Por Amália Safatle
Foto Arthur Fujii
A história de Valdemar de Oliveira Neto, mais conhecido como Maneto, mistura-se com a criação do movimento da responsabilidade social no Brasil. Atuante em organizações de relevância nesse tema, como Instituto Ethos, que ajudou a fundar, Fundação Avina e Ashoka, Maneto possui o que se chama de lugar de fala.
O ponto de vista é ainda favorecido pelo fato de que Maneto, há alguns anos, está distante o suficiente para trazer um olhar de fora, livre e arejado. É com esse espírito que ele concede esta entrevista, na qual faz um retrospecto crítico – e cético – da responsabilidade social corporativa no Brasil, comparando as perspectivas de transformação alimentadas após a Eco 92 e o que de fato se conseguiu obter.
O quadro é frustrante. A seu ver, as expectativas de que o movimento influenciaria a formulação de políticas públicas e as decisões de alocação de capital nem de perto se cumpriram e não há elementos que permitam alguma esperança, a não ser a pressão de mercados externos sobre as empresas exportadoras.
Diante disso, o caminho de transformação que Maneto busca passa por inovações tecnológicas e nos modelos de negócio das empresas, trabalho que ele tem desenvolvido na World-Transforming Technologies. A WTT é uma fundação que nasceu da Avina para buscar transformações mais rápidas e em larga escala, especialmente junto às populações mais vulneráveis. Porque, em se tratando de urgências como a mudança do clima, não há tempo a perder.
Maneto é CEO da World-Transforming Technologies. Antes de ingressar na Fundação Avina em 2003, onde foi diretor de Programas, participou da fundação do Instituto Ethos, no qual atuou como diretor executivo. Lançou o Programa Global Fellowship da Ashoka para empreendedores sociais. Advogado pela Universidade Federal de Pernambuco, presidiu o Centro de Cultura Luiz Freire (Olinda-PE) e foi um dos cofundadores do Gajop, entidades de apoio a projetos sociais e assessoria jurídica a movimentos sociais.
O senhor participou ativamente do movimento da responsabilidade social corporativa no Brasil e agora atua com tecnologia de ponta para acelerar as transformações. Como se dá esse trabalho?
O World-Transforming Technologies é um spin-off [desmembramento] da Fundação Avina que trabalha com tema da inovação para impacto social. Uma das duas linhas em que atua aposta em tecnologias em fases muito embrionárias, mas com alto potencial de impacto, especialmente nas questões ligadas à mudança climática, como energia e água. O objetivo é acelerar o desenvolvimento dessas tecnologias. Para isso, mobiliza capital filantrópico e de investimentos, porque esse é um processo muito mais rápido do que usar mecanismos tradicionais do governo. Essa diferença na velocidade também ocorre nos EUA e na Europa. Geralmente, em todo o mundo, a inovação é financiada pelos governos e as empresas entram depois, mas isso costuma ser muito lento e a gente não tem tempo a perder quando se trata de mudança climática.
A outra linha é inovação no modelo de negócios. As empresas em geral são bem pouco inovadoras do ponto de vista de modelos de negócio.
Isso em todo o mundo, certo? Porque as empresas não podem pôr muito em risco o dinheiro do acionista.
Exatamente, só que agora o potencial de disrupção é muito grande.
Hoje o risco é maior se as empresas não fizerem nada?
É maior. Mas as empresas ainda acreditam que podem controlar o ritmo da introdução de tecnologias, porque a maior parte do que fazem são inovações incrementais. Então acreditamos que há espaço para inovações em escala que cheguem na ponta, especialmente nas comunidades mais vulneráveis à mudança do clima, pois ela leva ao aumento da pobreza e ao sofrimento da população mais pobre. Isso implica rever modelos de negócios. Pelo modelo de negócio tradicional, o setor privado procura a maior margem possível para recuperar o investimento. Para isso, começa atendendo os clientes que têm maior capacidade de pagamento, em vez de gerar o maior impacto positivo à população. A tecnologia chega nessas populações mais vulneráveis depois que já se tornaram obsoletas e as empresas já conseguiram o maior lucro possível. Se trabalharmos com tecnologias embrionárias e chegarmos em soluções radicalmente inovadoras, teremos espaço para fazer a inovação nos modelos de negócios. Por exemplo, vamos apresentar, no final de outubro, na Universidade de Zurich, o projeto de uma planta de dessalinização de água via solar. É um material nanoestruturado que flutua no corpo d’água salgada ou salobra e, com a radiação solar, multiplica por cinco a taxa de evaporação. É um sistema de baixo custo e fácil fabricação.
