Por Amália Safatle
Nas ruas do Jardim Itatinga, em Campinas, o tráfego é constante, sobretudo de caminhoneiros. O bairro foi criado às margens da Rodovia dos Bandeirantes – e à margem da cidade – para que ali se estabelecesse uma área de prostituição, hoje considerada a maior da América Latina. Construir o bairro foi uma forma de tentar banir a atividade do Centro e, assim, “revitalizá-lo”.
Em meio à movimentação da clientela no Itatinga, Betânia Santos* recebeu a Página22 na subsede da Associação Mulheres Guerreiras, da qual é coordenadora-geral. Prostituta com orgulho, Betânia Santos conta ser muito grata à atividade que escolheu e exerce no Itatinga há 25 anos: “Aqui conquistei a minha estabilidade, a minha liberdade, a capacidade de ser quem eu sou hoje”.
A luta que a move diariamente é contra o preconceito e pela regulamentação da profissão, com a finalidade de garantir a liberdade de escolha, proteger a classe da violência e reconhecer direitos trabalhistas. Embora a atividade em si não seja crime, não está legalizada e possui flancos abertos, que dão margem legal à repressão. Está no Congresso o projeto de lei que vem sendo chamado de “Gabriela Leite”, fundadora da Rede Brasileira de Prostitutas, já falecida, e uma das maiores referências dessa bandeira ainda tão controversa.
*Prostituta e coordenadora-geral da Associação Mulheres Guerreiras – Profissionais do Sexo. Cursou até o terceiro ano de Ciências Jurídicas na Unip de Campinas. Entre as bandeiras defendidas pela associação estão direito ao trabalho, combate à violência e ao abuso, vaga em creche, realização de debates e seminários, visibilidade ao profissional do sexo e fim da exploração infantojuvenil.
Conte um pouco da sua história de vida. O que a trouxe para o Jardim Itatinga?
Sou do interior do Maranhão, cidade de Caxias, e vim para o Jardim Itatinga em 1990. Posso dizer que minha história começou aqui, porque aqui conquistei a minha estabilidade, a minha liberdade, a capacidade de ser quem eu sou hoje. Sou Betânia, 43 anos, tenho três filhas – uma turismóloga, uma com o colegial completo e uma de 11 anos que ainda está iniciando os estudos. Tenho o terceiro ano de Ciências Jurídicas, mas ainda não terminei o curso, porque não sei se essa é a – outra – profissão que eu quero, porque a minha profissão mesmo é o trabalho sexual. Para alguns é profissional do sexo, para outros é garota de programa, mas o meu trabalho, reconhecido por mim, é o de prostituta. Amenizando um pouco, eu sou puta. Não tenho nenhum pudor em falar isso. Minha família, meus amigos, todos sabem.
Usar a palavra “prostituta” é importante para reforçar o respeito que se defende para a profissão?
Isso, até porque essa palavra também é usada de forma positiva há milênios, quando a própria Igreja Católica nomeou Maria Madalena como prostituta. Uma prostituta que seguiu Jesus. Lendo a Bíblia e vendo os filmes e as ficções, Maria Madalena era uma prostituta, teve a sua opção religiosa, mas não deixou de carregar esse nome, essa palavra. A Bíblia não fala com o agravo de que era um estigma, mas sim como uma palavra que a projetou no meio da sociedade.
É muito importante que se fale “puta”, sim, da forma positiva, tanto é que uso a seguinte expressão: filha da puta são as minhas filhas ou de qualquer outra mulher que exerça o trabalho sexual.
A senhora optou por parar os estudos de Ciências Jurídicas para se dedicar à profissão de prostituta?
Eu seria uma advogada hoje se tivesse me formado 11 anos atrás. Mas eu sou prostituta desde 1990. Quando as pessoas falam que a gente vem para a prostituição por falta de opção ou de estrutura, que a gente é de baixa renda, não ganha o suficiente, isso não é verdade. Se fosse por falta de opção, eu não teria feito os vários cursos técnicos que fiz e que me poderiam dar outro salário. Sou prostituta por opção. Não terminei o curso por um problema de saúde, tive eclâmpsia na gravidez. E o meu interesse pelo Direito se deveu ao desejo de entender mais por que essa profissão é tão estigmatizada.
