa viagem foi com um francês maluco e violento ou foi com animais em uma ilha mágica. O resultado é o mesmo. Nos dois casos, a minha mãe morre. Qual a melhor história? A que consola mais? Mais que uma ilusão eu penso em um simbolismo muito expressivo para falar de quem nós somos. Do que tememos. Do que gostaríamos de ser neste mundo.
O senhor não acha que temos algo de sagrado, como resultado de milhões de anos de muita força, de muitas energias?
Absolutamente não. Somos resultado de milhões de forças como uma pedra de basalto, como uma bactéria. Se isso for o sagrado, concordo que somos tão sagrados como as fezes petrificadas de um dinossauro.
No seu curso, qual que é a acepção do sagrado?
O sagrado é um discurso que justifica, ampara, transcende, torna a vida aceitável. É poder ver nesta matéria um sentido.
Em que momento da evolução o homem passou a precisar de um sentido para viver?
No momento em que você abstrai e tem um pensamento de causa e efeito, passa a buscar lógica. A religião pode ser vista como uma profunda necessidade de estabelecer lógica. Com isso, a religião acaba sendo, curiosamente, um impulso de base científica. Ela é aquilo que os nossos cientistas mais buscariam. A teoria que explica tudo. Uma médium me disse que eu usei cabelo para seduzir pessoas em outra vida, e agora eu voltei sem que é para eu aprender. Isto é fabuloso.
Abaixo, seguem trechos adicionais da entrevista com Leandro Karnal
Poderia explicar melhor o conceito do “religar’?
A nossa tradição judaico-cristã pressupõe que houve um homem criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis) este homem era perfeitamente integrado a Deus, falava com Deus. Adam, que em hebraico é homem, falava com Deus a todo instante. Mas, ao ser expulso do Paraíso, todo o esforço da religião é religar essa situação original. Toda espécie humana na tradição judaico-cristã é exilada. A religião é um exercício melancólico de voltar a uma casa que nunca conhecemos, mas que nos dizem que era perfeita. É um exercício de considerar que este mundo não é bom, especialmente no Cristianismo. No Islamismo, esse mundo foi criado por Alá e é perfeito, mas Alá trabalha para criarmos o seu reino neste mundo. O cristão tem uma visão de mundo mais negativa: este mundo é imperfeito e talvez seja até pertencente ao demônio. O mundo é do mal, essa é uma visão essencialmente cristã. Paz só na outra vida, alegria permanente só na outra vida. “Os olhos jamais contemplaram”, diz Paulo em uma Epístola, “Ninguém sabe explicar o que Deus preparou para aqueles que lhe amarem”. É uma religião de uma certa melancolia, a melancolia de um mundo que não é este. O que é , no fundo, como o Cristianismo interpretou Platão. Nietzsche dizia frequentemente que cristianismo é Platão para gente burra, ou seja, o cristianismo seria uma maneira de explicar Platão para as grandes massas. “Não é o que nós vemos, a realidade está fora da caverna, a ideia é abstrata, e a ideia é o real”. Isso é Platão. E o Cristianismo, por influência de Agostinho, seria platonismo para as massas.
Como se explicam fenômenos como a mediunidade e a paranormalidade? São fenômenos que acontecem e não têm uma comprovação científica.
Não só não têm uma comprovação científica como não existem. Eles são compartilhados por quem acredita neles. Então quem acredita em curas encontra curas. Quem não acredita não encontra. Quem acredita em comunicação pelos mortos vai a um médium e o médium pega uma carta e diz: “Mamãe, eu estou bem”. E esta pessoa chora e fica muito feliz que a pessoa se comunicou.
Enquanto não é demonstrável eu posso afirmar taxativamente que não existe? A ciência dizia que a acupuntura não funcionava e hoje ela reconhece.
A ciência só trabalha com a evidência. Se houver foto de saci pererê, se houver o aprisionamento de um saci pererê em condições de laboratório. se nós observarmos o saci pererê deslocar a matéria e representar a sensação térmica, nós teremos saci pererê. Enquanto isto não ocorrer, ele é uma crença. São dois tipos de conhecimento: existe o conhecimento científico e o conhecimento religioso. Mas como eu não tenho uma evidência, aí é a posição do Leandro. Naturalmente eu posso lhe garantir que em 52 anos de vida eu nunca vi um fantasma, nunca senti nada, absolutamente nada que não fosse material.