Para acelerar as mudanças que o mundo precisa, é mais fácil ir pela via da tecnologia do que nos modelos de negócios das empresas?
Não existe a bala de prata, e não acredito que só a tecnologia salvará a humanidade. Tecnologias avançadas na mão de modelos de negócios antiquados vão para o fundo da gaveta. A inércia do modelo de negócio tradicional e as expectativas do mercado de capitais têm um peso muito grande. Segundo um texto publicado na Harvard Business Review, a possibilidade de inovação em modelos de negócios é praticamente impossível, a não ser quando se cria uma nova indústria e que ela tenha margens muito superiores às das indústrias existentes.
Essa turma de cientistas que encontramos na área de complexidade de várias universidades está ligada a uma base de conhecimento científico para geração de várias soluções de fronteira, como projetos de combustíveis solares, mecanismo de transmissão de energia via fótons em vez de elétrons, pós-eletricidade, física não linear, sistemas caóticos.
Que tipo de inovação em modelos de negócios é necessário para mudar radicalmente o modo como as empresas operam?
É preciso um maior equilíbrio entre people [pessoas], profit [lucro] e planet [planeta]. É muito difícil as empresas fazerem isso. Elas fazem o discurso, mas primeiro vem o profit e lá atrás o resto. A urgência do clima implica trabalhar com outra visão de timing na geração do retorno. Hoje, a lógica toda é montada na geração de informações financeiras trimestrais e o máximo de retorno no momento de partida do negócio. A empresa só admite trabalhar com margens menores, para chegar a populações com menor capacidade de pagamento, lá no final, depois que já rentabilizou tudo o que podia. Estamos em uma situação que exige trabalhar com curvas de retorno diferentes.
Dialogando com o tema desta edição: não basta a empresa ser transparente se continuar a gerar danos à sociedade e ao ambiente. A pressão por transparência induz a uma melhor conduta por parte das empresas?
No começo dos anos 1990, as expectativas de quem estava no movimento da responsabilidade social corporativa eram de que a transparência e a prestação de contas por meio de relatórios teriam impactos importantes. Isso contribuiria para a gestão interna, ajudando as empresas em processos de melhoria administrativa que poderiam criar situações de ganha-ganha. Ou seja, melhorar resultados, reduzir os custos e gerar impacto social e ambiental positivo. A outra expectativa era de que mais transparência e mais informação elevariam a qualidade do debate sobre regulação e políticas públicas. O Estado teria um conjunto de informações e, a partir daí, políticas seriam desenhadas criando incentivos para mudar o comportamento das empresas de forma mais ampla, e não restrita apenas às empresas líderes. Políticas de financiamento, de crédito e fiscais poderiam ser orientadas para estimular isso.
Ao mesmo tempo, o mercado de capitais seria alocado para investir em empresas mais bem preparadas para enfrentar esse novo contexto, em que haveria empoderamento dos vários atores e stakeholders [partes interessadas] para exercer maior controle e pressão sobre as empresas, como trabalhadores, sindicatos, consumidores.
Essas eram as motivações, lá atrás, quando desenvolvemos no Instituto Ethos a primeira ferramenta [de transparência], antes mesmo da GRI [Global Reporting Initiative]. Eram os Indicadores Ethos de Responsabilidade Social, que serviam para as empresas entenderem que práticas eram essas, qual era a agenda da responsabilidade social. Os indicadores permitiam autoconhecimento. Era algo totalmente voluntário e inédito no mundo. Ao mesmo tempo, o Ibase [Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas] lançava o Balanço Social, com o qual buscamos um alinhamento logo no primeiro momento. Fizemos o mesmo alinhamento com a GRI, que o Ethos ajudou a trazer para o Brasil (saiba mais em box nesta reportagem).
E o que aconteceu com as expectativas desse movimento?
As empresas que fizeram esse esforço de trabalhar com os indicadores conseguiram resultados interessantes no bottom line [resultado financeiro] e na imagem. Mas era um universo relativamente pequeno de empresas líderes preocupadas com o valor de marca. Quando olhamos qualquer setor, tem o topo da cadeia e depois vem uma massa de empresas e atores menores que nem está olhando para isso. Ou seja, foi algo positivo que beneficiou as empresas que lideravam esse processo. Todas as outras expectativas, como influenciar o debate sobre o desenho de políticas públicas, nem de perto se cumpriram. Das poucas coisas feitas, como os Princípios de Equador, foram outros fatores externos que influenciaram. O Ministério da Indústria e Comércio, por exemplo, nunca teve presença nesse debate nem nunca liderou nenhum processo para pensar novas políticas, com poucas exceções.