A senhora tem alguma ideia de onde vem esse estigma? De algumas religiões? Do conservadorismo?
Não devemos culpar as religiões e as bancadas evangélicas, porque esse estigma é cultural. Muita gente acha que estamos magoando, estragando [praticando uma violência contra] o corpo. A sexualidade é algo complexo. Talvez seja por isso.
Existe um tabu contra o sexo que não seja voltado para a formação de família e a procriação, é isso?
Se a gente for ver direitinho, o preconceito está [relacionado] com os órgãos sexuais. Porque o olho não é proibido, o cabelo não é proibido. Mas falou em órgãos sexuais começa o tabu. O problema é usar a vagina para ganhar dinheiro. A prostituição no Brasil não é crime, mas também não é legalizada. O que é crime é o comércio e o atentado violento ao pudor. Então eles cercam a gente por todas as brechas que existem. Receber um cliente em casa não é crime, mas ter uma casa com várias prostitutas é. Ir a um motel com o cliente, não. Por isso entrei para a linha do Direito, para que a gente comece a analisar essas questões, com um empoderamento que as pessoas acham que a gente não tem.
A Associação Mulheres Guerreiras conta com algum apoio do Estado, do governo?
O governo não é nosso parceiro. Não trabalha com a gente para [oferecer] estrutura, nem tratamento [de saúde]. Eles trabalham com a gente somente pra fins de [realizar] pesquisas, por exemplo sobre incidência de sífilis. Mas não nos remuneram pelo tempo que nos dedicamos a proporcionar essas pesquisas em zonas de prostituição [fazendo a ponte entre os pesquisadores e as profissionais]. A gente poderia cobrar por esse tempo dedicado a pesquisas, porque estamos deixando de atender clientes.
A Associação conta com algum tipo de apoio?
As associadas não podem contribuir como se fosse um sindicato [porque isso seria crime]. Este espaço aqui é mantido pela Red Umbrella, um fundo holandês que apoia mundialmente grupos de pessoas que exercem trabalho sexual. A subsede da CUT de Campinas também é nossa apoiadora. A sede da associação, inclusive, fica na subsede da CUT, onde é a nossa central de atendimento [no Centro de Campinas].
A CUT apoia porque entende a prostituta como uma classe de trabalhadores?
Sim, aqui na região tem 32 sindicatos e fazemos parte do coletivo de mulheres sindicalizadas da CUT e do coletivo de igualdade racial também.
O Jardim Itatinga é da década de 1960, mas a Associação foi criada somente em 2006. Nesse intervalo de tempo, como as prostitutas, que foram expulsas do Centro de Campinas, inclusive com violência policial, se organizaram e buscaram se mobilizar?
Nós já havíamos formado uma aliança com a Rede Brasileira de Prostitutas, que foi criada na década de 1980 por duas prostitutas famosérrimas no Brasil, Gabriela Leite – a protagonista da nossa história – e Lourdes Barreto, que cheguei a conhecer. Então a gente já tinha essa proximidade. A Rede Brasileira nasceu para apoiar pequenos grupos de prostitutas autônomas que buscavam direitos trabalhistas. Já a Associação, que nasceu da luta das mulheres do Centro da cidade pelo direito de exercer o seu trabalho onde quiserem, firmou-se mesmo em 2008, depois que tivemos o direito de ter um Estatuto em 2007. O Jardim Itatinga não foi criado por causa da violência no Centro da cidade. Na maioria das vezes sofremos violência não dos policiais, mas da sociedade que nos abomina.
Mas a tese de Diana Helene Ramos [Preta, Pobre e Puta: a segregação urbana da prostituição em Campinas – Jardim Itatinga] relata um histórico de violência policial no Centro da cidade, até mesmo com técnicas de tortura.