Eu vou com freqüência a centros espíritas, eu vou com freqüência a experiências religiosas e acontece sempre a mesma coisa. Eu não sinto nada e os alunos que são religiosos sentem energia, deslocamento, ou seja, depende a subjetividade. Se depende da subjetividade eu posso estar errado ou eles podem estar errados.
Mas há algumas coisas que não dependem de subjetividade. Cortando a cabeça de uma ser humano, todo ser humano morre independentemente da crença.
As religiões e crenças indígenas são mais respeitosas ao ambiente?
A destruição do mundo é proporcional ao domínio técnico. Os indígenas destruíam menos por menor domínio técnico. Aquilo que eles podiam fazer, que era a coivara, o hábito de tocar fogo na floresta para plantar, é desastroso para o meio ambiente e eles faziam. A idéia de um indígena integrado à natureza, preservador da natureza, é uma construção da década de 1960 ou talvez de Rousseau em O Bom Selvagem. Agora, uma sociedade que não acumula como quase todas as sociedades clássicas, uma sociedade não baseada nas diferenças sociais é uma sociedade que destrói menos, com toda certeza. Indígenas podem ser como os incas, como astecas e como maias, grandes sacrificadores de seres humanos, inclusive de crianças.
Qual é sua acepção do sagrado?
O sagrado é uma projeção de tudo que nos desejamos ou tememos. O sagrado ampara. A religião é o ópio do povo” é uma frase do Marx. Mas o Marx continua: “É a luz de um mundo sem luz e o calor de um mundo sem calor”. O que impede que a gente seja o lobo do homem, como diria Hobbes. O sagrado é uma das grandes pretensões para que a gente possa conviver com a diferença, uns com os outros, inventando conceitos como amor. Amor de mãe por filho e de filho por mãe.
Antes do século XVII, nenhuma mãe amava os filhos. É uma invenção que ainda está em debate. De vez em quando ainda alguma mãe joga o filho pela janela. Depois de séculos, de textos, de ideias, de quadros, sa invenção do Dia das Mães em 1908, você adapta as pessoas que vão brincar de boneca e vão se preparar para isto. E chega o momento em que todo mundo vai reforçar {a ideia do amor de mãe} e a pessoa ama. Eu digo invenção, não estou dizendo falso. Em História, a invenção cria a realidade então em História a invenção é real. Quer dizer a nossa concepção hoje de maternidade ela é real. Eu sou amado pela minha mãe! É uma questão real, mas há 400 anos isto seria estranhíssimo. Há 400 anos a regra era João e Maria. Os pais estão passando fome e abandonam os filhos para morrer na floresta, mas os filhos voltam para casa. Esta é uma história camponesa.
Então quando a gente inventa um Deus, ele também pode existir?
Sem sombra de duvida. Você pode lembrar que os deuses já morreram e os deuses que você tem hoje não existiam. Deuses que já foram venerados por milhões de pessoas durante milhares de anos como Ísis, Osíris, Huitzlopochtli, o deus da guerra asteca, e Quetzalcoatl, o deus da cultura asteca. Esses deuses morreram. Eu tenho um texto sobre isto no livro Religiões que o Mundo Esqueceu. Quer dizer os deuses morrem e os deuses um dia foram criados. Zoroastro, Buda, todos são históricos. Não havia Alá até 622. Então os deuses foram criados por nós e servem a um propósito. Ísis durou mais tempo que Jesus . Isis existiu por 3.200 anos e Jesus existe somente há 2 mil anos. Se fosse por decurso de prazo, tempo e respeito, Osíris, Isis, Anúbis e Rá são mais veneráveis que Jesus. E se nos formos buscar raízes mais antigas, os deuses mais antigos são dos aborígenes da Austrália. Que são venerados há 50 mil anos.
Outro deserto…
Exatamente. Aquela pedra que é a pedra venerada por eless no meio da Austrália, aquilo há milhares de anos. São religiões mais antigas que o judaísmo. Religiões nascem, crescem e morrem, mas o fenômeno religioso até o momento é imortal.