Como as estruturas descentralizadas de informação e relacionamento têm colaborado para desenhar um mundo mais multifacetado e empoderar as minorias
Em muitos campos, o mundo não é mais o que costumava ser. Os hábitos de comportamento, os padrões de beleza, a vida sexual, a composição demográfica, o equilíbrio geopolítico dos poderes. Naqueles lugares em que um centro dominante mantinha uma posição confortável, relegando outros grupos à subordinação, um quadro muito mais diverso se desenha, quando minorias reivindicam, com sucesso crescente, seu espaço e direitos iguais.
“Vejo que as pessoas demonstram sua insatisfação com mais ênfase, contra um modelo de mundo, de sociedade, de conhecimento que não reconhece e não aceita a diversidade”, afirma a filósofa Gislene Aparecida dos Santos, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) e do centro de estudos Diversitas, da mesma universidade.
De acordo com a pesquisadora, o principal vetor para a expansão e a visibilidade das reivindicações é a facilidade de interação e comunicação que a internet oferece, particularmente nas redes sociais.
“Ao longo da História, manifestações reivindicatórias aconteciam em espaços onde a informação não circulava muito amplamente. Hoje, as informações correm. Tudo que acontece em algum lugar é percebido quase imediatamente em outras partes”, afirma. “A comunicação em rede facilita a articulação política dos movimentos sociais, dos intelectuais, e dá visibilidade a essas manifestações e ao descontentamento. Com isso, a luta por reconhecimento torna-se mais visível.”
O papel dessas redes se deixa notar na difusão de mensagens curtas e ágeis, como as hashtags [1] e os memes [2].
[1] Hashtags designam termos curtos que classificam um assunto
[2] Memes são imagens que transmitem uma mensagem breve, com a intenção de espalhá-lhas rapidamente pela rede, ou viralizar
Nos EUA, assassinatos de jovens negros por policiais brancos – em seguida inocentados pelos tribunais – suscitaram em 2013 a criação do movimento Black Lives Matter (A vida dos negros [também] conta), cuja primeira atividade foi a difusão da hashtag #blacklivesmatter. No Brasil, a violência contra a mulher, tratada de maneira leviana até mesmo por deputados federais, teve como resposta campanhas como “Não Mereço Ser Estuprada” e “Primeiro Assédio”, que se apoiaram fortemente em depoimentos on-line [3].
[3] Um importante portal do feminismo na internet é o Think Olga: thinkolga.com
“Mesmo antes das redes digitais, a internet já era um ambiente que permitia às minorias se constituírem”, afirma Fabio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) . “A internet é uma tecnologia de produção de minorias, ao contrário da televisão e da radiodifusão, que são tecnologias que produzem maiorias.”
Isso significa que, quanto mais se multiplicam os grupos nas redes, mais voz conseguem encontrar parcelas da sociedade que, na maior parte do tempo, precisa se calar perante um discurso consolidado de maioria. “Em um país como o Brasil, em que a difusão da voz das minorias sempre foi muito restrita, é natural que a internet impulsione a formação desses grupos”, diz o professor.
Malini afirma também que a estrutura horizontal das redes, em que as minorias se constituem, faz aparecer gradações no interior dos grupos. O exemplo que ele cita é o do Movimento Negro, que revela distinções também com relação à mulher negra, ao negro que vive em favelas e periferias, ao negro homossexual, e assim por diante. “Não é só uma identidade estanque”, diz.
O pesquisador relata que, ao participar da comissão julgadora de um prêmio para iniciativas de mídia livre, ficou impressionado com a diversidade de projetos com baixo orçamento: “Desde grupos de comunicação de atingidos por barragens até rádios indígenas. Isso é muito rico no Brasil”.
Para a filósofa da USP, nem sempre há harmonia entre a diversidade dos movimentos, com suas múltiplas camadas, e a necessidade política de construir identidades capazes de reivindicar e obter vitórias. “As demandas com potencial de se tornar direitos são construídas a partir dessas identidades. Então cada um tem a sua”, explica. “Mas logo percebemos que algumas pautas conseguem ser comuns e caminhar juntas, mas outras, não.” Eventualmente, os pontos de tensão das identidades diversas podem gerar conflitos mesmo entre diferentes grupos vulneráveis.
Empoderamento
Gislene dos Santos vê avanços no reconhecimento da diversidade ao longo das décadas. “Obviamente, todas as conquistas em nome de direitos iguais sempre foram precedidas por uma grande luta. Os direitos nunca foram dados gratuitamente”, sublinha.
É o caso dos direitos da mulher e do movimento pelos direitos civis, conduzido nas décadas de 1950, 1960 e 1970, nos Estados Unidos, por líderes como Martin Luther King e Malcolm X. O mais importante, para a professora, são os direitos positivados na lei, que se traduzem em políticas de ação afirmativa, como as cotas universitárias, e órgãos de combate à discriminação.
“Na universidade, vejo jovens negros fazendo movimentações que são muito simples, de caráter estético, como mudar o arranjo do cabelo e a forma da vestimenta. Mas isso mostra que esses jovens de pouco mais de 20 anos se enxergam de maneira muito mais empoderada do que os jovens negros da minha geração”, cita. “Isso é consequência das lutas que os precederam.”