Hoje eles usam artifícios para violentar o direito das profissionais. Por exemplo, se em um bar trabalham prostitutas, procuram saber se o bar tem alvará de funcionamento; se não tem, mandam fechar. Tem o bar em que as prostitutas ficam na praça catando cliente. Então [a estratégia é:] “Vamos fechar o bar porque aí elas não vão mais”. E quando fechar, ela vai passar a maior vergonha, porque terá de sair correndo pra rua pelada. Esse é o tipo de violência que sofre uma profissional do sexo.
O dono de um hotel pode ser enquadrado como atentado violento ao pudor e exploração sexual. Mas que atentado violento é esse, se estou dentro de um quarto fazendo o que quero e vou receber por isso? É diferente de eu estar na rua fazendo uma chupetinha que todos possam ver. Então, a Associação surgiu por conta disso. No Centro, elas não podem fazer programa nos hotéis, nos bares. É proibido.
Acontece que todos os anos em que há eleição tem uma utopia [promessa] de revitalizar o Centro da cidade. Aí querem tirar também o morador da rua. Ok, mas vai colocar o morador de rua onde? O governo vem com a proposta de tornar a cidade mais bonita, como se a gente estivesse dando má qualidade para o visual da cidade. A Associação defende esse direito. Se eu quero atender no Bar do Seu João, eu vou atender no Bar do Seu João.
O Jardim Itatinga foi criado pra isso [receber as prostitutas que trabalham no Centro], mas não é porque foi criado que todas as profissionais deixaram o Centro. Elas continuam ali porque é ali que gostam de fazer seu trabalho e as pessoas não têm nada a ver com isso.
As que continuam no Centro em geral atendem nos motéis?
Os clientes passam e as levam para os motéis, o que é mais arriscado, você fica mais exposta do que se estiver em uma casa fechadinha. Porque não tem jeito, o cliente sempre vem. Não tem isso de “se há oferta, há procura”. Na prostituição é o contrário. Se você abrir uma casa lá dentro do mato e alguém disser que lá é ponto de prostituição, chove cliente.
Não tem como proibir?
Não tem como, a sociedade é muito complexa. Nós temos um projeto, chamado Gabriela Leite – já estou dando o nome de Lei Gabriela Leite para quando for aprovada –, de regulamentação do trabalho de prestação de serviço sexual. Para realizar meu trabalho, eu mereço ter uma proteção, uma dignidade, um espaço limpo, um espaço vigiado, para que eu não sofra nenhuma violência.
Em que pé está o projeto? A autoria é de quem?
É um projeto de lei, está no Congresso Nacional. A gente fala que a autoria é de Jean Wyllys (PSOL), porque ele está encampando, mas a autoria é da Rede [Brasileira de Prostitutas]. Pegou conteúdo das prostitutas do Brasil inteiro. Gabriela, junto com Jean Wyllys, encamparam. Ela foi candidata a deputada [federal] no Rio de Janeiro pelo Partido Verde e eles fizeram um acordo: quem se elegesse encampava o projeto dentro do Congresso para ser discutido (leia mais sobre o PL em Ponto e Contraponto).
Qual a receptividade desse PL e a chance de ser aprovado?
Três projetos anteriores não foram aprovados, e um deles era de Fernando Gabeira. Mas eu tenho certeza que esse PL será aprovado e será uma das nossas soluções. Muitas acham que não, por conta de todo esse pudor.
O projeto muda o Código Penal? Que direitos prevê?
A atividade em si não é crime, a questão é que não está regulamentada. O que o projeto prevê é a regulamentação, o que nos garante direitos na parte trabalhista, como adicional de insalubridade. Com o PL, poderemos até montar uma cooperativa de prestadores de serviço sexual, por que não? Hoje não se pode montar cooperativa, porém a profissão é regular. Então, que regulamentação é essa?