No mercado de capitais, a Bolsa criou níveis de governança corporativa que exigiam uma série de boas práticas, sistemas de compliance [conformidade], ética. Foi criado o Índice de Sustentabilidade Empresarial [ISE]. Foi lançado o Fundo Ethical pelo Banco Real, sob a liderança do Fábio Barbosa. Legal, mas será que essas questões, hoje, são relevantes para o mercado financeiro no momento de alocar o capital? Quais analistas de mercado acompanham o potencial de valorização das ações e leem os relatórios de sustentabilidade aqui no Brasil?
Mas o ISE apresenta uma rentabilidade superior à do Ibovespa.
A carteira é rentável mas não influencia a alocação de capital. É quase anedótica se formos ver o volume de investimento comparado com os outros fundos tradicionais. É legal, é bonito, mas não mexe em nada no processo de alocação de capital.
O mesmo se dá em relação ao Dow Jones Sustainability?
Em nível global também é muito pouco. Nos EUA e na Europa, a situação é um pouco diferente porque eles têm duas coisas que o Brasil não tem: vida inteligente nos órgãos reguladores – que a gente tem um pouco aqui no Banco Central – e um mercado de capitais sofisticado, com investidores institucionais, como fundos de pensão, que se importam com essas informações. A própria demanda desses investidores faz com que as empresas que analisam e orientam as estratégias e gerenciam as decisões de investimento consumam e leiam esse material.
No Brasil eu não conheço quem faça um processo sistemático [de análise], que entre no debate da alocação de capital e nas estratégias. Aqui, a linguagem da regulação pública é a do lobby. A linguagem de troca, de comunicação, de interlocução entre empresas e governo se dá em torno de interesses específicos de curto prazo. E entre os fundos de pensão e investidores institucionais tampouco há uma visão de longo prazo. A gente vê o que aconteceu no Mensalão e na Lava Jato, especialmente os fundos públicos, a moeda de troca não era a sustentabilidade, o retorno de longo prazo. Era a festa da propina. Então, as distorções da realidade no Brasil fazem com que essas tentativas não tenham qualquer chance.
E já houve tempo suficiente para que aquelas expectativas em relação ao movimento da responsabilidade social dessem fruto? Adotar outros caminhos para engajar esses atores poderia acelerar o processo de mudança?
Acho pouco provável. A única pressão que pode ter uma influência de peso – sem tirar o mérito de lideranças empresariais visionárias, conectadas e que fazem um esforço em suas empresas em liderar processos – é a dos mercados de exportação. A gente vê isso claramente na saia-justa do setor agrícola e da pecuária com a política ambiental do governo Bolsonaro. O pessoal do agronegócio está assustado.
E teve alguma reação também no setor de papel e celulose.
Sim, são setores mais sensíveis por conta da inserção internacional e da competição que têm a nível global. É onde vejo pressão. Mas, internamente, a pressão que existe dos consumidores é muito frágil para influenciar e não vejo nada que venha da alocação de capitais e nem do governo. Então, no que se refere à responsabilidade social, a tendência é continuar com esse quadro, com algumas poucas lideranças e práticas que servem de exemplo para o mundo, mas que são pontuais e episódicas, sem capacidade de influenciar o setor empresarial como um todo. A não ser empresas que, de forma defensiva, reagem a essas pressões internacionais e têm de se adequar para manter espaço no mercado.
Só haverá mudança na conduta em grande escala quando tiver uma mudança na percepção de risco e de oportunidades?
Nessa área de inovação e tecnologia, percebo que nos últimos 20 anos houve uma mudança substancial na forma como o processo de inovação tecnológica – e da própria ciência – se dá. Saímos de um processo de investigação científica baseado em tentativa e erro, tentando entender como as coisas funcionavam, para uma ciência que funciona hoje com base na simulação, usando a capacidade dos computadores. Processos de circulação de ideias no campo científico eram relativamente lentos, mas hoje, com as ferramentas de comunicação, a informação circula com rapidez quase imediata nas redes de cientistas. O processo de inovação se acelerou fantasticamente. Esse é o contexto do mundo hoje.
O que vai definir a chance de os países se inserirem na economia global nos próximos 20 a 30 anos é a capacidade de dominar essas novas ferramentas. E um elemento fundamental disso é a infraestrutura de processamento de dados, a capacidade de computação dos cientistas para fazer simulações. Na Embrapa, por exemplo: no final dos anos 1970, começo dos anos 1980, o desenvolvimento de uma nova variedade de soja que se adaptasse ao Cerrado levava de 6 a 8 anos. Era preciso induzir mudanças genéticas, plantar, observar. Hoje você induz a mudança genética, mapeia o genoma e pronto. Não precisa plantar, esperar germinar etc. Com os softwares de Inteligência Artificial que analisam massas de dados para saber a função de cada um daqueles genes, esse prazo se reduziu para até um ano e meio. Isso vale também para a indústria automobilística, no tempo para projetar carro. Vale para a química, a farmacêutica. Tudo hoje é baseado em sistemas de uso massivo de computação.