O professor Malini identifica um ganho de empoderamento também em episódios como o do protesto de estudantes secundaristas de São Paulo, que, nos últimos meses de 2015, ocuparam suas escolas e conseguiram resistir à fúria da polícia e a uma atitude inicialmente hostil na mídia e na opinião pública. “Eles dominaram os meios de difusão da narrativa e, com isso, foram capazes de reverter a antipatia. Falava-se que eles iam depredar as escolas, mas mostraram que estavam cuidando delas, limpando, fazendo a comida”, lembra.
Mas ainda há muito a ser feito, afirma Gislene dos Santos. “Nas ruas, na sociedade, ainda é enorme a quantidade de discriminação que podemos ver, contra negros, mulheres, homossexuais, travestis. Isso me faz pensar: ‘Nossa! Nós fizemos tanto e ainda há muito o que fazer!’ As conquistas acontecem de modo muito gradual.”
As redes digitais empregam sistemas de classificação que tornam mais fácil encontrar o que se procura
Reação e intolerância
As mudanças, embora paulatinas, também são percebidas por quem se opõe a elas, com consequências muitas vezes nefastas. Em São Paulo, ataques a homossexuais na região da Avenida Paulista são perpetrados por grupos de jovens que, muitas vezes, expressam uma retórica neonazista. A intolerância religiosa também se manifesta em agressões a terreiros de umbanda e candomblé, como em Brasília e Campina Grande (PB) em 2015. No Rio de Janeiro, grupos de traficantes convertidos a versões rigorosas do cristianismo expulsam praticantes de religiões de matriz africana das favelas que dominam.
“Há conquistas e empoderamento, as pessoas têm mais coragem, mais vontade e força para assumir e demandar direitos. Mas também há um recrudescimento muito grande de algumas pessoas que se incomodam exatamente com essa visibilidade, quando percebem que essas pessoas que pertencem a grupos vulneráveis estão saindo das caixinhas e se mostrando – estão assumindo suas identidades”, analisa Gislene dos Santos.
Um efeito do recrudescimento de quem se sente incomodado é o crescimento da retórica intransigente em diversos cantos, da homofobia de políticos brasileiros à xenofobia de seus pares europeus. Ao mesmo tempo, em grande medida, os grupos islâmicos que promovem guerra e destruição no Oriente Médio também são conduzidos por uma leitura intolerante e belicosa de sua religião – como se manifesta quando o Estado Islâmico (EI) se refere a Paris, cidade atacada duas vezes em 2015, como “capital da prostituição e da obscenidade”.
Não surpreende, portanto, que as ferramentas que permitem a difusão de mensagens extremadas, quando não extremistas, sejam as mesmas que dão voz a minorias historicamente oprimidas. “A diversidade que a internet abriu constitui também um campo de disputa que é político”, afirma Malini, lembrando que os integrantes do EI se comunicavam usando o aplicativo Telegram.
“Por isso, muita gente passou a achar que esse aplicativo é demoníaco, mas é um aplicativo que respeita a privacidade dos usuários, no momento em que sabemos o quanto os governos e as corporações estão espionando as pessoas”, argumenta. Com a repercussão negativa, os administradores do aplicativo bloquearam comunicações ligadas ao terrorismo islâmico.
Acrescente-se ainda que, segundo o professor Malini, os ganhos de diversidade acabam provocando a colisão de diferentes direitos, como quando indivíduos e grupos se escudam na liberdade de expressão ou em noções simplistas de isonomia para manifestar um discurso de ódio, racista, misógino e xenófobo. “Alguém que vai a um estádio de futebol e xinga um jogador negro de macaco se sente atacado em seu direito de expressão quando reagem ao racismo”, comenta.
A filósofa Gislene dos Santos chama atenção para o outro lado do privilégio: a introjeção das discriminações também por membros dos grupos vulneráveis. Por exemplo, a negra que considera o próprio cabelo “ruim”, porque não se parece com o do padrão de beleza centrado na mulher branca
Privilégio invisível
A ascensão das minorias trouxe à tona o tema do privilégio, conceito com o qual se designa a vantagem que alguém tem de partida – mesmo sem perceber – só por pertencer aos grupos favorecidos da sociedade. É o caso do privilégio dos brancos (white privilege), dos homens, dos heterossexuais. Uma característica perniciosa do privilégio é que, por ser herança histórica e não ser da responsabilidade de quem o detém, acaba sendo invisível, e só quem sofre diretamente com a concorrência desleal se dá conta de sua existência.
Para dar visibilidade aos privilégios, universidades e movimentos sociais dos EUA desenvolveram a “Caminhada do Privilégio” (Privilege Walk), a partir das ideias da ativista Peggy McIntosh (veja exemplo). Na atividade, os participantes começam lado a lado e, à medida que vão respondendo a perguntas sobre suas experiências de vida e condições sociais, dão passos à frente ou para trás. Ao fim, a distância dos homens brancos, heterossexuais e nascidos em países ricos para os demais fica perfeitamente visível.