Eu alugo uma casa e posso fazer ali quantos programas eu quiser. Mas não posso chamar amigas para dividir o espaço, porque aí já é enquadrado como exploração. Se todas tivessem essa clareza do quanto o PL é benéfico, todas as profissionais do mundo nos apoiariam.
E por que não existe essa clareza? A informação não chega para todas?
A informação até chega, mas de forma distorcida. Algumas acham que passaremos a ter carteira de trabalho, só que isso não está na lei! Para os opositores do PL, 50% do que ganharmos vai para o estabelecimento, mas isso não está escrito dessa forma. Está escrito que eu, profissional do sexo, só posso contribuir com até 50% para o local onde trabalho.
Na sua opinião, por que essas distorções e ruídos de comunicação acontecem? A Rede não está bem organizada para se comunicar com clareza?
Nós, profissionais do sexo, não temos muito tempo. Somos autônomas, ao contrário, por exemplo, de uma faxineira, que tem o serviço para fazer de tal a tal hora. Você percebeu que agora há pouco passou um cliente meu, né? (risos) Não temos muito tempo.
Não estão todas bem informadas?
A gente tem puta advogada, psicóloga, enfermeira, pedagoga, nós temos muitas putas bem informadas.
O que a senhora acha de trabalhar aqui no Jardim Itatinga, que tem essa história de ser um bairro apartado da cidade? O desejo seria trabalhar no Centro?
As meninas no Centro da cidade ficam na rua, os caras passam e as levam para qualquer lugar. Pode ser para um motel, pode ser para um matagal. A gente sabe das coisas horrorosas que acontecem. Nisso, o PL poderia nos proteger, porque, atualmente, a polícia entende que a prostituta nunca é estuprada. Eles entendem que ela estava lá exposta. Se fizer um Boletim de Ocorrência, vão tirar sarro da cara dela. Então, por que eu gosto de trabalhar no Itatinga? Aqui, a gente fica nos portões das casas ou nas boates fechadas e sabe que vai ter um mínimo de segurança.
Então a senhora admite que é uma profissão perigosa, em se tratando dos clientes?
Não é perigosa, mas pode acontecer. Já aqui eu tenho uma comodidade, tenho segurança, aqui todo mundo se conhece, sabe o que acontece. No Centro, você pode mandar um beijo para um cara que é “putofóbico”, você não sabe, não conhece as pessoas. A Associação veio parar aqui no Itatinga porque a presidente é uma travesti aqui do bairro, a Denise Martins. Eu sou coordenadora-geral, sou uma espécie de vice.
O ideal mesmo seria que não precisasse de um bairro separado, e que essa segurança que a senhora sente aqui no Itatinga pudesse sentir no meio da cidade junto de todo mundo?
O melhor mesmo seria que nós tivéssemos uma regulamentação, algo por lei, que nos garantisse esse direito e nos protegesse da violência. Que, depois dos 18 anos e com plena capacidade mental, as mulheres pudessem fazer o que quiserem, cursar uma faculdade ou ser prostituta. Seguindo a Carta de Princípios da Rede nacional, só pode exercer o serviço sexual quem tiver de 18 anos pra mais e ser e plenamente capaz de suas faculdades mentais.
A senhora disse que muitas exercem a profissão por escolha própria e não por falta de outras oportunidades. O que atrai as mulheres para essa profissão de prostituta? Diante de todos os riscos, de todo o preconceito, quais são as vantagens?
A profissão me deu estrutura, liberdade, me deixou ser quem sou. Se eu tivesse escolhido ser uma dona de casa, eu teria escolhido ser uma mulher submissa, porque sou do Nordeste! Lá nós vivemos precariamente. Sou negra, tenho 43 anos, estou grisalha, não serei escolhida facilmente em uma entrevista, digamos, para recepcionista.
A possibilidade de ganho de uma profissional do sexo é maior do que qualquer outro trabalho, gente, sinto muito em dizer isso. Tem nego que está trabalhando aí, que eu conheço, que não recebe há três meses!
Eu tenho uma amiga que é enfermeira-padrão de hospital público que, quando dá o final do mês, vem me pedir dinheiro emprestado.
