Por Amália Safatle
Atores diagnosticam gargalos e identificam alavancas para expandir o diversificado campo dos investimentos e negócios de impacto. Trabalhar de forma mais estruturada é o desafio que se apresenta
Por trás da frase “Entre ganhar dinheiro e ajudar o mundo, fique com os dois” – frase criada pela aceleradora Artemisia –, está o mote dos investimentos e negócios de impacto: não se trata de isto ou aquilo, mas isto e aquilo. “Quem historicamente gerava impacto social e ambiental positivo eram as ONGs e fundações, e quem gerava ou buscava performance financeira eram as empresas e investidores tradicionais. Quando usamos ‘e’, chegamos a um grupo de organizações olhando para as duas coisas”, diz Célia Cruz, diretora executiva do Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), um dos articuladores deste campo (o infográfico abaixo mostra os principais atores do “ecossistema” e seus papéis).
A lógica de somar não só permeia o conceito, como torna a prática muito mais poderosa, à medida que a busca pelo lucro estimula a geração de impacto social e ambiental positivo, fazendo com que os negócios se autossustentem. “Recursos provenientes de governo, filantropia e Investimento Social Privado continuam muito importantes, mas não são suficientes para bancar a inovação necessária. A gente precisa acessar novos bolsos”, explica Cruz.
Recursos que poderiam solucionar questões socioambientais complexas existem. O desafio está em criar um ambiente favorável para que os fluxos financeiros passem a participar dessa lógica. “Para cumprir a Agenda 2030, são estimados US$ 67 trilhões. É muito dinheiro. Mas os ativos de especulação que giram no mundo superam US$ 300 trilhões por ano [acesse relatório do Credit Suisse]. Ou seja, o problema não está no crescimento, mas na decisão de alocação do investimento”, afirma Marco Gorini, cofundador da Din4mo.
[A Agenda 2030 é um plano de ação composto por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os ODS, e 169 metas, para erradicar a pobreza e promover vida digna para todos, dentro dos limites do planeta. Criada em 2015, a Agenda foi adotada por 193 estados-membros da ONU.]
Como pano de fundo para essa transformação, Jorge Luis Audy, superintendente de Inovação e Desenvolvimento da PUC-RS, entende que é necessária uma mudança de ordem cultural, para que novos valores sejam cultivados. Para ele, é preciso haver um entendimento e uma percepção da importância do impacto social e ambiental para o desenvolvimento local e global. Mas, para isso acontecer, a comunicação, a clareza do conceito e o engajamento de novos atores são fundamentais.
Daniel Izzo, cofundador da Vox Capital, pioneira em gestão de investimentos de impacto no Brasil, já observa uma evolução nesse sentido, pelo menos no círculo em que o fundo opera. “Em 2009 a gente tinha de explicar o assunto. Hoje há um interesse crescente de investidores, e o desafio não é mais decidir se vão fazer, mas como fazer”, afirma. Ou seja, o gargalo está menos no conhecimento e na demanda, e mais na oferta de produtos financeiros atraentes e criativos para o mercado. “Claro que grandes investidores e entes reguladores podem fazer um esforço a mais, flexibilizando alguns critérios. Mas o dia em que a gente conseguir apresentar produtos que entrem em uma lógica de risco e retorno mais afinada com o mercado, vai chover dinheiro”, acredita.
Para ajudar a expandir o fluxo de investimentos especialmente nos estágios mais iniciais, o ICE, em parceria com a consultoria Impactix, criou em 2018 a iniciativa FORImpact, que estimula famílias de alta renda a fazer coinvestimento direto em negócios de impacto socioambiental, por meio de seus family offices (estruturas de gestão de patrimônio familiar).
Normalmente, por possuírem altos volumes, essas famílias investem em negócios de private equity, que estão em fase mais evoluída e nos quais correm menos risco, em vez de entrar em venture capital, em que teriam de gerenciar diversos projetos de valor mais baixo. [Private equity e venture capital são investimentos que injetam capital em empresas em troca de participação societária. O venture capital, em fase de estruturação, atrai investidores em busca de altas taxas de crescimento e retorno. Já os de private equity encontram-se em etapa mais madura]
Em fevereiro, um encontro reuniu famílias e gestores de fundos, que apresentaram diversos produtos de investimento nos quais puderam avaliar risco, retorno e impacto (mais sobre investimento de impacto nesta reportagem).