Então, o Brasil precisa de uma estrutura de processamento de dados. Pegue a lista dos países onde estão os 500 mais rápidos supercomputadores do mundo e procure ver onde está o Brasil. Não está. Onde está a China? Tem 220 desses supercomputadores. A tensão dos Estados Unidos com a China é a competição na Inteligência Artificial. O Brasil tinha um único computador que chegou a entrar na lista: era o Santos Dumont, em Petrópolis [RJ], que estava ameaçado de fechar porque não tinha como pagar a conta de luz. Ou seja, nesse jogo do que será a inovação disruptiva nos próximos anos, o Brasil já está fora. Precisaria de um esforço sobre-humano.
Ao mesmo tempo em que o Brasil não consegue acompanhar a tecnologia, o grande ativo do País, que é a diversidade humana e biológica, estratégico para um mundo de recursos escassos, está sendo espoliado.
Eu diria que o melhor para o Brasil seria vender a Petrobras e criar a Biobras para investir no conhecimento da nossa diversidade biológica, onde há potencial de futuro. Montar um parque e formar cientistas para explorar esse potencial. Concentrar capital e fazer um esforço grande de investimento em uma indústria do passado, como a do petróleo, é um contrassenso, uma ilusão.
As grandes empresas costumam fazer planos de longo prazo para pensar os próximos 10, 15 anos, certo? Isso não está no radar do planejamento estratégico? As informações sobre clima e água estão disponíveis aos montes.
Eu teria de ver o que de fato está acontecendo dentro das empresas brasileiras para responder de forma mais consistente, mas acho que, por questão de cultura, achamos que o País é grande, tem muito mercado, muito potencial, muita abundância, que está tudo bem. O pensamento é o de que é preciso acumular o máximo possível e depois vemos o que acontece. Fora a turma que não acredita [na necessidade de mudanças]. Tente conversar com pecuaristas tradicionais sobre a carne produzida em laboratório, cultivada a partir das células. Acham que é ficção científica, que não vai acontecer, ou que acontecerá daqui a cem anos.
E a grande maioria das empresas está voltada a preocupações mais imediatas?
Sim. Ainda há uma demanda global muito grande. A China está aí comprando. O mercado atual ainda tem espaço para crescer.
Com petróleo, soja, boi…
E minério de ferro. Então, vai indo. Vai indo, mas vai perdendo importância relativa no contexto global. Quando se analisam as economias globais do ponto de vista de preparação para o futuro, o Brasil está ficando para trás, inclusive em relação a países de renda média. E ainda tem essa coisa de achar que em 20 anos a Coreia do Sul resolveu seu problema, e quando a gente quiser também vai resolver.
Desde a Eco 92 já se construiu uma série de indicadores, já se produziu a Agenda 2030, que tem os objetivos, as metas. E agora? Chegamos a um ponto de inflexão? É o momento de uma avaliação antes de dar os próximos passos?
O processo de escalar esse movimento e influenciar o universo de forma mais ampla passa pelas políticas públicas e pelo mercado de capital. São os dois fatores-chave. Fora isso, claro, tem a pressão do consumidor, do movimento ambientalista. Com este governo, não vejo nenhuma chance de essas agendas avançarem. As questões são vistas meramente como instrumentais para aumentar a competitividade. Onde é útil, usa, onde não é, não usa. Neste momento o tema da sustentabilidade e da responsabilidade social é claramente secundário. É uma fase de refluxo, de pensar quais as agendas dos próximos 10, 20 anos e as novas interlocuções possíveis. Enquanto isso não acontecer, ficar fazendo encontros entre os “convertidos” não vai levar a um salto.
Uma agenda que será cada vez mais relevante é a de adaptação à mudança climática. Vai impactar muitas empresas, desde o mercado de seguros, gestão empresarial, locação de planta industrial, até o deslocamento de áreas produtivas no espaço geográfico do País. Enquanto a agenda de mitigação depende mais da liderança de governo, a de adaptação é uma estratégia de gestão de risco das empresas.
E na agenda de adaptação, ao contrário da mitigação, nem é preciso reconhecer as causas antrópicas do aquecimento global (risos).