Vocês, prostitutas, enfrentam um limite de idade, assim como os atletas, as modelos? Quando se trabalha com o corpo, sofre-se mais com a idade.
Vocês acham que se sofre mais, mas vocês também trabalham com o corpo inteiro (risos).
Tem mercado para prostitutas com 60 anos, por exemplo?
Tem! Eu posso dizer que tenho mestrado e doutorado, porque tenho 25 anos de trabalho, meu amor. Você passa seis anos estudando e já é doutora. Eu tenho 25, só não tenho a parte teórica, o diploma.
As “novinhas” são mais procuradas que as mais velhas?
Para a novinha, vêm cinco, seis clientes hoje. Para a mais velha, vêm cinco, seis clientes… todos os dias. É a mesma coisa de colocar um produto novo no mercado: tem grande procura no começo, mas depois vai se acostumando. As mais experientes têm uma clientela fixa. O cliente que passou viu que estou dando uma entrevista, foi embora, mas não vai deixar de fazer programa comigo porque eu não pude fazer hoje. As novinhas acham que a gente tem muitos clientes porque cobra mais barato, por causa da idade, mas nem é isso, porque estou aqui bela e maravilhosa, meu amor. E eu estou só de batom. Olha a minha cútis.
Além da autonomia e da renda, quais são outros atrativos da profissão? Você se sente mais empoderada como mulher do que se fosse uma dona de casa ou uma faxineira?
Quando você me ligou hoje de manhã [para confirmar a entrevista], eu estava em Pirituba [bairro da Zona Norte de São Paulo]. Então a profissão me dá essa liberdade: tô saindo aqui e vou tomar cerveja com uma amiga lá em Pirituba. Outra profissional, ou uma dona de casa, ou uma pessoa casada não teria essa liberdade. Eu tenho três filhas, nunca me uni a nenhum dos pais delas, mas elas foram registradas pelos pais, foram feitas por amor, não foi acidente de trabalho. O meu local de trabalho é o melhor que tem. Eu não fumo maconha, não cheiro, mas aqui é possível, cheirar, beber, fumar…
… e não ser demitida por justa causa! (risos)
É isso! Não tem que sair do serviço para dar uma fumadinha. Isso me dá segurança. Não que as outras mulheres não tenham essa liberdade. Qualquer mulher pode ter. Só que, quando a mulher começa a soltar as asinhas, é logo chamada de feminista ou sapatão. O que acontece é que nós, mulheres, 53% da população [votante]– não somos mais 51%! –, ainda não acreditamos em nós mesmas.
Olha aquele Congresso Nacional, todos aqueles que estão lá nasceram de quem, gente? Nasceram de uma mulher! É que nós ainda não entendemos que nós é que temos o poder. Nós temos o poder nas mãos, mas não usamos, porque achamos que não vamos dar conta.
Colocaram isso na cabeça da gente?
É, isso é cultural! É a mesma coisa do estigma da prostituição. Isso é o que me diferencia da outra colega, das outras mulheres. Por exemplo, eu estou varrendo minha casa. Se liga uma amiga, “Bê, vem aqui pra gente tomar uma cerveja”, fica a vassoura onde está e eu vou me divertir. Eu falei pra minha amiga: se você ganhar R$ 5 mil por mês, 2.500 você guarda pro futuro, pros filhos. E se você torrar os outros 2.500, você foi feliz. Vai chorar por quê? Não tem que chorar, você se divertiu, tomou todos aqueles 2.500, deu pros outros, pronto! A gente tem que ser assim, não pode ficar se privando dos prazeres da vida.
E quanto à Igreja, que não usa a palavra “prostituta”, e sim “prostituída”, para indicar que é vítima de uma situação e sem poder sobre sua própria escolha?