Um mecanismo inovador para captar recursos de investimento de impacto é a debênture social, que funciona no modelo de blended finance – neste caso, o recurso de filantropia serve para dar garantia ao investimento tradicional, eliminando riscos.
[Debênture é um título de dívida emitido por empresas para captação de recursos. Funciona como um empréstimo, em que o investidor se torna credor e recebe juros fixos ou variáveis ao final do período pactuado.]
O papel foi criado em janeiro de 2018 pela Din4mo para financiar o Programa Vivenda, negócio de impacto social que trabalha com moradia digna para a população de baixa renda (mais nesta reportagem) e em junho recebeu prêmio da ONU Habitat.
Por meio da emissão dessa debênture, investidores clássicos, provenientes do Itaú Private Banking, aceitaram investir em uma startup. O Fundo Zona Leste, ligado à Fundação Tide Setubal, entrou com 40% e os demais 60% vieram dos investidores tradicionais. A inovação significou um salto no acesso a recursos. Quando a Vivenda tinha ido ao mercado bancário tradicional pedir crédito, o máximo que conseguiu foi R$ 50 mil. Mas, por meio da debênture social, obteve R$ 5 milhões. “Isso muda a história”, diz Gorini. Mais dois papéis com a estrutura de blended finance devem ser lançados este ano.
Mas, para além dessas novidades, Gorini acredita que há visões a serem corrigidas entre os investidores, como a que subestima o tempo necessário para o desenvolvimento e a maturidade de um negócio de impacto. É preciso levar em conta que um negócio de impacto social atuará em mercados ainda não estruturados e, portanto, precisam de um tempo de maturação geralmente maior.
“Não é verdade que quando uma startup sai de uma aceleradora já está pronta para acessar um venture capital. No chamado Vale da Morte [período inicial de atividades de startups, em que há grande risco de descontinuidade das operações], não basta dinheiro, é preciso acesso a uma expertise, a uma senioridade. Há uma lacuna nesse campo, uma falha de mercado”, diz Gorini. Foi aí que a Din4mo entrou, com um olhar mais paciente, prevendo retorno em prazos mais alongados.
Isso acentua a importância de fortalecer o campo intermediário entre a demanda dos investidores e a oferta de negócios – formado por incubadoras, aceleradoras, investidores-anjos e parques tecnológicos, entre outros. Criadas no Brasil como parte de políticas públicas na década de 1980, as incubadoras e aceleradoras sofrem fragilidades até hoje. Em universidades públicas não é incomum ver equipes formadas por um único professor, que dedica 20 horas por semana, e apenas dois ou três bolsistas. “As incubadoras enfrentam desafios institucionais para que consigam incorporar de fato a agenda de impacto”, diz Fernanda Bombardi, gerente executiva do ICE.
O ICE, a Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) criaram um programa de sensibilização e engajamento para o tema do impacto, aproveitando que a maioria fomenta negócios de base tecnológica, e a tecnologia é vista como ferramenta importante para potencializar os negócios de impacto. Até o momento, cerca de 70 incubadoras e aceleradoras passaram pelo processo de formação no assunto de impacto. “O próximo desafio é instrumentalizá-las para prestarem suporte adequado a esse empreendedor com propósito”, diz Bombardi.
Um dos gaps do ecossistema é identificado na oferta de negócios, tanto em qualidade como em quantidade. “Na hora que a gente busca startups para mostrar a esses investidores, ainda existe certo esforço para conseguir projetos de qualidade. Esse é um dos principais gargalos específicos”, diz Maria Rita Spina Bueno, diretora executiva da Anjos do Brasil, rede de 380 investidores que mostra crescente interesse por negócios de impacto. Recente pesquisa com esses investidores perguntou qual o maior tema de interesse entre 10 opções, e impacto ficou em terceiro lugar, depois de business to business (B2B) e fintechs.
“O gargalo [dos negócios de qualidade] vem desde a formação no Ensino Médio, pois não existe uma cultura de empreendedorismo enraizada no Brasil”, avalia Luiz Romão, professor da Universidade da Região de Joinville (Univille), ligada ao Inovaparq. Esse parque tecnológico abriga, desde 2017, uma incubadora voltada a negócios de impacto, com 14 projetos em diversos estágios de maturidade. A universidade, comunitária, busca envolver os professores na busca de soluções de problemas reais, conectados aos ODS. [Pública de direito privado, não visa lucro, mas cobra mensalidade, que é reinvestida na comunidade do entorno por meio de projetos. Mais de 50% dos alunos recebem algum tipo de bolsa.]