Sim, é uma agenda que vai entrar mais rápido no mundo das empresas. E o movimento de responsabilidade social tem de buscar novas conexões com os atores públicos e do mercado de capitais, o que dependerá muito do contexto internacional. Esse é outro ponto: o movimento da responsabilidade social aqui no Brasil já foi mais conectado globalmente do que é hoje. O Brasil, nos anos 90, começo dos 2000, tinha uma interlocução e um fluxo de trocas de conhecimento, de práticas empresariais e uma percepção de liderança nos temas da responsabilidade social corporativa e sustentabilidade empresarial muito maior. Depois, a interlocução empresarial no governo Lula não passou por quem estava formulando [políticas públicas]. Quem ia falar com a Marina [Silva, ministra do Meio Ambiente] sobre questões de mitigação e adaptação? A conversa e os acertos se davam em outros gabinetes, era com o [José] Dirceu. Não estou colocando nessa cesta aqueles empresários que têm uma visão de sustentabilidade, mas sim a maioria das empresas. Elas tinham uma interlocução muito fluida com o governo do PT, como nunca vi. Acho que a Fiesp nunca se sentiu malquista, ao contrário. No começo havia medos e desconfianças, mas depois virou festa.
E por que a agenda da responsabilidade social perdeu força naquele período?
Porque o diálogo da responsabilidade social implica um certo nível de tensionamento, cobrança, expectativa de mudança de comportamento. Se a atitude do governo é “você tem que cumprir tabela, faz o mínimo que está bom” e a sua fonte de lucratividade está em conexões e acordos movidos a propina, a responsabilidade social se torna acessória.
E ainda vai contra a ética, que faz parte da responsabilidade social.
Existia uma expectativa por parte de quem estava no movimento de que a coisa seria diferente [no governo do PT], não só na questão ética, mas que teria um governo que cobraria e influenciaria mais, discutiria a geração de regras mais inteligentes, mais desafiadoras para a empresa. E isso não aconteceu. Mas isso é passado. Agora, a agenda da ética e do compliance continua relevante, apesar dos retrocessos nessa área. O desafio é pensar a agenda para os próximos 20 anos.
Hoje, cerca de 400 empresas no Brasil publicam relatórios GRI. Só que as vulnerabilidades não aparecem.
Mas isso é geral. Veja os relatórios na Europa: primeiro viraram um catatau com uma linguagem técnica difícil de ser entendida e, portanto, muito pouco útil para um leitor mais leigo e mesmo para um analista de investimentos. Quase um Código Morse.
E o que tem de ser dito não está nesses relatórios. A adesão é voluntária, mas não há meios de se cercar o preenchimento para que informações muito relevantes fiquem visíveis, por exemplo, o risco de um rompimento de barragem?
A questão é a demanda. Quem está demandando essa informação? Vou contar uma história. No início do Ethos, no ano 2000, recebi o vice-presidente de uma empresa escandinava, que era uma das principais vozes da responsabilidade social na Europa. Ele me colocou a questão: 70% da mão de obra na fábrica no Brasil era feminina, mas não havia uma única gerente. E a questão dos negros era ainda pior: não havia nenhum na empresa. E tinha uma resistência grande do corpo diretivo em mudar a situação. Então ele me disse: “Quero te fazer uma pergunta séria: se a gente não fizer nada para mudar isso, o que vai acontecer?” Eu respondi que pegava mal, que a empresa podia introduzir novas práticas, servir de exemplo, mas, a rigor, não ia acontecer nada. Não havia nenhum risco, até porque era uma empresa b2b [business to business], que não lidava diretamente com a ponta final dos consumidores. Aí ele agradeceu e saiu todo feliz.
Não tinha risco mas também não aproveitava a oportunidade de ter ganhos com a diversidade.
Foi o que tentei “vender”. Ao longo do tempo, eles até fizeram um esforço, mas a empresa não queria ser um business case, ser uma liderança muito visível, para não criar atritos internos e com fornecedores. Digo isso porque uma das estratégias do Ethos, logo no começo, era publicar boas práticas e exemplos positivos. A empresa no geral podia não ir bem, mas se tivesse ali uma prática que merecesse destaque, a gente dava visibilidade para levantar a bola e estimulá-la a melhorar nas outras áreas. A estratégia era muito generosa e inclusiva, de acolher todo mundo para influenciar os demais.
Mas já passamos dessa fase da abordagem inclusiva, certo? Temos de partir para a pressão?
Já passamos da fase inclusiva. E a fase da pressão ainda não aconteceu no Brasil. Lá fora, sim. Na Europa e nos Estados Unidos, já está acontecendo muito mais. (Colaborou: Magali Cabral)