Gislene dos Santos relata que, em seus trabalhos na universidade, começou a se interessar pelo conceito de privilégio como modo de abordar questões como o racismo e o machismo. “A questão era saber se, ao tratar o tema pela via do privilégio, que é construído socialmente e sem consciência dos grupos privilegiados, facilitaria os debates, motivaria mais as pessoas a se sensibilizarem”, diz. Segundo a filósofa, em outros países essa escolha tem trazido bons resultados.
Mas não foi isso que aconteceu no Brasil. “As pessoas não se enxergavam como pessoas privilegiadas. Elas sentem a necessidade de se defender em relação a esse privilégio e não conseguem reconhecer que ele existe”, lembra Santos. “Elas argumentam que trabalharam duro para conseguir o que têm e isso não é privilégio.”
Corpo político
Enquanto o mundo se transforma, também vão surgindo as ideias que buscam pensar essas transformações. Esforços para conceber um mundo mais diverso se multiplicam, mas também causam reações, como ficou evidente quando a obra da filósofa feminista francesa Simone de Beauvoir apareceu na prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ano passado. Articulistas conservadores reagiram com irritação, assim como líderes religiosos mais fundamentalistas.
Também no ano passado, a filósofa americana Judith Butler visitou o Brasil e foi acusada de espalhar a “ideologia de gênero” no País, meses depois que o governo recuou de iniciativas que visavam discutir violência de gênero e respeito à tolerância nas escolas.
O alvoroço se deve aos estudos de Butler em Teoria Queer, que põe em questão o modo de identificação dos comportamentos de gênero. Ela critica a ideia de que o modo de agir de cada sexo esteja plenamente fundado na Biologia, ressaltando fatores culturais e históricos.
Ainda nas teorias sobre sexualidade, cabe citar a obra de Paul Beatriz Preciado, filósofa transexual espanhola cujo livro Manifesto Contrassexual foi lançado no Brasil em 2015 pela editora N-1. Sua obra, influenciada por Michel Foucault e Jacques Derrida, além de discutir a questão do gênero, inclui reflexões sobre o papel da técnica na sexualidade, das substâncias que intensificam o prazer às próteses de órgãos sexuais, passando por cirurgias estéticas e vestuário. Essas expoentes da teoria do gênero e da Teoria Queer mostram o quanto já se transformou o pensamento sobre sexualidade desde 1948, quando o zoólogo americano Alfred Kinsey criou uma escala que buscava medir em seis níveis o grau de atração do indivíduo por pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. Em 1978, a escala foi aperfeiçoada pelo psiquiatra Fritz Klein, também americano, incorporando mais formas de comportamento e as mudanças de preferência ao longo do tempo.
De Kinsey a Preciado, passou-se em poucas décadas de uma visão binária do gênero e da sexualidade, pela qual os papéis do masculino e do feminino eram claramente delimitados, a uma constelação de modos de vida possíveis.
Mas não foi apenas no mundo da teoria que o universo dos gêneros e da sexualidade se tornou mais complexo e variado. Na cultura, os anos 1970 foram sacudidos pela figura camaleônica do cantor David Bowie, falecido recentemente. Hoje, já não há mais o mesmo choque quando um cantor como o jovem paulista Liniker, usando roupas femininas, afirma: “Meu corpo é um corpo político”.
Multicultural e pós-colonial Perde força a convicção de que o Ocidente é – e sempre será – o centro do mundo
A internet não é a única força que abala as estruturas do mundo centrado no Ocidente, patriarcal, heteronormativo, branco. Com a ascensão política e econômica dos países asiáticos e outros “em desenvolvimento”, a convicção de que o Ocidente é o centro do mundo – e sempre será – perde força. Mesmo nesses países ditos centrais, transformações demográficas importantes acontecem, com o crescimento das populações descendentes de imigração recente, como os hispânicos nos EUA e os muçulmanos na Europa.
Com as transformações demográficas, os países ricos da Europa, o Canadá e os EUA desenvolveram a ideia de que viriam a se tornar sociedades multiculturais, em que grupos de diferentes origens conviveriam democraticamente. “O multiculturalismo começou a ser criticado tanto pela direita quanto pela esquerda”, comenta a filósofa Gislene dos Santos. “A direita critica argumentando que isso mina o Estado republicano, ao multiplicar as demandas específicas e dificultar o convívio, ao contrário do que se pretendia. Já a esquerda critica porque acha que o multiculturalismo apaga as discussões sobre o racismo como categoria de estratificação social.”
O primado do homem branco ocidental já vinha sendo posto em questão desde o processo de desmontagem dos impérios europeus, sobretudo na obra de autores chamados pós-coloniais, como Frantz Fanon, Edward Said e Stuart Hall. “Há muitas décadas, no Brasil e em vários lugares do mundo, vêm ocorrendo momentos de luta: o movimento dos direitos civis, ou pelo direito das mulheres, e tantos outros. Já estava exposto, em cada um desses momentos, o descontentamento com a exclusão dos grupos vulneráveis”, afirma a filósofa.