Para promover essa conexão, Romão vê como fundamental o fortalecimento do elo entre a academia e as grandes empresas, formando gestores já preparados para atuar com a visão do impacto. Outra vertente é incubar projetos voltados para a cadeia de valor de grandes empresas locais. Um exemplo disso é a parceria de startups incubadas no Inovaparq com a empresa de tubos e conexões Tigre, sediada em Joinville. Iniciada em abril, a parceria prevê um programa de mentoria prestado por gestores da empresa durante seis meses. Eventualmente, alguma das startups poderá participar da cadeia de valor da Tigre. Ao mesmo tempo em que faz toda a diferença para a startup começar já com um cliente de maior porte na carteira, a grande empresa solidifica sua atuação no campo dos negócios de impacto por meio de seus fornecedores – em uma estratégia de ganha-ganha.
Outro caso, em se tratando da cadeia de valor, é experimentado pela cimenteira InterCement. A empresa identificou, perto dos alto-fornos, uma cooperativa agrícola que vive do extrativismo do licuri, coquinho do qual se extrai óleo, gerando resíduos de biomassa com poder calorífico. A grande surpresa foi descobrir que o poder energético era igual ou melhor que o do pneu inservível, comumente usado para alimentar os alto-fornos. O desafio foi, então, organizar a cadeia de valor para que começasse a gerar renda e impacto socioeconômico para a cooperativa. Hoje, o projeto inclui 220 famílias e pode chegar até a 2 mil, informa Carla Duprat, diretora do Instituto InterCement. Duprat frisa que mudanças relativamente simples na rotina são capazes de provocar grande impacto na cadeia de valor. Uma delas foi alterar o sistema de pagamento do fornecedor, reduzindo de 30 para 7 dias. Para o pequeno fornecedor, o prazo faz toda diferença, mas é o tipo de mudança de processo que só ocorre se houver engajamento das pessoas. “Para isso, é preciso colocar o impacto na estratégia de negócio da empresa e estabelecer metas.” Ela vê a importância de se levantar essas bandeiras para provocar mudanças de mindset no setor produtivo.
O caso é um piloto que poderá ser usado até em escala mundial, envolvendo na cadeia de valor fornecedores de biomassa que estejam próximos aos fornos da empresa em países como Moçambique e Paraguai. Com isso, a InterCement busca atender a quinta das 15 recomendações do campo, que preconiza o uso de 5% de fornecedores advindos de impacto até 2020.
[Em 2015, a Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto elaborou 15 recomendações a atores específicos do ecossistema para, até 2020, levar mais capital para o campo, fortalecer organizações intermediárias, gerar mais negócios de impacto e promover um macroambiente favorável. Acesse as recomendações aqui.]
Desenvolver o ecossistema de forma descentralizada geograficamente é mais uma alavanca para tornar o ecossistema mais rico e ampliar o volume de bons projetos. “Há muitos talentos que são desperdiçados só porque não se encontram no eixo São Paulo-Rio”, diz Gorini, da Din4mo. Não por acaso, Graziella Comini, professora associada do departamento de Administração da FEA-USP, empenha-se em formar doutores em Manaus, para atuar na região amazônica. Por meio de um programa de doutorado em inovação e empreendedorismo, o intuito é explorar o impacto social considerando especificidades locais, como a biodiversidade amazônica, o empreendedorismo comunitário e realidades rurais e urbanas que diferem muito da encontrada em outras capitais brasileiras.
Comini, que integra a Rede de Professores do Programa Academia ICE, entende que a temática do impacto social passou do momento de ser tratada dentro uma “caixinha” e deve ser transversalizada em diversas áreas de pesquisa acadêmica, como marketing, finanças e gestão de pessoas.
[A Rede de Professores do Programa Academia ICE é uma iniciativa que aglutina e promove atividades sobre negócios e investimento de impacto junto a 80 docentes espalhados em todas as regiões brasileiras.]
“Teve muita importância o momento de afirmação do conceito, em que o impacto foi objeto de estudo. Mas hoje estou menos preocupada em ver quais são os contornos que definem um negócio de impacto e mais em ver a coerência das organizações em relação ao que estão contribuindo para essa agenda”, diz.