O uso da palavra “prostituída” vem muito de uma linha da Igreja Católica, a Pastoral da Mulher, um grupo formado na maioria por beatas ou freiras. Respondem ao padre, ao bispo, e acham que as profissionais do sexo são mulheres prostituídas – falo isso com categoria, porque eu já fui da Pastoral da Mulher. Eu fiquei sete anos sem falar com as freiras, porque fui conhecer Gabriela Leite. Elas: “Ah, que horror, você mudou de lado!” Eu disse: “Não mudei, eu simplesmente reconheci a pessoa que sou, e vocês criaram cobra para te picar, porque, se eu reconheci a minha capacidade, o meu trabalho, esse empoderamento eu aprendi a ter dentro da Pastoral”. Hoje a gente já se reaproximou. Mas, em 13 anos de Pastoral, eu não tive o reconhecimento que tive na Associação.
Qual é a posição da Pastoral em relação à prostituição?
Eles acham que a gente está fazendo por necessidade, que a gente é submissa e que os homens pagam para utilizar o nosso corpo – embora a gente seja bissexual, não é só homem que nos procura, as mulheres também, porque somos muito mais finas (risos).
Como é hoje essa proporção homem/mulher em relação aos clientes? Está mudando?
Hoje a procura da mulher sozinha está aumentando. Antes a gente tinha procura de mulher, mas ela fazia parte de um casal. Aí eu vejo um empoderamento da mulher, de buscar sentir um tesão, ué. Só o homem pode sentir tesão e bater uma punheta? A mulher não pode bater uma siririca? Eu vou precisar ver um filme pornô pra sentir um tesão? Não!
Mas, voltando à Pastoral, a postura deles é abolicionista [contra a atividade da prostituição]?
Algumas pessoas no grupo, sim. Já outras são mais abertas, por exemplo, as Católicas por Decidir. Esse grupo nasceu de freiras e ex-freiras. São católicas e decidem que o corpo é delas. Olha essa imagem (mostra a capinha de um de seus celulares), isso aqui é um protesto de ex-freira: “Meu ovário não depende do rosário”. Elas são totalmente feministas e não pregam a abolição.
Mas vem da religião essa história de a gente ser coitadinha, precisar de uma libertação. Só que eu estou aqui para ganhar o meu dinheiro. Se você não quiser me ver prostituindo, pague o salário que eu ganho aqui. A gente não quer cesta básica nem assistencialismo.
Claro que todo trabalho tem seus problemas, tem uso de drogas, assédio sexual, cansaço, estresse, depressão, todos os trabalhos têm. Quando eu digo que você usa todo o seu corpo para trabalhar, se você estiver menstruada, você vai para o seu trabalho, e daí que você está com cólica? Já a gente não, se a gente não quiser. “Ah, eu tô com uma cólica do peru, não vou não, vou ficar aqui deitada.”
E a parte afetiva, amorosa? Se você se apaixona por alguém, como concilia com o trabalho? Imagino que seja mais difícil casar sendo prostituta do que não sendo, certo?
Isso. Quando você escolhe um trabalho, tem de abrir mão de várias coisas na vida. O meu trabalho não me impediria de me casar, mas o companheiro ou a companheira teria de aceitar o meu trabalho. Quando eu assumo um relacionamento, eu aviso que não vou parar o meu trabalho.
Existe o desejo por parte da maioria da prostitutas de constituir família como qualquer outra profissão, e continuar trabalhando normalmente?
Eu falo por mim. Primeiro que ,para constituir família, essa família não precisa ser extraída de você. Não sei se é carência, mas tenho isso muito claro, porque saí de casa muito nova. Eu chamo minha manicure de mamãe, porque ela é mais velha que eu. Diz a lenda que toda mulher quer um príncipe no cavalo branco, mas eu mesma nunca quis me casar. Em compensação, minha filha casou no fim do ano passado. Mas o meu trabalho eu não deixo, ele me deu toda essa estrutura. Desde os 23 anos eu não moro na zona, aos 32 anos, eu já tinha minhas três filhas, casa própria, carro quitado. Para nós, mulheres, é muito difícil conseguir um negócio desses lutando e trabalhando de sol a sol.