Isso não significa que um alinhamento mínimo sobre o tema não seja importante. “Se a gente quiser direcionar mais recursos para esse campo, é preciso ter mais clareza sobre o conceito e conferir maior segurança jurídica, pois estamos falando de negócios de maior risco por sua natureza”, afirma Rachel Karam, integrante de um time de 11 advogados do grupo jurídico do Sistema B.
[Criado nos Estados Unidos, o Sistema B tem como objetivo construir ecossistemas para fortalecer empresas que usam a força do mercado para resolver problemas socioambientais.]
“Para atrair bancos de investimentos como o BNDES, integrante do comitê da Estratégia Nacional de Investimentos e Negócios de Impacto (Enimpacto), a primeira pergunta que vão fazer é: como saber se a empresa que está me pedindo esse financiamento é de impacto?”, pontua Karam.
Por isso, a advogada entende a mensuração dos impactos proporcionados pelo negócio como elemento fundamental. Para ela, a tarefa é acessível mesmo aos pequenos empreendedores, a começar de processos mais simples como B Impact Assessment, uma ferramenta pública, on-line e gratuita. “É um formulário usado hoje por mais de 60 mil empresas, inclusive foi escolhido pela ONU como ferramenta de mensuração dos ODS”, diz. Segundo ela, o formulário pode servir simplesmente para conhecer melhor a empresa e critérios de avaliação. Se atingida uma pontuação mínima, a empresa pode requisitar a certificação, processo que terá custo e vale por dois anos.
Enquanto alguns atores defendem legislações específicas para os investimentos e negócios de impacto –, o que exige definições muito claras sobre seus contornos – outros temem que regras e tratamentos diferenciados possam inibir a fluidez de recursos e isolar o campo, em vez de transversalizá-lo.
Bombardi, do ICE, acredita que os esforços devam ser empregados especialmente na criação de um macroambiente favorável para a inovação e o empreendedorismo, por meio de políticas públicas desenvolvidas pelo governo. Em paralelo a isso, defende que haja mais gente no campo atuando na formação de investidores e empreendedores, e criando plataformas e ferramentas úteis, a exemplo do Modelo C, que combina o Canvas, um instrumento de modelagem de negócios muito utilizado, com a Teoria de Mudança, abordagem que mostra como o negócio pretende gerar impacto a partir de uma determinada intervenção (mais aqui).
[O Modelo C resulta de parceria do ICE com Sense-Lab, Move Social e Fundação Grupo Boticário. O projeto que serviu de piloto foi o Araucária+, que remunera a produção sustentável de pinhão e erva-mate em Santa Catarina, com o intuito de conservar a Floresta de Araucária, hoje com menos de 1% da vegetação original.]
Após uma década em que esse campo floresceu no Brasil, trabalhar de forma coesa é, na visão de Gorini, o salto de maturidade necessário para que seus atores criem soluções cada vez mais estruturadas e se atinja um novo patamar de desenvolvimento.
CHAMADO ÀS BASES – Valor para conservação devia ser seis vezes maior
Expandir o campo dos investimentos e negócios de impacto significa também endereçar os desafios de ordem ambiental. Um dos maiores gargalos está na conservação da biodiversidade, que fornece nada menos que a base de sustentação para todo o desenvolvimento social e econômico acontecer. Levantamento feito por WWF, Credit Suisse e McKinsey mostra que o valor destinado à conservação precisaria ser no mínimo seis vezes maior que o atual. Atualmente são investidos US$ 50 bilhões em projetos no mundo todo, quando seriam necessários US$ 300 bilhões a U$ 400 bilhões por ano.
A comparação é citada por Guilherme Karam, coordenador de negócios e biodiversidade da Fundação Grupo Boticário, organização pioneira em puxar a agenda das finanças sociais para as questões ambientais. “Nós não conseguiremos promover a conservação necessária apenas com recursos públicos e de filantropia. Será preciso acessar capital privado, por meio de negócios e investimentos socioambientais”, afirma. Há muito trabalho pela frente. Levantamento da Aspen Network Development Entrepreneurs (Ande) no biênio 2016-2017, feito com base em entrevistas autodeclaratórias, indica que menos de 1% do valor investido em negócios de impacto foi para a conservação da natureza.